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As ilusões perdidas

CB, Brasil, p.18
24 de Fev de 2005

As ilusões perdidas

Estudiosos dizem que o recrudescimento da tensão provocada em torno da luta pela terra no país é resultado de mobilização que o PT ajudou a organizar e teria deixado de lado ao chegar ao poder

Da equipe do Correio
Oassassinato da missionária Dorothy Stang estragou a festa dos 25 anos da fundação do PT. Dezenove dias depois do presidente nacional do partido, José Genoíno, cortar o bolo de aniversário do partido, defensor histórico das causas sociais, o debate sobre conflitos de terra no Brasil voltou a ganhar destaque no noticiário nacional e se tornou a principal preocupação do governo. Especialistas e políticos ouvidos pelo Correio afirmam que os confrontos no campo e nas zonas urbanas são fruto da mobilização social que o próprio PT ajudou a construir quando era oposição.

"Nas duas últimas décadas, o partido ajudou a dar formulação política aos movimentos sociais. Quando chegou ao poder, manteve a pauta dos governos anteriores. O PT se enganou e enganou os outros", acusa o filósofo Roberto Romano, professor de Ética da Universidade de Campinas (Unicamp). "Lula ainda não teve a capacidade política e a grandeza de estadista de conseguir administrar a macroeconomia e a as pautas sociais. Mesmo num governo de alto gabarito seria uma tarefa dificílima. Imagine neste, que segue o 'padrão Benedita da Silva', de baixíssimo nível do ponto de vista técnico."

Obrigado a antecipar a volta do Suriname, onde participava da 16ª Reunião de Chefes de Estado dos Países do Caribe, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva desembarcou na quarta-feira passada sob o peso da acachapante derrota na eleição para a presidência da Câmara dos Deputados e de uma enxurrada de críticas de líderes de movimentos sociais, descontentes com o contraste entre as promessas de campanha e o que efetivamente foi feito nos últimos dois anos. De acordo com o Plano Nacional de Reforma Agrária, 400 mil pequenos agricultores devem ser assentados até 2006. Segundo o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), menos da metade da meta foi atingida: apenas 117.555 mil famílias receberam lotes nos dois primeiros anos de governo.

Rompimento
As expectativas frustradas provocaram ameaças de rompimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) com o governo. "O problema é que o Estado espera acontecer uma tragédia para fazer alguma coisa. Os próximos meses não serão vermelhos, mas roxos", espinafra o sociólogo e antropólogo Antônio Flávio Testa, professor da Universidade de Brasília (UnB), fazendo uma referência ao Abril Vermelho - expressão cunhada por dirigentes do MST para batizar o mês de protestos realizados pela organização em lembrança ao massacre de Eldorado dos Carajás (PA), ocorrido em 1996, quando 19 trabalhadores sem-terra foram assassinados por policiais militares do estado.

Para o especialista em segurança pública e ex-consultor da Organização das Nações Unidas (ONU) George Felipe Dantas, a sucessão de conflitos - não apenas no Pará, mas em Minas Gerais, Goiânia, Bahia e no agreste pernambucano - também pode ser um bom sinal. "Mostra que a sociedade não é alienada, está atingindo a maturidade. Este é o momento ideal para a organização social no país, da evolução para uma sociedade mais justa", avalia. Dantas é otimista quanto à concretização das políticas sociais. "Temos uma força progressista no poder e isso já nos oferece boas perspectivas."

Monocultura
Presidente da Comissão Externa que acompanha as investigações dos casos de violência no Pará, a senadora Ana Júlia Carepa (PT-PA) afirma que as tensões são resultado de uma ocupação desordenada ocorrida no estado durante a ditadura militar (1964-1985). A violência no estado, na avaliação da parlamentar, é conseqüência da existência de dois modelos econômicos conflitantes. Os madeireiros e grandes produtores rurais representariam o grupo que aposta na extração desenfreada de madeira e no plantio de soja. "Derrubar uma floresta com a biodiversidade da Amazônia para dar lugar à monocultura deveria ser crime", defende Ana Júlia. No outro grupo, estariam os sem-terra, que pretendem utilizar as propriedades do governo para pequenas plantações ou extração de madeira de forma sustentável.

