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Indígenas de diferentes origens conquistam espaço na internet e pautam debates sobre preconceito e estereótipos

O Globo - https://oglobo.globo.com/ela
16 de Jul de 2021

Indígenas de diferentes origens conquistam espaço na internet e pautam debates sobre preconceito e estereótipos
Perfis em redes sociais reúnem milhares de seguidores e transitam por temas como história, artes e moda

Eduardo Vanini
16/07/2021

Cristian Wari'u perdeu as contas das vezes em que foi chamado por apelidos preconceituosos nos tempos de escola, até entender que despertar o interesse dos colegas sobre a sua própria história poderia mudar isso. Foi quando passou a explicar, entre outras coisas, a origem de seu nome, munido de uma narrativa envolvente. Os xavantes, conta, têm a tradição de batizar as novas gerações a partir dos sonhos dos anciãos. "Wari'u era o nome do meu bisavô, que foi um guerreiro exemplar. Depois de sonhar com ele, meu avô decidiu que eu deveria me chamar assim", conta.
Ao notar como essas narrativas cativavam as pessoas à sua volta, Cristian decidiu levá-las a um público ainda maior. Ele criou, em 2017, um canal no YouTube, cujo grande hit é o vídeo "Povos indígenas do Brasil", com mais de 190 mil visualizações. Na gravação de seis minutos, o rapaz elenca uma série de enganos frequentemente cometidos pelas pessoas quando se trata dessa população. "'Índio' foi um equívoco dos primeiros navegantes ao pisarem nessas terras, por acreditarem ter chegado às Índias. O correto é indígena", explica, antes de citar outro erro: "'Tribo' é ultrapassado, é uma denominação europeia criada para hierarquizar os diferentes povos".
Com mais de 35 mil inscritos no canal e 70 mil seguidores no Instagram @cristianwariu, o rapaz, de 23 anos, é um dos maiores expoentes de uma geração de indígenas que galgaram o posto de influenciadores digitais e difundem informações das mais variadas naturezas nas redes. Afinal, como ele também explica em seu vídeo mais assistido, o povo indígena é extremamente plural. "O assunto é muito diverso e extenso. Sempre deixei claro que nunca quis ser um porta-voz de todos os povos. Até porque são mais de 300 no Brasil, e cada um deles tem o seu modo de pensar e a sua linguagem."
Assim como Cristian, o modelo Noah Alef, de origem Pataxó, também lança mão da sua visibilidade para trazer à tona assuntos ligados a essa população. Com trabalhos para marcas como Farm e À la Garçonne, além de aparições nas páginas de revistas nacionais e internacionais, como "GQ Portugal", o rapaz tem apenas 21 anos e está em plena ascensão no mercado da moda. A correria profissional, entretanto, não serve como pretexto para que deixe de compartilhar conteúdos informativos em seu Instagram @noahalef, onde é seguido por mais de 150 mil usuários. "Por meio da minha imagem e do meu trabalho, acredito que muitos poderão se ver representados", vislumbra o modelo. "A moda não tinha uma presença indígena, e espero que isso possa mudar daqui para frente."
Entre os muitos posts engajados que aparecem no seu feed, Noah também guarda espaço para uma dose de ironia, como fez num recente vídeo gravado para criticar a visão caricatural de que indígenas não têm acesso a celular. Afinal, como diz o modelo, nem mesmo o sucesso profissional o livrou das situações impertinentes em seu cotidiano. "Os preconceitos diários que mais observo partem de pensamentos que criam estereótipos sobre nós. Se usamos um celular, não somos mais indígenas. Do mesmo jeito, se moramos na cidade e não na aldeia, se usamos qualquer tecnologia e roupas ou falamos português e não outra língua nativa, questionam a nossa origem e identidade", relata. "Por isso, busco trazer representatividade com o meu trabalho e sempre compartilho informações que façam as pessoas mudarem seus pensamentos em torno de nós."
Também ligada ao universo da moda, a estilista niteroiense Dayana Molina diz ter compreendido logo na juventude como a luta indígena vai muito além do bullying sofrido na escola. "Significa batalhar por espaços que não seriam facilmente conquistados. Entendi que me calar não resolveria nada, mas promoveria mais exclusões dos nossos corpos", afirma. Movida por esse sentimento, ela fundou a marca Nalimo, com uma produção feita 100% por mulheres, especialmente indígenas. O discurso eloquente reverbera tanto nas redes do negócio (@oficialnalimo) quanto da própria Molina (@molina.ela), que juntas somam mais de 20 mil seguidores.
Boa parte das postagens leva a hashtag #descolonizeamoda, que aparece já nas descrições de ambos os perfis. "Essa indústria tem atitudes coloniais e quadradas. Ainda falta muita estrada para avançar", critica. "Mas diria que sou uma criativa subversiva e consciente do meu papel social. Minha roupa transcende expectativas de uma 'moda indígena', cheia de estereótipos. Estou criando uma moda com liberdade, visionária e ética", elenca a estilista.
Ela define as redes sociais como um "megafone virtual" e afirma que conexões importantes têm surgido nesse ambiente. "No período em que combatemos a PL490 (que ameaça demarcações de terras índigenas), a internet foi uma ferramenta importante para conversas mais profundas nos directs. Na medida em que vou crescendo, fica mais difícil responder a todas as mensagens, mas todo contato é genuíno e me motiva a seguir firme na luta."
Júli Dorrico usa o mesmo "megafone" para buscar mais visibilidade para a literatura indígena. Doutora em teorias literárias pela PUC do Rio Grande do Sul, ela divulga autores e obras de diferentes gêneros, como romance, poesia e produção acadêmica, pelo perfil @dorricojulie. "Desde que comecei o meu mestrado na área, já transitava nesse universo, mas ficava restrita ao meio universitário. Com a explosão da pandemia, no ano passado, decidi levar isso a mais pessoas", conta a jovem, de 30 anos. "Havia muita gente fechada em casa, de olho na internet."
A resposta, diz, tem sido bastante positiva."É como um despertar. Vários leitores enxergam, pela primeira vez, identidades nas quais se reconhecem", observa, comentando que muitas pessoas não sabem ou se esquecem de suas origens. "Se o seu avô era indígena, seu pai também era, assim como você. Então, é como se essa literatura lhe devolvesse uma espécie de elo perdido."
Outro nome que também ganha espaço nas redes é o do biólogo e artista visual trans não-binário Emerson Pontes, mais conhecido pelos seguidores como Uýra Sodoma, uma "entidade híbrida" criada e performada por ele. "Emerson vira Uýra quando está maquiado, com corpo repleto de floresta", descreve. Na conta @uyrasodoma, que soma mais de 20 mil seguidores, ele exibe postagens e trabalhos que tangenciam assuntos como gênero, identidade e meio ambiente, mas com uma preocupação especial: não falar apenas das dores. "Narro a existência indígena, por eu ser indígena e compreender a história e o cotidiano colonial, que tanto nos quer apagados. Mas é mais do que isso: pauto também o nosso belo."
Além de encher os olhos dos seguidores com imagens expressivas e elaboradas, o artista já conquistou espaços importantes em instituições como o Museu de Arte do Rio e estará na Bienal de São Paulo, em setembro. Ao que tudo indica, a presença nesses dois mundos, real e virtual, irá coexistir com a mesma força que se fundem Emerson e Uýra. "Em tudo que faço, falo de vida", afirma o artista, de 30 anos, que vive em Manaus. "Realizo denúncias, me articulo a movimentos da Amazônia e de fora. Garantir o bem viver é a minha principal missão." E ele não está sozinho nessa busca.

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