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A hora de mudar

Estado de S. Paulo-São Paulo-SP
Autor: Lúcio Flávio Pinto
19 de Nov de 2002

Belo Monte será mais uma bomba de efeito retardado jogada sobre o colo de Lula, que poderá desarmá-la

O Conselho de Política Energética considerou a hidrelétrica de Belo Monte uma obra estratégica para o Brasil, a primeira até agora a ser definida nessa nova categoria. A Eletronorte, responsável pelo projeto, apresenta muitas justificativas para essa decisão. A barragem do rio Xingu, no Pará, vai adicionar 15% à atual capacidade de geração de energia do país, ou 11 mil megawatts (sua potência será inferior apenas à de Itaipu, de cujos 12 mil MW o Brasil só pode dispor da metade, pagando em dólar pelo que usa a partir desse limite). A área inundada será de apenas 400 quilômetros quadrados, um nada no território de um Estado com 1,2 milhão de km2. A população diretamente afetada será de 20 mil pessoas, 1% do contingente humano que uma hidrelétrica semelhante, a de Três Gargantas, na China, vai obrigar a se mudarem. Cada KW instalado em Belo Monte será pelo menos 15 dólares mais barato do que qualquer outra alternativa energética. Se ela não for construída, o buraco que abrirá no planejamento energético exigirá que seja dobrada a atual oferta de gás para novas termelétricas ou surjam oito usinas nucleares do porte de Angra II.

Por esses e outros fatores, a Eletronorte estava certa de que o edital para Belo Monte, com um investimento global de 6,5 bilhões de dólares (US$ 3,7 bilhões para a geração e US$ 2,8 bilhões para a transmissão), seria lançado ainda no governo Fernando Henrique Cardoso. A primeira das 20 turbinas da hidrelétrica, que seria inaugurada como a terceira maior do mundo, entraria em operação em 2008. Quando a motorização estivesse concluída, o Pará responderia por um quarto da energia do Brasil.

Provavelmente esse cronograma não será mais cumprido. A pedra no caminho ideal imaginado pela Eletronorte para Belo Monte é o seu EIA-Rima (Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental). Quando a conclusão do trabalho parecia apenas uma formalidade, a Procuradoria Regional da República no Pará denunciou a ilegalidade do serviço. Se for confirmada a liminar que o presidente do Supremo Tribunal Federal concedeu ao MP, embargando o EIA-Rima, o processo de licenciamento ambiental da obra terá que voltar ao ponto de partida. Uma história que deveria ter início na administração FHC poderá ser rescrita pelo governo Lula.

Controvérsias

Talvez por isso a dimensão política da decisão judicial, explícita ou implícita, ganhe mais ênfase. No entanto, a questão de fundo ainda é técnica. No plano estritamente ecológico, há o contencioso mantido pelo MP e a Eletronorte ao longo de centenas de páginas acostadas aos autos da ação civil pública, proposta pelo procurador Felício Pontes Júnior e referendada pelo ministro Marco Aurélio de Mello. A litigância se fundamenta em três controvérsias.

A primeira delas tem como centro as terras indígenas. O MP sustenta que a barragem vai afetar a vida dos seus vizinhos, os Juruna, e que a realização da obra exige, por isso, a aprovação do Senado. A Eletronorte alega que o impacto será indireto, poderá ser remediado ou minimizado, e que a consulta ao legislativo deverá ser feita depois, quando o impacto tiver sido avaliado, e não antes, quando é apenas uma hipótese de trabalho.

A segunda polêmica é quanto ao órgão licenciador. O MP defende a obrigatoriedade de submeter o EIA-Rima ao Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), que é federal, subordinado ao Ministério do Meio Ambiente. Já a Eletronorte entende que, embora o Xingu seja um rio federal, atravessando dois Estados, Mato Grosso (onde nasce) e Pará (onde deságua), o impacto do empreendimento vai ocorrer apenas no Pará. O órgão para conceder a licença, portanto, seria a Sectam (Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente), com competência concorrente à do Ibama.

A terceira divergência é sobre a escolha direta para a execução do EIA-Rima, sem concorrência pública, da Fadesp (Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa, da Universidade Federal do Pará). A Eletronorte defende esse ato argumentando que a fundação é pública, não possui fins lucrativos, está vinculada a uma universidade federal e dispõe da "reputação ético-profissional" prevista na lei das licitações para a dispensa da concorrência pública. O MP nega que a Fadesp se enquadre nessa exceção, lembrando que dois outros EIAs-Rimas por ela elaborados foram rejeitados, dando causa à paralisação das obras das hidrovias Araguaia-Tocantins e Teles Pires-Tapajós.

Há, nessa guerra judicial, lenha suficiente para alimentar uma fogueira de tamanho amazônico, capaz de ser detectada por qualquer satélite. Mesmo compondo uma agenda respeitável, que pode vir a ser muito útil para a história da construção de barragens no Brasil, um dos países com maior tradição nesse tipo de obra no mundo, a controvérsia MP-Eletronorte não toca em questões que realmente são mais importantes do que o percurso do EIA-Rima de Belo Monte. Se atentar para essa dimensão, o novo governo federal pode promover a verdadeira conciliação entre o represamento de rios para a geração de energia e as exigências do bem-estar social e ambiental, atacando os alicerces de uma má construção e não apenas os seus elementos externos ou decorativos.

