VOLTAR

História de índios e jesuítas na pradaria gaúcha

JT, Turismo, p.3E-4E e 6E-7E
13 de Mai de 2004

História de índios e jesuítas na pradaria gaúcha
Há 300 anos, as missões jesuíticas se estabeleceram em 30 cidades do Brasil, Paraguai e Argentina. Das sete que ficavam em território nacional, quatro ainda guardam um pouco desse tempo e mostram o passado em suas ruínas

AIANA FREITAS

No escuro da noite, o vento sopra forte e balança os galhos das árvores. De repente, um clarão ilumina as ruínas de uma igreja antiga, localizada sobre a terra plana de uma pequena cidade do Rio Grande do Sul. Uma voz grita: "Quem vem lá? Quem vem lá profanar minha ondulante pradaria?" É a Terra reclamando do barulho causado pela movimentação de pessoas, que, cada vez em número maior, se colocam em frente à velha igreja. A cena impressiona, e certamente provocaria susto nos menos informados, não fosse por um detalhe: ela faz parte de um espetáculo que ocorre há mais de 20 anos em São Miguel das Missões, quase na divisa do Brasil com a Argentina.
O espetáculo Som e Luz é, sem dúvida, o que melhor resume a história dessa região distante, palco de guerras. Trinta cidades do Brasil, do Paraguai e da Argentina sediaram, há quase 300 anos, as missões jesuíticas. Hoje são 8 sítios arqueológicos no Paraguai e 15 na Argentina. Quatro das sete cidades que ficavam em território nacional ainda guardam um pouco do passado: São Miguel, São Lourenço, São João Batista e São Nicolau. E, embora sua infra-estrutura ainda deixe a desejar, elas querem agora atrair visitantes interessados em descobrir mais sobre essa história.
Os padres jesuítas chegaram ao sul do País no século 17 com uma missão: evangelizar os índios da região, entrecortada pelos Rios Uruguai e Paraguai. Inicialmente, foram recebidos a flechas. Mais tarde, conseguiram convencer os nativos da importância de seu trabalho. Junto com eles, montaram pequenas cidades que chegaram a abrigar até 6 mil pessoas cada - elas eram chamadas de reduções.
Todas as reduções obedeciam a um mapeamento único. A mais importante das edificações era a igreja, com imensas torres. Ao seu lado, ficavam a casa dos padres, a escola e a oficina onde eles ensinavam seus conhecimentos para os índios. Do lado oposto, fileiras de casas que serviam de moradia para os nativos. No meio de tudo, a parte mais importante da comunidade: a praça, centro das atividades do povoado, local de desfiles e encenações religiosas.
As construções eram feitas com pedras lapidadas pelos próprios índios, e suas paredes tinham até três metros de espessura. Praticamente toda essa.fortaleza, porém, foi abaixo em meados do século seguinte. Após passarem quase incólumes pelos bandeirantes paulistas que foram até lá atrás de pedras preciosas, as reduções não resistiram a um outro inimigo, velho conhecido dos nativos brasileiros: os conquistadores espanhóis e portugueses.
Foram eles que, na sua briga pelas terras do sul do continente, decretaram o fim das missões jesuíticas. As terras brasileiras onde se concentravam as reduções, que à época pertenciam aos espanhóis, mudaram de donos quando da assinatura do Tratado de Madri, em 1750, e foram parar nas mãos dos portugueses. Pelo acordo, os padres e seus catequizados deveriam abandonar as vilas que haviam construído e mudar-se para o outro lado do Rio Uruguai, do lado da Argentina. Os índios se recusaram a fazer a mudança. E foram mortos empunhando seus arcos e fechas contra o exército fortemente armado português. Era o fim da utopia missioneira.
Dos povoados que faziam parte da rota missioneira brasileira, aquele que ficava onde hoje está a cidade de São Miguel das Missões é o mais conservado. A igreja ainda está lá, quase inteira no local onde antes se localizava a praça central da redução que os turistas podem assistir, todas as noites, ao Som e Luz. Trata-se, como o próprio nome diz, de um espetáculo baseado apenas em efeitos de iluminação e em uma gravação, feita por atores famosos que contam, em 48 minutos, como aquela terra testemunhou a construção e o fim de toda uma comunidade. Quando as árvores de iluminam, é a voz da atriz Maria Fernanda, fazendo as vezes de Terra, que tenta assustar os visitantes curiosos perguntando o que eles querem por lá. Em seguida, a luz é direcionada para a igreja: ela é a outra personagem-chave na encenação e, na voz de Fernanda Montenegro, tenta convencer a Terra de que quem está ali, pelo menos desta vez, é de paz.
A viagem foi feita a convite da Associação Brasileira de Albergues da juventude.
Sete Povos das Missões

