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Ianomâmis: Encontro com o espírito da montanha sagrada

O Globo, País, p. 1, 6-7
Autor: BLOCH, Arnaldo; SALGADO, Sebastião
30 de Jun de 2014

Ianomâmis: Ascensão à montanha sagrada

Donos e guardiões do Parque Nacional do Pico da Neblina, em Roraima, sua montanha sagrada, que fica em terras demarcadas em 1992, os ianomâmis da aldeia de Maturacá veem sua herança ameaçada. Numa aventura de 15 dias com uma escalada de 3 mil metros, Sebastião Salgado e Arnaldo Bloch conviveram com 20 nativos num território pleno de encantos e perigos. A maioria jamais havia subido o maciço. Aculturados, vivendo entre padres salesianos e um pelotão de fronteira, alguns se envolvem com o garimpo ilegal ou exploram ouro com métodos predatórios enquanto projeto de lei e PEC tentam liberar a mineração em terras indígenas, revela a segunda reportagem da série Uma Saga Amazônica.

Ianomâmis: Encontro com o espírito da montanha sagrada
Expedição plena de encantos e perigos leva nativos da castigada Maturacá ao Pico da Neblina, o cume da sua serra ancestral, da qual são os guardiões, crivada do ouro mais cobiçado do país

Arnaldo Bloch e Sebastião Salgado

Após duas semanas de imersão na casa-aldeia Watoriki, Amazonas (relatada na edição de ontem), chegamos à base do Exército de Maturacá, Roraima, em primeiro de abril. A instalação, estratégica, faz o patrulhamento da fronteira com a Venezuela e do maciço do Pico da Neblina, rico em ouro e fechado à visitação. Ao lado do pelotão fica Maturacá, onde moram 1.500 ianomâmis, guardiões daquelas terras e da serra Yaribo, como chamam sua montanha sagrada, vigiada por moxuhemayoma, espírito de ventos, e yoyoma, entidade feminina, que abana as tempestades.
- A gente estava aqui antes do dilúvio - informa Julio Góis, xamã e líder maior, que leva o sobrenome do padre salesiano que catequizou os locais, todos católicos.
Alguns usam crucifixos com os chapéus de pelo de macaco e penugem de pássaros brancos. A explanação, em yanomam - variação local do idioma-, foi durante a grande reunião com a elite xamânica e alguns caçadores, para decidir quem subirá os 3 mil metros junto com a equipe de reportagem.
- Ali moram espíritos, filhos dos demiurgos que criaram o mundo. Onde os brancos veem montanha, eu vejo casa, como esta aqui - prossegue Julio, apontando para o maciço enevoado que esconde o pico, e referindo-se à estrutura de madeira, local sagrado, sem paredes, onde todos se reúnem, reprodução da estrutura montanhosa "real", invisível para nós. Na cosmologia ianomâmi, os brancos, não-humanos criados a partir da espuma amorfa de onde tudo surgiu, já eram previstos há séculos nas visões dos xamãs.
A pressa de partir é grande: tumultuada, a aldeia de Maturacá é em tudo diferente daquela de onde viemos. Cortada por uma avenida de terra batida cheia de cães sem vacinas, que devem somar 500, tem casas construídas com técnicas que misturam seus costumes com os urbanos. Parece uma pequena cidade pobre. Seus habitantes não usam pinturas, penas nem miçangas, e estão na maior parte do tempo vestindo roupas comuns. Apesar de os ianomâmis não beberem álcool, sabe-se que a cachaça circula, embora não se ache na vendinha.
Desacostumados à caça rotineira, quando o fazem, usam espingarda. Daí a dificuldade do chefe para arregimentar os 20 membros para a ascensão: muitos nunca subiram lá e a maioria jamais foi ao cume; outros, são guias de turistas clandestinos; pelo menos metade já se envolveu com o garimpo ilegal que ainda opera, apesar de os ataques da Frente de Proteção Ianomâmi, em conjunto com o Exército, ter desbaratado a maior parte. Viver numa aldeia semiurbana, altamente sedentarizada, é difícil, e os garimpeiros pagam bem.
Há, mesmo - e todos sabem disso -, pelo menos um ianomâmi que explora ouro com máquinas, e que tem uma balsa, oculta. A população indígena, pela Constituição, pode garimpar em área protegida, mas só à moda antiga, com bateias, o que é vedado aos brancos. Para conseguir que os 20 expedicionários, enfim escolhidos, busquem em suas casas arcos e flechas, lanças, penas e tintas, Julio tem que falar grosso, e em português.
- Vamos acabar com essa putaria!
Seu rosto grave, com sulcos laterais, lembra as fisionomias de estátuas incas (parece que eles estiveram por aqui, em busca de ouro) o que é comum entre os ianomâmis dessa área, que contam existirem escadarias pré-colombianas secretas no maciço. Descendente de nativos que presenciaram a chegada das missões, e cuja esposa, cabocla, vestiu as mulheres nuas da tribo com roupas que cobriam suas vergonhas, Julio já fez de tudo: trabalhou para o exército e para o garimpo, foi intérprete, professor, guia. Ele teme a ascensão a Yaribo com tanta gente. Tudo vai depender dos espíritos principais e dos auxiliares, formas originais das plantas, dos animais, da terra, da água.
