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Indicadores sociais Estudo revela efeito da aposentadoria sobre indígenas

Valor Econômico-São Paulo-SP
Autor: Ribamar Oliveira
18 de Fev de 2002

Dinheiro da Previdência "cria" renda na Amazônia

Os benefícios previdenciários destinados à área rural da região Amazônica estão ajudando a fortalecer os laços comunitários, as tradições e as culturas locais, segundo o antropólogo Gabriel Omar Alvarez, da Universidade de Brasília. Ele esteve por duas vezes na região em pesquisas para um estudo que pretende avaliar o impacto do dinheiro pago pela Previdência na vida das comunidades indígenas, ribeirinhas, de seringueiros e dos descendentes de antigos quilombos. "O dinheiro está sendo usado na realização da vida social das comunidades", diz.
Atualmente, a Previdência Social paga cerca de 870 mil benefícios na região Norte, sendo que 495 mil (56,8%) concentram-se na área rural. A despesa anual ultrapassa os R$ 2 bilhões, o que representa 4,2% do Produto Interno Bruto (PIB) da região. No Acre e Tocantins, as transferências da Previdência chegam a 6,5% e 6,8% do PIB, respectivamente.
O IBGE informa que cada benefício previdenciário favorece, em média, 3,5 pessoas - a que recebe e as que vivem com ela. Com isso, a Previdência estima que seus recursos ajudem 23,6% da população total residente na região Norte ou 44,3% da população de sua área rural.
A proposta de Alvarez foi procurar saber o que está por trás dessas estatísticas. "O objetivo foi documentar e construir um retrato dos aposentados anônimos", observa. Ele fez entrevistas, gravou numerosos depoimentos e contou também com a ajuda do fotógrafo Nicolas Reynard. O trabalho deu origem a um ensaio antropológico-fotográfico, que será editado pelo Ministério da Previdência em março ou abril.
A diversidade de populações na Amazônia é muito grande. São 163 povos indígenas, com população estimada pela Funai em 325 mil pessoas. Numerosas áreas em que vivem nem sequer estão demarcadas. Mas os indígenas estão tendo acesso aos benefícios previdenciários. Muitos deles saíram do regime dos "barracões", onde eram mantidos em semi-escravidão, em atividades extrativistas, principalmente na de borracha.
Com o dinheiro que recebem hoje da Previdência, eles compram, principalmente, sal, munição, anzóis, sabão, óleo, roupas, calçados, tabaco e gasolina. As longas distâncias precisam ser percorridas em barcos movidos a motor e por isso o combustível é essencial. "O dinheiro da aposentadoria não é lá grande coisa, que dê para comer bem, então tem que plantar", diz Santiago Marubo, 80 anos, da tribo dos marubos, perto de Atalaia do Norte (AM), em depoimento gravado pelo antropólogo. "Mas minha vida melhorou porque eu estou no meu lugarzinho, quieto, descansado, e trabalho o dia que eu quero. Não sou mandado, sou aposentado".
O índio Guilherme Marubo, que pertence ao clã tiunabo ("macaco barrigudo"), não fala português. Por meio de um intérprete, o antropólogo colheu o seu depoimento. "Na cultura marubo, o velho tem posição de prestígio. O dinheiro da aposentadoria reforça isso."
Foi na aldeia dos índios sateré-maués, localizada na zona do meio Amazonas, perto de Parintins, que Alvarez pode constatar com maior clareza o impacto do dinheiro da Previdência na cultura indígena. Lá, ele presenciou o ritual da tocandeira, ou wat'amã, em tupi. Esse é um rito de passagem que marca a entrada na idade adulta. Os jovens têm que colocar a mão, várias vezes, dentro de uma luva cheia de formigas venenosas. O ato de coragem é presenciado pela coletividade, numa cerimônia em que todos comem e cantam.
No passado, para alimentar todas as pessoas que comparecem à cerimônia, os índios saíam em busca de caça. Mas como ela ficou cada dia mais difícil, agora compram frangos com o dinheiro das aposentadorias. Este recurso também é usado para pagar o cantador da cerimônia. Os aposentados ocupam lugar proeminente na realização do ritual. "Podemos dizer que os sateré-maués conseguiram incorporar, antropofagicamente, a renda dos benefícios previdenciários no seu universo sócio-cultural", resume o antropólogo. Ele comprovou que o dinheiro não dissolveu as tradições culturais. Ao contrário.