Já é um atestado de desprezo aos ensinamentos do passado autorizar a construção de mais uma grande hidrelétrica na Amazônia sem uma visão de conjunto sobre a bacia que drena águas para essa usina. Na visão de microcosmo da Eletronorte, o universo de abrangência de Belo Monte são os 400 km2 do reservatório e seu entorno. Do ponto de vista da engenharia, há coerência nessa delimitação. Mas não da perspectiva do desenvolvimento, qualquer que seja o seu complemento (humano, social, econômico, sustentável, holístico).

A bacia do rio Xingu se espraia por uma área de quase 500 mil km2, ou 6% de todo o Brasil. No pique da cheia, descarrega 30 milhões de litros de água por segundo, 14 milhões dos quais passarão pelas turbinas da usina para gerar sua capacidade máxima de energia, ou 11 mil MW. Na estação seca, entretanto, a vazão cai para apenas 500 mil metros cúbicos de água por segundo, quase 30 vezes menos. Não dará para acionar nenhuma das 20 máquinas da hidrelétrica. Cada uma delas engole 700 mil metros cúbicos de água por segundo para alcançar sua capacidade individual, de 500 MW. É por isso que durante quatro meses por ano a grande usina ficará praticamente parada.

Aproveitamento a montante

Se Belo Monte é tudo de bom que a Eletronorte garante ser, ela é um elemento na ocupação do vale do rio Xingu, o mais importante já delineado, mas não é tudo. Se colocada como esse elemento singular no conjunto da paisagem, talvez se mostre menos importante do que aparenta e talvez seus traços obscuros ou incompletos se revelem. Uma análise combinatória de fatores provavelmente confirmará o que a Eletronorte nega: que a grande hidrelétrica só assumirá plena viabilidade com outro aproveitamento a montante, ou outros. Novos reservatórios rio acima estocarão para ela a água que lhe fará grande falta durante a estiagem, deixando seu fator de capacidade (a energia constante) abaixo do limite definido internacionalmente como econômico, de 50%.

Antes de decidir autorizar a construção da usina é preciso ter um plano de desenvolvimento do vale, que adequará a obra de engenharia ao espaço global, prevenindo surpresas desagradáveis no futuro e assegurando que os evidentes benefícios da hidrelétrica não serão contrapostos por seus custos humanos ou ambientais. Para que esse plano não se torne figura de retórica, deve ser votado pelo legislativo e transformado em lei, impondo aos transgressores as devidas sanções. E para executá-lo tem que ser criado e posto para funcionar o respectivo comitê de bacia.

O primeiro comitê de bacia da Amazônia está sendo instalado atualmente, na verdade, na Pré-Amazônia. Por enquanto, existe apenas um embrião do futuro dele na figura do Consórcio Intermunicipal de Usuários de Recursos Hídricos da Bacia do Alto Tocantins, em atividade no município de Alto Paraíso, em Goiás, no coração da bacia. Sua jurisdição abrange apenas Goiás, Tocantins e o Distrito Federal, 50 mil km2 dos 850 mil km2 de toda a bacia, mas as águas da distante nascente vão desaguar perto de Belém, no litoral do Pará, antes passando pelas turbinas da hidrelétrica de Tucuruí, num percurso de mais de dois mil quilômetros. Significa que quando do embrião nascer o organismo maduro, talvez ele tenha mais que consertar do que criar.

A legislação de água ainda é recente, mas é essencial para uma região que concentra 15% da água de todos os rios do planeta. Tem que ser posta em prática - e já. Sem cumpri-la, ainda que o Ministério Público vença a queda de braço judicial contra a Eletronorte, o ponto de partida do EIA-Rima não será verdadeiramente um ponto de partida novo, capaz de refazer a história das más relações entre a engenharia de barragens e a ecologia, a antropologia, a sociologia e as outras ciências mais afins com o indivíduo e o social. Logo, não haverá novo ponto de chegada. Por portas e travessas, tudo mudará para que tudo continue como antes, seja sob a bandeira aristocrática do sociólogo Fernando Henrique Cardoso como da flâmula operária do torneiro mecânico Luiz Inácio Lula da Silva.

Recebendo mais uma bomba de efeito retardado, jogada sobre seu colo, Lula pode tratar de desarmá-la e transformá-la numa ferramenta positiva para eliminar, no nascedouro (o momento da elaboração do projeto), uma questão fadada a se desviar para as barras da justiça por defeito de origem. Defeito que consiste em gestar a obra em ambiente fechado, transformá-la em fato consumado e só então apresentá-la ao distinto público para discussão, avaliação e aparente decisão. Esse momento acaba por ser apenas para inglês ver no Brasil. Até os ingleses já sabem disso. Aos brasileiros falta, agora, mudar esse hábito, essa cultura, essa história.

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