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Hidrelétrica em terras indígenas

Luciana Ramos
Autor: Luciana Ramos
25 de Abr de 2005

Prezados colegas,

Utilizo-me deste espaço para divulgar/denunciar que tramita no
Congresso Nacional em regime de urgência o pedido de autorização para a
construção da usina hidrelétrica de São Jerônimo que, se construída
alagará duas terras indígenas Kaingang e Guarani e impactará outras
cinco áreas indígenas localizadas no norte paranaense. O processo de
consulta aos grupos indígenas afetados, levado a termo pelo deputado
federal do PFL-PR Luciano Pizzatto, apresenta uma série de
irregularidades, abordadas na Nota Antropológica no 03, que segue
anexa. Cabe esclarecer que, até o presente momento, a única
autorização expedida pelo CN para implantação de empreendimentos em
área indígena foi a de Serra da Mesa, com consequências
catrastóficas para os grupos indígenas atingidos. Nesse sentido, a
nota antropológica e esse e-mail visam informar e sensibilizar a
comunidade acadêmica, especialmente a envolvida com a questão
indígena, para que, caso seja necessário, nos mobilizemos em apoio
aos Kaingang e Guarani que já vivem em diminut as
áreas, muitas das quais impactadas por empreendimentos do setor
elétrico.
Por favor, divulgem!
Luciana Ramos

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
6ª Câmara de Coordenação e Revisão
(Índios e Minorias)

Nota Técnica no 03-Parecer/2005 Londrina, de
abril de 2005Referência: Proc. no08115.002007/98-21 - Inquérito
Civil Público no 003/98Grupo: Kaingang, Guarani e XetáTerra
Indígena: Todas da bacia do rio Tibagi/PRInteressado: João Akira
Omoto, Procurador da República, PRM/Londrina-PRAnalista Pericial
Responsável: Luciana Ramos

Propósitos
A presente nota técnica toma como referência de análise o
Projeto de Lei no 381, de 08 de dezembro de 1999, que tramita na
Câmara dos Deputados em regime de urgência, desde 17 de outubro de
2001. Trata-se da solicitação de autorização para a construção da
Usina Hidrelétrica São Jerônimo, no rio Tibagi, no Estado do Paraná,
que se sobrepõe a partes das terras indígenas de três grupos etno-
culturais: Guarani, Xetá e Kaingang. Em especial esta nota volta-se
para o apontamento dos equívocos cometidos ao longo dos
procedimentos viabilizados junto às populações indígenas locais
pelos membros da sociedade envolvente, com o intuito de informá-las
e/ou consultá-las a cerca do empreendimento em questão - seus
aspectos positivos e negativos -, frente a seus modos de vida
particulares, conforme lhes assegura a Constituição Federal.
Se a Usina de São Jerômino tiver a sua construção autorizada pelo
CN, afetará sete terras indígenas, sendo que duas serão alagadas -
Apucaraninha e Mococa. Como é sabido, os licenciamentos ambientais
de empreendimentos que se utilizam de recursos hídricos são de
competência do órgão estadual ou federal de meio ambiente,
respeitados os limites constitucionais. Contudo, a hidrelétrica de
São Jerônimo, como está atualmente proposta, atinge categoria
jurídico-fundiária - terra indígena - e etno-cultural - sociedades
indígenas - que a Constituição Federal de 1988 quis proteger,
dedicando-lhe dois artigos: 231 e 232. Essa proteção se expressa de
maneira clara no inciso 3o do 231 que, ao tratar da exploração de
recursos hídricos em áreas indígenas, condiciona o processo de
licenciamento à autorização do Congresso Nacional e à consulta às
comunidades afetadas.
A forma como devem proceder as consultas junto às populações
indígenas carece de maiores reflexões. Todavia, a maneira como foi
conduzido o processo de consulta promovido pelos membros da Comissão
de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias, da Câmara dos
Deputados, junto aos índios do Tibagi, resultou em vícios que, de
uma perspectiva antropológica, invalidam-no. Há que se considerar
alguns aspectos culturais e situacionais para que se assegure às
comunidades indígenas uma consulta séria e informada. Somente desta
maneira os direitos indígenas, expressos constitucionalmente, não
resultarão meramente retóricos.