Esta região gaúcha tem vestígios de um período cidades cada vez mais esquecidas. Só há oito fundamental para a formação do País. Mas a anos a região começou a investir no que quer degradação dos povoados jesuíticos deixou as sete tomar sua principal fonte de renda: o turismo
Pouco pode ser visto hoje da redução de São João Batista
Foi na redução de São João Batista que os índios guaranis fizeram a primeira fundição da Região Sul do País - fato representado no painel acima, confeccionado posteriormente. Pouca coisa sobrou do povoado, de 1697. As paredes laterais da igreja ainda estão de pé. Também é possível ver ainda vestígios do antigo cemitério que ficava ao lado dela. 0 sítio arqueológico está localizado na cidade de Entre-Ijuís, a 20 quilômetros de São Miguel.
Arvores nas ruína de São Lourenço
0 padre Bernardo de Lã Veja fundou a redução de São Lourenço Mártir em 1691. Agora a vila faz parte da cidade de São Luiz Gonzaga e fica a uma distância de 30 quilômetros do centro do município. Entre as cidades missioneiras que ainda guardam vestígios de sua história, porém, essa foi uma das que mais sofreram com má conservação. O lugar fica praticamente abandonado durante anos. Por isso, os turistas se deparam hoje cor um cenário inusitado: árvores nasceram sobre as pedras feitas pelos índios e animais pastam no lugar onde antes era o interior da igreja.
Em Santo Ângelo, nova catedral
Onde ficava a igreja missioneira da vila de Santo Ângelo Custódio (1706), hoje está a Catedral Angelopolitana. Mas a construção, de 1929, imita o antigo templo de São Miguel. Imagens esculpidas em pedra representando os santos padroeiros dos Sete Povos recepcionam os visitantes.