Embora não comente o caso específico da irmã Dorothy Stang, assassinada no dia 12 no Pará por defender a reforma agrária, o deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO), um dos pesos-pesados da bancada ruralista no Congresso Nacional, demonstra preocupação com a avaliação que se faz no governo sobre as causas da violência. Na quarta-feira, o próprio presidente Lula disse que a morte da missionária foi uma reação dos madeireiros e grileiros contra as políticas sociais do governo.

"Não existe essa história", rebate Caiado. "Por essa lógica, atirar contra um invasor seria o mesmo que atirar contra o governo. Não é o caso." O deputado prefere atribuir as tensões aos integrantes do MST. "Os sem-terra têm uma cultura de violência. Prova disso é o fato de considerarem a Constituição um instrumento de opressão burguês, e de alguns líderes terem aparecido na mídia pregando a morte de fazendeiros."

Número de Invasões cresceu 47% em 2004

Em 2004, o segundo ano do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, os sem-terra demonstraram um nível de ofensividade que não se via desde 1999. De acordo com relatório divulgado pela Ouvidoria Agrária Nacional, eles fizeram 327 ocupações de terra no país. Isso representa uma variação de 47% em relação a 2003, quando ocorreram 222 invasões. Em 1999 foram 502.

O relatório da ouvidoria também registra um total de 16 mortes decorrentes de conflitos agrários no ano passado. Outras 19 estão sendo investigadas - para esclarecer se decorreram de disputas em torno da terra ou foram crimes comuns.

Sob esse aspecto os números da ouvidoria indicam um recuo em relação a 2003. No primeiro ano do governo Lula, o registro de mortes chegou a 42 - mais do que o dobro de 2002, último ano do governo de Fernando Henrique Cardoso, quando 20 pessoas foram assassinadas nos conflitos.

Abril vermelho
Em 2004, o maior número de ocupações de terras ocorreu em abril. Foram 109 casos, no chamado Abril Vermelho - quase quatro por dia. O mês no qual os sem-terra mostraram menor ofensividade foi outubro, com sete registros. Em dezembro foram 11 casos.

Desde 1995, quando a ouvidoria começou a registrar os conflitos agrários, não se tinha visto nada como o que ocorreu em abril de 2004. Até então, o mês de março de 1999 encabeçava a lista dos meses com maior número de ocorrências, com um total de 101.

Pernambuco é o estado em que os sem-terra mais fazem ocupações, de acordo com o relatório da ouvidoria. Do total de 327 invasões realizadas no ano passado, 76 foram conduzidas pelos movimentos pernambucanos. Em segundo lugar aparece São Paulo, com 49; e em terceiro, Minas, com 31.

Mortes em Unaí
No Pará, onde foi assassinada a missionária americana Dorothy Stang, a ouvidoria registrou oito invasões e quatro assassinatos em 2004. Sob esse aspecto, Minas poderia ser considerado o estado mais violento, com cinco mortes registradas. Nessa conta estão incluídos os três fiscais e o motorista do Ministério do Trabalho que investigavam denúncias de trabalho escravo numa propriedade na região mineira de Unaí.

Até 1995, os números de conflitos agrários eram contabilizados apenas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Eram quase sempre contestados pelo governo federal, que decidiu fazer seu próprio levantamento, por meio da ouvidoria. No governo Fernando Henrique Cardoso sempre houve descompasso entre os números oficiais e os da CPT, freqüentemente acusada de inflar as estatísticas para chamar a atenção para os problemas agrários.

No governo Lula, o descompasso continuou. De acordo com a CPT, os números do governo não refletem a gravidade da situação. Pelas contas dos agentes pastorais, o número de mortes decorrentes de conflitos em 2003 chegou a 73 - um número bem maior que as 42 registradas pela ouvidoria.

CB, 18/02/2005, Brasil, p.18

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