Breve contextualização histórica da bacia do Tibagi
A bacia do Tibagi situa-se integralmente no interior do Estado do
Paraná, tendo as cabeceiras no município de Ponta Grossa e a foz no
rio Paranapanema. O Tibagi possui uma extensão de 550 km e ocupa uma
área de aproximadamente 26.000 km2. Todo este rio foi parte do
território histórico dos Kaingang e Guarani. Atualmente esses grupos
indígenas detêm a posse permanente apenas de pequenos fragmentos do
antigo território. O processo de redução e invasão das áreas
indígenas da região foi levado a termo pelas populações não-
indígenas ainda no início do século XVIII, tendo se intensificado ao
longo do século XIX.
Na década de 1940, novamente os indígenas do Tibagi tiveram o seu
território esbulhado, desta vez, por iniciativa do governo do Estado
do Paraná, cuja intenção era ceder as terras do norte paranaense
para a implantação de fazendas cafeicultoras e de criação de gado.
Também nesta década, foram implantadas pequenas centrais elétricas
na bacia do Tibagi, algumas integralmente dentro dos já reduzidos
territórios indígenas. Outros empreendimentos do setor elétrico,
tais como linhas de transmissão, foram também instalados nas décadas
seguintes nessas áreas; não para atendê-las, mas para fornecer
energia às cidades que se formavam e desenvolviam sob o antigo
território tradicional.
O que se quer aqui ressaltar é que as populações indígenas locais,
que correm risco de serem impactadas pela hidrelétrica proposta, já
padecem pelo convívio com empreendimentos da sociedade nacional
dentro das diminutas terras que conseguiram manter. Em Apucaraninha,
desde a década de 1940, está instalada a UHE Apucaraninha. Caso a UH
São Jerônimo seja construída, provavelmente afogará essa usina e
mais aproximadamente 300 alqueires da TI Apucaraninha. Em Barão de
Antonina, desde a década de 1960, estão instaladas aproximadamente
15 torres de transmissão de energia elétrica, ao longo de
aproximadamente 10 Km, cortando a área no sentido norte/sul. Já a
área de Queimadas é cortada pela linha de trem da RFFSA, que ocupa
uma extensão de 31,821 ha da TI, desde a década de 1980.
As comunidades indígenas do Tibagi têm-se mobilizado, especialmente
a partir da década de 1980, no sentido de terem os seus prejuízos
culturais, ambientais e as restrições de uso em partes de suas
terras indenizados. Todavia, os processos são lentos e geralmente
implicam muitas perdas para os grupos indígenas, que constantemente
se vêem confusos diante dos modos de resolução de conflitos
dos "brancos", ou seja, por meio de procedimentos administrativos ou
judiciais, cheios de trâmites e regras preestabelecidas; algo que
ainda hoje é muito distante de suas realidades culturais e
existenciais.
Também é de extrema importância apontar nesta análise que a situação
fundiária das terras indígenas no Tibagi não está de todo concluída.
Consta em avaliação na Funai/BsB uma solicitação dos índios de
Apucaraninha de revisão dos limites de sua área, que se apresenta
como demasiadamente pequena em relação, especialmente, à população.
Por fim, cabe relatar que, desde meados da década de 1960, a bacia
do rio Tibagi vem sendo estudada, visando à identificação dos
trechos com potencial para geração de energia. Tais investidas
desencadearam algumas propostas de aproveitamento. Reestudos foram
feitos na década de 1980, resultando na indicação de construção de
sete usinas, dentre elas, a de São Jerônimo. No ano de 1998 o
Consórcio São Jerônimo apresentou ao IBAMA os EIA/RIMA de quatro
dessas hidrelétricas: Cebolão, Mauá, Jataizinho e São Jerônimo.
Todos os estudos apresentados pelo empreendedor foram questionados
por apresentarem problemas estruturais. Como decorrência, em
dezembro de 2000 o consórcio tornou pública a sua desistência em
obter licenciamento ambiental de todas as outras UH acima citadas,
exceto a de São Jerônimo. Recentemente - em dezembro de 2004 -,
empreendedores voltaram a solicitar o licenciamento da UH Mauá, com
algumas alterações no projeto de engenharia, junto ao órgão
ambiental do estado do Paraná - IAP-PR.

