VOLTAR

Histórias da Amazônia

O Globo, Segundo Caderno, p. 6
Autor: RÓNAI, Cora
13 de Jul de 2017

Histórias da Amazônia
A proposta de juntar a tecnologia do Google com o conhecimento dos índios para mapear territórios foi bem recebida

Cora Rónai

Um dia, aproveitando que estava em São Francisco, chefe Almir Suruí, líder dos Paiter Suruí, vestiu seu cocar e seus colares e foi à Google, ter uma conversa séria com a tribo da tecnologia. Precisava proteger a sua terra e o seu povo, escondidos na fronteira entre Rondônia e Mato Grosso, e desconfiava que a melhor maneira de fazer isso era dando-lhes visibilidade. Arco e flecha tinham se provado ineficazes na tarefa de defendê-los; talvez fosse hora de recorrer a ferramentas mais modernas, como celulares e computadores.
- O problema é que você olhava o Google Earth e via São Paulo em detalhes, via o Rio de Janeiro todo, mas quando chegava à Amazônia era como se ninguém vivesse lá: nós não estávamos no mapa - explica chefe Almir, que perdeu muito tempo em cibercafés tentando, em vão, encontrar a sua casa.
O seu cocar impressiona até em São Paulo, onde não é de todo incomum ver um cocar numa ou noutra manifestação, mas imaginem a sensação que causou aquela obra-prima da arte plumária na sede do Google!
Quem acha que o hábito não faz o monge tem duas ou três coisas a aprender com os caciques. Sua proposta de juntar a tecnologia da casa com o conhecimento dos índios para mapear territórios que, até então, ninguém ainda tinha visualizado, foi recebida com entusiasmo. Uma equipe de dez pessoas foi despachada para a selva, para estudar as condições locais, e para ensinar aos índios como se usavam as máquinas necessárias ao trabalho.
Estava dado o primeiro passo para o projeto apresentado anteontem em São Paulo por Rebecca Moore, a diretora do Google Earth que, há dez anos, recebeu chefe Almir no seu escritório. "Eu sou Amazônia" faz parte de um novo recurso da versão mais recente do Google Earth, lançada há dois meses, o Viajante, embutido num ícone em forma de leme. O Viajante - Voyager, em inglês - vai além das buscas que já nos acostumamos a fazer no aplicativo: ele conta histórias, como se fosse a longa edição multiplataforma de uma revista geográfica.
Primeiro conteúdo desenvolvido no Brasil para o Google Earth, ele vai além da tribo dos Paiter Suruí, e traz outros dez segmentos, alguns dirigidos por Fernando Meirelles - uns sobre os recursos naturais da região, outros sobre os quilombolas do Pará ou sobre aventuras de diferentes tribos, como os Yanomami, por exemplo, que se preparam para levar turistas ao Pico da Neblina. Há vídeos, mapas, textos, ações interativas. Está lindo, e a gente pode perder horas viajando na tela.
- Eu costumo brincar dizendo que as pessoas usam o Google Maps para se achar, mas o Google Earth é para se perder - diz Rebecca.
Tem razão.
Esqueci de perguntar o que exatamente chefe Almir estava fazendo em São Francisco naquele dia em que foi à Google, mas quem pensa que é estranho um cacique da Amazônia na Califórnia pode pensar de novo, porque a esta altura ele conhece mais de 30 países e tem rodado o mundo, ora buscando apoio para os povos indígenas, ora explicando como se pode proteger a floresta. O sucesso do seu trabalho é real e palpável: vistos no Google Earth, os 250 mil hectares do Território Sete de Setembro, a terra Suruí, são uma mancha verde perfeitamente delineada numa área quase toda desmatada.
Os Paiter Suruí viviam mais ou menos tranquilos nesse espaço até 1969, quando foi aberta a BR-364, e eles fizeram contato oficial com os brancos. A partir daí as portas do inferno se abriram, como de hábito nesses encontros, e a população foi dizimada, vítima de uma série de doenças para as quais não tinha resistência. De cinco mil pessoas, sobraram menos de 300. É um milagre que mesmo essas tenham sobrevivido. Hoje são cerca de 1,5 mil que, apesar de constantemente ameaçadas por madeireiros e garimpeiros, têm grandes planos para o futuro. Chefe Almir, primeiro de sua gente a ir para a universidade, onde estudou Biologia, pensa a longo prazo, e trabalha de olho nos próximos 50 anos. Por causa disso, e por causa de suas ideias francamente inovadoras, ele é uma figura bem conhecida nas áreas de meio ambiente e direitos humanos.
Armados com aparelhos Android, os Paiter Suruí se transformaram em eficazes guardiões das árvores. Eles medem a saúde da floresta e denunciam o desmatamento em tempo real. A parceria com o Google vai além do mapeamento geográfico. Em "Eu sou Amazônia", há um mapa cultural muito detalhado, em que estão assinalados os eventos que marcaram a história da tribo, as suas várias aldeias e os acidentes geográficos que as cercam, assim como as plantas e os animais que fazem parte desse rico universo.
Graças a esse mapa, que na verdade é uma minienciclopédia da vida local, descobri que os Paiter Suruí não caçam capivaras, que são consideradas sagradas. Elas não podem ser nem mortas nem comidas, e têm grande poder espiritual, porque um dia foram pessoas. Também são um símbolo importante na guerra, uma vez que garantem vitória nas batalhas.Taí, gostei desse povo.
______
"Eu sou Amazônia" pode ser acessado em g.co/eusouamazonia.

O Globo, 13/07/2017, Segundo Caderno, p. 6

https://oglobo.globo.com/cultura/historias-da-amazonia-21583069

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.