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HIDROVIA NA MARRA?

Site do ISA-Socioambiental.org-São Paulo-SP
Autor: Fernando Mathias Baptista
16 de Mar de 2001

Tráfego de barcaças na região do Rio Araguaia deflagra a operação ilegal da Hidrovia Araguaia-Tocantins-Rio das Mortes e revela a política de fato consumado do Ministério dos Transportes

Um comboio de chatas graneleiras encontra-se ancorado na região de Barra do Garças (MT), pronto para receber a primeira carga de grãos vindas do estado do Mato Grosso, e transportá-la pelo Rio Araguaia até Couto Magalhães (TO). De forma prematura e ilegal, deflagra-se, assim a primeira operação da Hidrovia Araguaia-Tocantins-Rio das Mortes.
A Hidrovia Araguaia-Tocantins é alvo de várias ações judiciais por parte do Ministério Público Federal e do povo indígena Xavante. Eles contestam as obras de engenharia implementadas antes da concessão do licenciamento ambiental, e a própria legalidade de tal licenciamento. Isso por conta de fortes evidências de manipulação de informações no Estudo de Impacto Ambiental (EIA/Rima) divulgadas pela equipe de antropólogos, que elaborou o estudo dos impactos do projeto sobre os povos indígenas da região.
Hoje as obras da hidrovia estão proibidas judicialmente e o próprio procedimento de licenciamento ambiental está suspenso por decisão do Tribunal Regional Federal em Brasília.
A empresa de transportes Araguaia Navegação Fluvial, responsável pela viagem, que acontecerá até o início da próxima semana, e o gerente do Ibama em Goiás, Carlos de Freitas Borges, argumentam que não se trata da operacionalização da Hidrovia mas de uma atividade de navegação isolada, permitida por uma ressalva na decisão judicial do TRF. Borges afirmou também que só iria agir caso ocorresse dano ambiental. E negou-se a reconhecer que esta operação é ilegal, já que as licenças ambientais para a Hidrovia ainda não foram concedidas.
No entanto, a associação desta operação com o início das atividades da hidrovia é admitida pelo superintendente da Administração da Hidrovia, AHITAR, Carlos Mota, em declarações ao jornal "O Popular" de Goiás, também pela assessoria de imprensa do Ministério dos Transportes e pela Companhia Docas do Pará. De acordo com eles, o embargo judicial alcança só as obras da Hidrovia, o que permite, portanto, a navegação por parte da empresa Araguaiana.
É bom lembrar que a decisão do TRF permite a navegação já existente nos rios antes do projeto da hidrovia, não abrangendo o trânsito de grandes barcaças. A decisão do TRF visa não impedir que outras atividades de navegação, que não têm relação com a hidrovia sejam paralisadas, prejudicando terceiros.
De acordo com a Ahitar, as empresas transportadoras estão iniciando suas operações de transporte de cargas pesadas com base em um suposto "direito de ir e vir". Entretanto, há que se ressaltar que o direito constitucional de ir e vir é um direito individual da pessoa física, consubstanciado no art. 5o, XV da Constituição Federal, e que visa impedir o constrangimento ou retenção ilegal de pessoas em situações de abuso de poder ou arbitrariedades por parte do Estado. Não se aplica a pessoas jurídicas, como empresas privadas ou públicas, porque a pessoa jurídica é uma ficção legal, ou seja, uma criação da lei para que grupos de pessoas em torno de um objetivo comum possam exercer seus direitos. Não existe corpóreamente, apenas enquanto criação social do homem, razão pela qual é logicamente impossível estender o direito de ir e vir a esta classe de pessoas.
Contudo, essas mesmas pessoas jurídicas devem se submeter ao que a mesma Constituição determina, dessa vez no art. 225, § 1o, inciso IV: necessidade de Estudo Prévio de Impacto Ambiental para obras ou atividades potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente.
De acordo com este dispositivo, a tão somente circunstância de risco potencial de degradação por uma atividade (transporte fluvial de cargas pesadas, no caso) já é por si suficiente para que se exija um EIA/Rima e um processo de licenciamento, o que não está ocorrendo nesta situação.
A navegação das chatas nada mais é que a operacionalização da hidrovia, e, portanto, sujeita a estudos ambientais exigidos pelo Ibama no Termo de Referência elaborado para a preparação do EIA/Rima, no início do licenciamento ambiental. Este termo exige uma série de estudos sobre a operação da hidrovia, como impactos resultantes de revolvimento do lodo, erosão das margens. Além disso, o estudo de risco e um plano de ação emergencial em caso de acidentes com as embarcações, o que tampouco existe.
A empresa Araguaiana afirma, que em época de cheias é possível fazer o transporte de cargas pesadas, sendo desnecessário o licenciamento ambiental da atividade. No entanto, o próprio EIA/Rima elaborado no processo de licenciamento pela Cia. Docas do Pará afirma, que especialmente em época de cheias, a navegação em certos pontos torna-se ainda mais arriscada, tendo em vista que as aflorações rochosas ficam submersas, dificultando a passagem. Nenhum destes riscos foi considerado na operação iminente.
A estes riscos vêm somar-se o fato de que o peso da carga supera a capacidade prevista no EIA/Rima para as barcaças. A tentativa de implantação prática da Hidrovia Araguaia-Tocantins, com base em argumentos distorcidos atesta a política de fato consumado levada a cabo pelo Ministério dos Transportes e corroborada pelo Ibama e suas representações locais.
Como o licenciamento ambiental da hidrovia vem encontrando resistência por parte da sociedade civil, povos indígenas da região e Ministério Público Federal, o Ministério dos Transportes, a Companhia Docas do Pará, a AHITAR e a empresa Araguaiana preferem utilizar-se de estratagemas para tentar implementar a via fluvial na marra, ao arrepio da Constituição Federal e das leis.
A empresa Araguaiana se negou a divulgar o paradeiro exato das barcaças, de forma a dificultar eventuais ações de fiscalização. Ora, se alegam que a operação é legal, qual a necessidade de esconder as embarcações?
É a negação do próprio Estado de Direito consubstanciada na implementação forçada e forjada de um projeto que visa a privatização dos lucros e a socialização de seus custos sociais e ambientais.
Para a realização da operação de transbordo da carga, que deve chegar em Barra do Garças em cerca de 80 caminhões, foi construída uma "estação de transferência", verdadeiro porto de carga que vai transferir os grãos dos caminhões para as barcaças. De acordo com a Araguaiana, tal obra não necessitaria licenciamento ambiental porque não consiste propriamente em um porto. No entanto, é incontroverso que esta obra foi construída no âmbito do projeto da Hidrovia Araguaia-Tocantins. Portanto, foi construída ilegalmente, tendo em vista que a decisão judicial emanada pelo TRF em Brasília suspende e proíbe toda e qualquer obra relacionada à implantação da hidrovia (envolvendo aí portos, "estações de transferência", como querem os empreendedores, eclusas e outras instalações).
A sociedade civil organizada encaminhou hoje cartas de repúdio ao Presidente da República, e aos ministros do Meio Ambiente, dos Transportes, da Marinha e da Justiça, denunciando a ilegalidade da operação.
O Ministério Público Federal nos estados de Mato Grosso e Goiás também preparam iniciativa judicial para barrar o transbordo deste carregamento, sob a alegação de que se trata da operacionalização prática da hidrovia e que o porto construído fere a determinação judicial emanada pelo TRF.
A Fundação Estadual do Meio Ambiente de Goiás – Femago está deslocando uma equipe ao local previsto para o embarque, para a realização de uma vistoria técnica.

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