Cabe ao líder dos brancos e comandante da expedição, Sebastião Salgado, dar um outro contorno aos objetivos da viagem e pedir ajuda, enquanto distribui os kits com sacos de dormir, casacos, redes, canivetes, lanternas, roupas e equipamentos para enfrentar o frio, a chuva, o breu.
- Essa missão é para que os guerreiros daqui reencontrem sua montanha sagrada e ajudem os brancos a alertar o mundo e evitar que as mineradoras destruam a terra-floresta ianomâmi e que o governo corte seus rios com mais estradas e usinas - alerta, referindo-se aos Projeto de Lei 1610 e PEC 215 que tramitam aceleradamente no Congresso e podem promover uma nova corrida do ouro, liberando as mais de 600 licenças de mineração pendentes: - Por isso, eu quero que vocês sejam os ianomâmis valentes que têm que proteger o Brasil e o Mundo, aqui, nesta montanha, símbolo do Brasil, de onde podemos ver a floresta toda, e depois pensar sobre como usar essa região para o ecoturismo e a extração sustentável para não ficar reféns do dinheiro ilegal.
É sob a égide destas palavras que a expedição parte no dia seguinte, de barco, até o "porto" ao pé da grande montanha. Cuja subida é árdua e levará três dias. Embora haja trilhas, o solo é cheio de raízes que ora apoiam a caminhada, ora escorregam como sabão. Árvores espinhosas nas quais não se pode pôr a mão, folhas de bromélias que são como espadas que podem furar os olhos, barrancos que se movem à beira de precipícios, buracos ocultos, pontes de bambu que atravessam cursos baixos de rio e descidas agudas alternadas com picadas: esse é o ambiente, sem chuva. É preciso evitar as cobras e andar em grupo para não dar chance a felinos.
Os acampamentos são montados na hora, com vigas cortadas a faca e recolhidas na mata pelos ianomâmis, pelo mateiro Raimundo (com rádio onde passam as notícias da Nacional Amazonas) e pelo indigenista João Catalano, da Frente de Proteção. A cobertura de lona, principalmente quando chegamos à base para a subida final, cederá várias vezes às tempestades que vêm do alto.
Às margens de um rio pedregoso claramente remexido pelo garimpo a base a 2.300 metros de altura é coberta, a maior parte do tempo, por uma névoa que esconde o sol e impede as roupas e as redes de secarem, nos 12 dias que ali ficamos. O banho é geladíssimo, em águas que, dizem alguns, têm sangue de briga de branco com índio.
- Índio não - adverte Julio, em português, na dificílima, quase letal, subida à Serra Montilla, nome de rum, dado por garimpeiros e ianomâmis, no tempo em que, pelos anos 1980, a um grau da Linha do Equador, funcionavam ali duas cantinas e um bordel. Dizem que a comissão para um político ligado à administração indígena era enviada em latas de Leite Ninho.
- Se não é "índio", o que é? - pergunto.
- "Índio" é coisa de branco. Coisa de Pedro Álvares Cabral. Nós somos ianomâmis. Estávamos aqui antes do dilúvio. Nunca mais repita "índio", e isso é uma mensagem dos meus parentes.
Sozinho com os ianomâmis, eu havia gritado "estou aqui com os índios" a um grupo que estava perdido de nós outro lado da serra.
Rumo ao alto da Serra Montilla, vestígios de garimpo recente: pilhas, lixo, uma garrafa de cachaça Pirassununga, pedaços de transístores de rádio espalhados sobre o calcário branco e amarelado.
- Aqui tem muito ouro - adverte Orlando guia de montanhas, com dificuldades de articular as palavras. Anos atrás, ele teve um derrame e foi abandonado por um paraquedista-espetáculo mundialmente famoso, a quem servira de carregador e guia, sem jamais ter sido pago, de acordo com os autos de um processo que corre.
O espírito dos ventos fechou o tempo e a tempestade, que ameaçava tornar a voltar, plena de paredes verticais, um lamaçal se anunciou. Julio tirou de um compartimento sua yakuana, pó sagrado, e puxou o rito xamânico, pedindo a yoyoma para afastar o perigo. O perigo jamais se afastaria até o fim da expedição. Mesmo assim, dias depois, os guerreiros de Maturacá, com todas as suas contradições e segredos, após subida traumática, abraçaram a bandeira esfarrapada do Brasil, cravada nos poucos metros do ponto culminante do país. Só assim foi possível, durante a volta, dias depois, em descida acelerada do maciço, com a comida em falta e as energias no fim, contemplar as paisagens serranas que lembram jardins de Burle Marx, lá no alto, e os igarapés cor de ouro pintados pelo sol, que se multiplicam na parte baixa, o calor de volta, a terra firme.

O Globo, 30/06/2014, País, p. 1, 6-7

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