O mesmo uso comunitário do dinheiro da Previdência foi verificado pelo antropólogo nas populações ribeirinhas. "É o velho que colabora com a festa do padroeiro da cidadezinha e ele se sente bem fazendo isso", observa o antropólogo. Na pequena Alvaraes, às margens do Rio Solimões, dona Tereza, 80 anos, usa parte da aposentadoria para enfeitar a igreja e as imagens dos santos, durante a festa para São Joaquim.
A maior parte do dinheiro que circula nos pequenos vilarejos é proveniente dos benefícios previdenciários. A renda do extrativismo, por exemplo, é episódica. Como é o caso da colheita da castanha do Pará, que acontece uma vez por ano. Nessa época, as pessoas ganham algum dinheiro e com ele têm que viver o ano todo. Quando diminui a demanda pelo extrativismo, as pessoas caçam, pescam e fazem roças. Os aposentados têm renda permanente.
"Quem é aposentado, se vira com a aposentadoria. O resto se vira na mata, tirando uma madeirinha, um palmito para sobreviver. Mas está bravo", observa Valdir, da comunidade de Antônio Lemos, em Breves, no Pará. "A renda permanente do benefício previdenciário dá uma sensação de segurança àquelas pessoas", avalia Gabriel Alvarez.
O antropólogo da UnB constatou o mesmo fenômeno nas comunidades que são remanescentes de quilombos. Vivendo em áreas sem qualquer tipo de infra-estrutura, às margens dos rios Trombetas e Cuminá, no Pará, essas pessoas dependem do transporte fluvial, feito em embarcações com motor a gasolina. Alguns deles gastam até R$ 50 para ir na cidade pegar o dinheiro da aposentadoria e realizar suas compras.
"Eu ajudei a pagar o barco", conta dona Anésia, 79 anos, aposentada, que mora em Jauari. "E aí todos os velhinhos que tinham dinheiro davam e outros que não eram aposentados ajudaram". O barco foi comprado e hoje atende a toda a comunidade. "O recurso é utilizado na realização da vida social da comunidade. Seu uso transcende o aspecto puramente individual", observa Gabriel.
Para que um trabalhador rural da Amazônia requeira uma aposentadoria, ele necessita basicamente de uma certidão de nascimento, que comprove que está em idade de receber o benefício, um documento de posse de terra e uma declaração do sindicato rural do município ou região. No caso dos índios, o documento que comprova o trabalho como agricultor é dado pela Funai. Muitos deles não conseguem reunir a documentação, simplesmente porque os nascimentos e casamentos são feitos apenas nas igrejas. Não há registro civil.
Outros possuem documentos contraditórios, como é o caso de Benedito Duarte, que possui uma certidão de nascimento emitida em 1999, embora tenha nascido em 1941. Mas a sua idade na certidão é uma e no documento de posse da terra é outra. Essas contradições nos documentos paralisam a tramitação do processo.
As pessoas têm dificuldade também de ter acesso aos postos da Previdência Social, localizados nas capitais dos Estados ou em grandes cidades. Maria Abadia dos Santos iniciou os trâmites de sua aposentadoria aos 55 anos, na agência da Previdência de Belém. Só aos 77 anos conseguiu apresentar todos os papéis. Assim mesmo nas agências flutuantes da Previdência, que desde 1997 atendem à população ribeirinha.
Atualmente, são quatro barcos equipados com computadores interligados via satélite com os bancos de dados da Previdência Social. Com isso, os funcionários que atendem os ribeirinhos podem decidir sobre o pedido do benefício em tempo real. Os barcos contam também com médicos a bordo. "Essa é uma iniciativa que está dando certo", constata o antropólogo. "O caboclo está começando a virar cidadão por meio da Previdência".

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