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Imbróglio vermelho

OESP, Espaco Aberto, p.A2
Autor: GRAZIANO, Xico
12 de Abr de 2005

Imbróglio vermelho

Xico Graziano

Abril se inicia com o dia da mentira. Nada indica, porém, que as ameaças do MST sejam de brincadeira. Ao contrário. Para piorar, ao vermelho dos sem-terra agora se junta o urucum dos indígenas. Vem aí confusão das grossas.
A tragédia de Eldorado dos Carajás, ocorrida em 17 de abril de 1996, marcou a data da estripulia agrária. Em 19 de abril se comemora também o Dia do Índio. Resultado: a bomba ganhou novo estopim. Quem o confeccionou?
O MST, decepcionado, acusa o governo de enterrar a reforma agrária e sucatear o Incra. Afirma, irritado, que o Incra mente, pois teria assentado apenas 25 mil famílias em 2004, e não as 82 mil anunciadas oficialmente. Balela pura, dizem.
Por sua vez, o fórum em defesa dos indígenas assevera que a política do governo mostra descaso e afronta a cultura ancestral. Vai além e denuncia: o ritmo de reconhecimento dos territórios indígenas foi quebrado e, pasmem, condicionado a um projeto neoliberal, etnocentrista e genocida. Caramba!
Nada como um dia após o outro. Assim deve estar pensando Fernando Henrique nesses dias de abril vermelho. Agredido sem piedade pelo MST, o ex-presidente se conforta, enquanto Lula arrepia agora o cabelo. Na opinião pública, ninguém entende nada. Há cheiro de armadilha política no ar.
No governo passado, o MST criticava a política fundiária, acusando-a de vagarosa. Mobilizações e invasões pareciam apontar graves mazelas na reforma agrária. Quanto aos índios, reinava a calma, se é que existe sossego nessa matéria.
Eleito Lula, paradoxalmente, ambas as questões se acirraram. Na reforma agrária, reduziram-se as desapropriações de terras e os assentamentos. Um anticlímax. Na política indigenista, crianças passaram a falecer por desnutrição. Um antifome zero tupiniquim.
Para quem se acostumou aos raciocínios polarizados, do tipo esquerda versus direita, tudo se embaralhou. O abril vermelho virou, politicamente, um imbróglio total. Por que, quando a esquerda chegou ao poder, aumentou, ao invés de diminuir, essa tensão social?
Imagine um teste, daqueles que caem no vestibular. Procure a resposta correta:
a) As manifestações atestam que Lula governa pela direita, tendo sucumbido ao poder dos latifundiários.
b) Lula despreza os povos indígenas porque percebe que estão culturalmente degenerados.
c) Fernando Henrique, com o PFL a tiracolo, realizava um governo mais esquerdista que Lula.
d) Lula, padrinho do MST, sabe que os sem-terra vivem da confusão e adoram recursos públicos.
e) Ministro Palocci corta as verbas sociais porque, neoliberal convicto, não desperdiça dinheiro.
f) Ministro Rossetto serve para embrulhar o MST e, para enganar, reclama da falta de verbas para a reforma agrária.
g) Todas as alternativas estão corretas.
h) Todas as anteriores são erradas.
Difícil? O mundo da política, sabe-se, não cabe num teste fechado, com respostas certeiras. Tudo bem. Mas, francamente, é importante descobrir onde está a origem dessa confusa história. Qual a cor ideológica do abril vermelho?
Afora a morte das crianças índias, inexplicável sob qualquer ângulo, o caráter da luta agrária mostra o lado reacionário do MST. É fundamental entender esse ponto. Ao contrário do que parece, o movimento defende uma agenda do atraso. Eles, e não Lula ou FHC, são os conservadores, embora se disfarcem de revolucionários.
O distributivismo agrário poderia fazer sentido no Brasil rural, embora Caio Prado Jr. já questionasse seu sentido progressista desde o final dos anos 1950. Hoje, no mundo da tecnologia, inventar camponeses a partir da pobreza pode configurar uma idéia generosa, mas ultrapassada. Um sonho, lembrando o passado.
Querer transformar a desilusão urbana em produção rural representa uma "utopia regressiva", conforme a denominou o deputado Roberto Freire, em recente simpósio realizado no Rio de Janeiro. Significa olhar no retrovisor da História.
Supõe-se, idilicamente, que milhões de empregos poderiam ser gerados pelo campo afora, desafogando as metrópoles e garantindo a subsistência barata. Será viável?
Nada indica. Na economia, o raciocínio se afigura quixotesco. Mais se agrava quando se propõe substituir a produção empresarial - os agronegócios - pela agricultura familiar, reforçando a subsistência alimentar. Simplesmente faria aumentar a fome nas periferias urbanas. Sem criar riqueza nenhuma no campo.
Engana-se quem pensa que o MST representa a esquerda. Nasceu progressista, é verdade, quando a ditadura estrebuchava. Ajudou a enterrá-la. Mas eles não aprenderam a conviver nas regras do regime democrático, que claramente desprezam. Tornaram-se autoritários.
O colorido de abril esconde uma face negra, uma espécie de fascismo social-religioso. Líderes treinados, sentindo-se como enviados divinos, manipulam a miséria para invadir territórios e punir quem julgam pecadores. Fazem justiça com as próprias mãos. Exagero?
Não, infelizmente. É essa terrível deformação da luta democrática que apavora e imobiliza o presidente. Lula parece estar, como pai, à frente do filho degenerado, sem saber como proceder. Se o afaga, pode encorajá-lo. Se o reprime, exacerba sua rebeldia.
Quem brande foices e rasga a Constituição, imaginando promover a igualdade, faz apenas estimular a violência rural. Afugenta investimentos, espanta o emprego e tolhe a liberdade. Futuro? Não, passado.

Xico Graziano, agrônomo, foi presidente do Incra (1995) e secretário da Agricultura de São Paulo (1996-98). E-mail: xico@xicograziano.com.br. Site: www.xicograziano.com.br

OESP, 12/04/2005, p. A2

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