São Miguel: é lá que você vê as ruínas
A cidade, a 500 km de Porto Alegre, é um destino obrigatório para quem quer ter uma idéia de como eram os povoados fundados por jesuítas. Nela se está o complexo declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco
Santo Ângelo é conhecida, no Sul do País, como a "capital das missões". Possui mais de 100 mil habitantes, ampla oferta de comércio e serviços e o único aeroporto da região. É a vizinha São Miguel, porém, que ostenta o título que mais dá orgulho a quem vive nas regiões que protagonizaram a saga missioneira: suas ruínas foram declaradas Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco, em 1983. Um ano antes, em 1982, operários que trabalhavam nos arredores da cidade descobriram uma antiga fonte, de onde os índios tiravam a água que abastecia a comunidade. A fonte foi restaurada em 1993 e é hoje um dos pontos turísticos da cidade.
Nada que se compare, porém, à atração exercida pelo templo de São Miguel Arcanjo, construído em 1745, mais de 60 anos após a fundação da redução (em 1687). Dentre as vilas conhecidas por Sete Povos das Missões - São Miguel, São Borda, São Nicolau, São Luiz Gonzaga, São Lourenço Mártir, São João Batista e Santo Ângelo Custódio -, ela é a única igreja que ainda se mantém quase totalmente de pé. Apenas o teto não existe mais, vítima de consecutivos incêndios durante a guerra contra os portugueses. Em frente ao templo, encontra-se ainda um exemplar do que se tomou o símbolo máximo da região: a cruz missioneira, com dois braços horizontais e bordas arredondadas.
A visita às ruínas de São Miguel (a 500 km de Porto Alegre) impressiona, mas só é completa se acompanhada pelo espetáculo Som e Luz, criado em 1978 pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Apresentado todo dia à noite, ele narra a história da redução por meio de duas personagens que presenciaram seu auge e sua decadência: a Igreja e a Terra Visita e ingresso para o show custam R$ 5 cada.
Quem vai à igreja de dia também pode conferir imagens religiosas esculpidas pelos índios para enfeitar o templo. Elas ficam no museu em frente às ruínas, projeto do arquiteto Lúcio Costa. A edificação imita uma casa usada pelos índios nas reduções. Ali está o mais rico acervo da estatuária missioneira: anjos e santos feitos em madeira e até o sino original da igreja, de 1726, que pesa uma tonelada.
Há poucas opções de passeio na cidade além da igreja e do museu. Com isso, moradores têm investido no turismo rural, oferecendo passeios a cavalo e idas a fazendas. "0 que nos falta é um aeroporto com alfândega", afirma o secretário de turismo e cultura de São Miguel, Joaquim Manoel Rolim de Moura. "Poderíamos fazer a integração do turismo nas cidades missioneiras do Brasil com os países vizinhos."
A redução de São Miguel teve 6 mil moradores. Hoje, a cidade possui um número pouco maior de habitantes: cerca de 7 mil. Ali bem perto, é possível encontrar alguns dos poucos guaranis que ainda habitam a região. Cerca de 170 índios vivem em uma área de preservação ambiental de 230 hectares doada pelo governo do Estado. Para o cacique Vera Sondaro, ou Floriano, como é chamado na cidade, "o turismo é muito importante". Não por acaso, índios da aldeia vão todos os dias vender artesanato na entrada do museu.