As Consultas Efetuadas:
Com vistas ao licenciamento ambiental da UH São Jerônimo, até o
presente momento, foi realizada uma Audiência Pública pelo IBAMA e,
visando à obtenção de autorização do Congresso Nacional, foi
realizada uma consulta formal junto a alguns dos grupos indígenas
sob risco de serem afetados, pela Comissão de Defesa do Consumidor,
Meio Ambiente e Minorias, da Câmara dos Deputados. Esta consulta
ocorreu no contexto de duas reuniões distintas, mas interconectadas.
O IBAMA teve sua primeira Audiência Pública marcada, mas cancelada
por força de ação judicial, proposta pela ANAB - Associação
Brasileira dos Atingidos por Barragens. Posteriormente, no dia 08 de
março de 2000, o órgão conseguiu realizar Audiência Pública, da qual
participaram empreendedores, indígenas, outras populações sob risco
de serem impactadas pela UH São Jerônimo, prefeituras dos municípios
possivelmente atingidos, vários outros segmentos da sociedade
regional e local, bem como instituições públicas e privadas- FUNAI,
4ª e 6ª CCR do MPF, Universidade Estadual de Londrina e Maringá,
ONGs, dentre outras. Neste contexto, os índios posicionaram-se
contra o empreendimento, fazendo coro com os pesquisadores presentes
que, inclusive, apontaram por escrito, as falhas e inconsistências
contidas nos documentos apresentados como EIA/RIMA pelo consórcio
São Jerônimo.
Embora o pedido de autorização da UH São Jerônimo tramite em regime
de urgência na CD, no IBAMA o processo foi arquivado após a citada
Audiência Pública, por insuficiência dos estudos EIA/RIMA e pela não
superação dos vícios em tempo hábil. No contexto da CD, o Projeto de
Lei no 381/99, de autoria do deputado federal José Borba, PMDB-PR,
já passou por duas comissões: a de "Direito do Consumidor, Meio
Ambiente e Minorias" e de "Constituição, Justiça e Redação". Na
primeira comissão teve como relator o Deputado Federal Luciano
Pizzatto - PFL/PR - , que apresentou substitutivo ao projeto
original.
O Deputado Pizzatto, por meio dessa Comissão, foi o principal
articulador de duas reuniões visando à consulta formal aos índios, a
primeira realizada no dia 1o de abril 2000 na Câmara Municipal de
São Jerônimo da Serra-PR e, a segunda, no dia 26 de maio do mesmo
ano, realizada na terra indígena Apucaraninha. Nas duas
oportunidades os trabalhos foram coordenados pelo Deputado com a
presença do MPF e FUNAI, além de outros. Na primeira, conforme
relata documento da CDCMAM da CD, o deputado Pizzatto, uma vez junto
aos índios, frisou que "o Projeto de Decreto Legislativo visa
esclarecer os critérios para a execução do projeto, bem como a
compensação para a comunidade indígena Kaingang, através de
percentual a ser negociado do valor a ser distribuído a título de
royalties aos municípios inundados pelo reservatório da referida
UH....Em defesa da participação dos índios é que estava ali para
ouvir todas as lideranças a respeito dessas compensações e só daria
parecer ao referido projeto se ocorresse um acordo......o Deputado
Luciano Pizzatto passou a palavra às lideranças indígenas citadas.
Todas falaram que as terras a serem inundadas não poderiam ser
substituídas por outras de mesma dimensão, tendo em vista o valor
cultural das mesmas para eles". Na ocasião ficou acertada uma
segunda reunião, pois os indígenas de Apucaraninha queriam ouvir o
posicionamento dos "parentes" situados nas outras áreas do Tibagi.
Na segunda reunião os indígenas disseram "não" ao pedido de
autorização. Consta, no mesmo documento acima citado, que quando o
deputado passou a palavra "ao sr. Lourival de Oliveira, Presidente
do Conselho Regional Kaingang de Londrina, que colocou a posição das
comunidades previamente ouvidas de não aceitar qualquer acordo para
a construção de hidrelétrica, tendo em vista a insegurança que
pairava na comunidade....Desta forma, enfatizou que não desejaria
nem mesmo ouvir os números da COPEL, porque não poderia firmar
nenhum acordo, em face de não ter autorização da comunidade".
Ao contrário do que afirmou o deputado na primeira reunião, os
trabalhos não foram paralisados com o "Não" dos indígenas, expresso
pela liderança Lourival, no contexto da segunda reunião. Na
seqüência desta, tudo indica ter ocorrido uma terceira reunião, da
qual participaram apenas algumas lideranças indígenas e políticos do
estado. Foi-nos informado pela antropóloga Kimiye Tommasino que, na
época dessa "suposta consulta", não-índios haviam espalhado pelas
aldeias o boato de que se os índios aceitassem a hidrelétrica, iriam
ficar ricos, que cada família ganharia um saco de dinheiro e que não
precisariam trabalhar nunca mais.
A partir dessa reunião e dos rumores propositalmente lançados, houve
um processo de consulta interno às comunidades, feita pelas próprias
lideranças. A partir dessa "consulta desinformada" e conduzida por
interesses que passaram longe do dos indígenas, foi produzido um
documento enviado à Funai e ao MPF, no qual os índios diziam aceitar
o empreendimento, desde que suas exigências fossem cumpridas na
íntegra. Entre as exigências indígenas estavam a compra de
tratores, construção de casas de alvenaria, de vilas, de centro de
ecoturismo, escolas e postos de saúde, reforma de cemitério,
fornecimento de combustível e de dinheiro para compra de móveis
novos para os moradores, dentre outras.
A Funai, por sua vez, na figura de seu presidente, encaminhou, sem
maiores questionamentos, o documento produzido pelos indígenas para
a CDCMAM da CD. Ressalta-se que o texto substitutivo apresentado
pelo Deputado Pizzatto é "ipsis literis" o mesmo apresentado pelos
indígenas como condição para o seu "consentimento".
Resta relatar que ao longo do narrado processo de consulta, havia um
grupo de lideranças dissidentes que permaneceu contrário à UH,
questionando e denunciando a forma como as lideranças formais das
aldeias estavam realizando a consulta, conforme está amplamente
relatado no Inquérito Civil. Passados alguns meses as próprias
lideranças que forjaram a consulta voltaram atrás e pediram o
cancelamento do documento "produzido" por eles. Estes informaram
que, por estarem desavisados sobre seus direitos, acreditavam
estarem realizando um "excelente negócio", ao forjarem internamente
o processo de consulta.