NOSSO GUIA
MISSÕES
COMO CHEGAR De São Paulo para Santo Ângelo, o bilhete de avião custa a partir de R$ 910, ida-e-volta, pela Ocean Air (tel. 0300-7898160). Para ir até São Miguel e a outras cidades da rota missioneira, a viagem deve ser feita por ônibus de linha, pela empresa Antonello (saídas durante todo o dia).
ONDE FICAR Os preços das diárias são para casal, com café. SÃO MIGUEL Pousada das Missões: Rua São Nicolau, 601, tel: (0xx55) 3381-1202. A R$ 54 e R$ 64 (com ar-condicionado). Para associado da Hostelling International (albergues da juventude): R$ 22 por pessoa. Wilson Park Hotel: Rua São Miguel, 664, tel. (0xx55) 3381-2000. Por R$ 110.
SANTO ÂNGELO Turis Hotel: Rua Antônio Manoel, 726, tel. (0xx55) 3313-5255. Custa entre R$ 48 e R$ 98.
Maerkli: Av. Brasil, 1.000, tel. (0xx55) 3313-2127. A R$ 129.
ONDE COMER SÃO MIGUEL Casarão: Avenida Borges do Canto, 1.244, Centro, tel. (Oxx55) 3381-1203. Refeição servida em bufê. Com espeto corrido, pizza, lanches. Sai a R$ 11,90 o quilo, com churrasco.
O Guarani: Avenida Borges do Canto, 1.926, Centro, tel. (0xx55) 3381-1060. 0 café missioneiro, que inclui mais de 30 produtos, custa R$ 10 por pessoa (servido para um mínimo de 15 pessoas). No bufê, café missioneiro, espeto corrido, pizzas, lanches. Sai entre R$ 8 e R$ 10 (com churrasco).
SANTO ÂNGELO Churrascaria Faldino: Rua Santo Ângelo, 84, tel. (0xx55) 3312-6250. 0 bufê, que inclui também churrasco, custa R$ 6 por quilo.
SÃO LUIZ GONZAGA Cantina Restaurante: Rua São João, 1.946, tel. (0xx55) 3352-4469.0 bufê, em estilo self-service, sai a R$ 12,90 por quilo. Restaurante e Pizzarla do Mário: tel. (0xx55) 3352-2938. O quilo do bufê, em estilo self-service, custa R$ 9,50.
INFORMAÇÕES ÚTEIS Igreja e museu em São Miguel: as ruínas ficam na Avenida Antunes Ribas, 1.486.0 telefone é (0xx55) 3381-1399. A entrada sai a R$ 5. Para ver o espetáculo Som e Luz, paga-se mais R$ 5 - no inverno, às 20h; no verão, às 21 h. Compras: em Santo Ângelo, a Flecha Mágica (Rua Antunes Ribas, 1.002, tel. (Oxx55) 3312-5428) vende objetos de decoração, camisetas e livros. Pacotes: não incluem aéreo a partir de São Paulo, apenas o transporte terrestre na região. A Missões Turismo (tel. Oxx55/3381-1319) oferece dois programas pelas ruínas. 0 primeiro, dentro do Brasil, inclui quatro noites de hospedagem em apartamento duplo, ida à Fazenda Missioneira, passeios pelas principais cidades com guia, ingressos e traslado a partir do aeroporto de Santo Ângelo. Sai entre R$ 495 e R$ 685 por pessoa. Na segunda opção, os vizinhos Argentina e Paraguai são incluídos no roteiro de cinco noites (três no Brasil e duas na Argentina). Custa de R$ 780 a R$ 1.190 por pessoa. Caminho das Missões: informações sobre a caminhada podem ser obtidas pelo telefone (0xx55) 3312-9632 ou no site www.cami-nhodasmissoes.com.br. Os grupos formados possuem entre 10 e 14 pessoas, e os preços variam de R$ 250 e R$ 490 por participante -já estão incluídas alimentação e hospedagem.
Para se sentir um missionário
O Caminho das Missões é um circuito que liga os sítios arqueológicos da região. Os participantes percorrem a pé cerca de 4,5 quilômetros diários pelas antigas estradas que conectavam as reduções jesuítas
Conhecer a região missioneira caminhando pelas antigas estradas que ligavam as reduções jesuíticas umas às outras. É essa a experiência proposta pelo Caminho das Missões, criado em 2001 por empresários da região. Trata-se de um roteiro percorrido a pé por grupos de até 14 pessoas. Elas passam pelos sítios arqueológicos de São Nicolau, São Lourenço (em São Luiz Gonzaga), São João Batista (Entre-Ijuís) e São Miguel das Missões. 0 ponto de chegada é Santo Ângelo, em frente à catedral da cidade. .
"Gente de todo o País vem fazer o caminho. São pessoas atrás de introspecção e auto-conhecimento diz Marta Benatti, uma das coordenadoras do passeio. A busca espiritual, soma-se, é claro, o aspecto histórico e religioso. O caminho pode ser percorrido em três roteiros. Eles podem durar três, cinco ou sete dias, em extensões que variam de 78 a 180 quilômetros. Os preços cobrados pela travessia partem de R$ 250 e chegam a R$ 490 por pessoa.
Durante todo o percurso, os peregrinos contam com a companhia de um guia. Depois de andar cerca de 4,5 quilômetros diários, o grupo pára para descansar em pequenas pousadas espalhadas pela região. Algumas vezes, os integrantes dormem até em casas de moradores, que lhes cedem quartos e, não raramente, os recebem com doces e outros quitutes.
Todos os participantes ganham um cajado e uma cruz missioneira para levar pelo caminho. No fim da jornada, recebem um certificado pela missão cumprida.

JT, 13/05/2004, p. 3E-4E, 6E-7E.

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.