Análise antropológica da situação
Apesar da aparente "boa vontade" dos envolvidos em atender as
reivindicações indígenas, de uma perspectiva antropológica constata-
se uma série de erros graves. Um deles se refere ao fato da maioria
das reivindicações expressas no documento se mostrar de cunho
absolutamente transitório e emergencial - visto se relacionar com as
demandas e carências indígenas, muitas das quais obrigação do
próprio Estado e hoje já supridas -, quando os efeitos negativos do
empreendimento sobre o grupo indígena e seu modo de vida serão de
caráter permanente. Também se observa que esse documento possui uma
orientação altamente economicista, quando o viés principal deveria
ser o ambiental e o cultural, ambos aspectos que a Constituição
Federal quis defender ao determinar a necessidade de procedimentos
especiais.
O substitutivo apresentado pelo Deputado é externo ao contexto
cultural dos Kaingang, Guarani e Xetá, mesmo tendo sido "produzido"
pelos índios. Isto porque, tudo leva a crer, que os índios o
redigiram orientados por terceiros, em um momento de euforia e sob o
impacto de boatos lançados pelos defensores dos interesses anti-
indígenas. É também um substitutivo autoritário, na medida em que
mesmo após um "Não" dos indígenas e distante da presença dos órgãos
federais voltados para assegurar seus direitos, as investidas dos
não índios persistiram, assumindo cada vez mais uma forma de mero
assistencialismo. Obviamente que a intenção dessa empreitada foi
desviar a atenção dos indígenas de um processo sério de discussão e
reflexão sobre as perdas, os ganhos e os meios de assegurar,
durante a instalação e funcionamento do empreendimento, uma igual ou
melhor qualidade de vida, de acordo com as suas tradições culturais
e conhecimento etno-ambiental.
Em contatos mantidos com os Kaingang e Guarani que habitam as áreas
sob risco de serem impactadas, eles demonstraram total
desconhecimento de questões básicas sobre a Usina, tais como o local
onde ela seria construída, qual seria a parte e extensão do
território indígena alagada, que tipos de recursos naturais
deixariam de existir às margens do rio, em que a barragem
interferiria na sua forma de produção agrícola, artesanal, de caça e
de pesca, quais espécies animais deixariam de existir e quais seriam
inseridas, quais aspectos do seu universo simbólico e de suas
práticas culturais seriam mais significativamente atingidos, etc.
Observações como estas estão amplamente expressas e analisadas nas
notas técnicas e antropológicas produzidas pela 4ª e 6ª CCR do MPF.
Nesse sentido, pode-se constatar que, se houve consentimento por
parte de algumas lideranças, ele não foi devidamente informado e,
quando considerado o restante da comunidade, a desinformação é ainda
maior.
Os procedimentos adotados na consulta aos indígenas reduziram-se a
simples "negociação", quando deveriam ser informativos, dialógicos e
de escuta. Faz-se necessário ressaltar que há peculiaridades no
trato e escuta às sociedades indígenas que, se não observadas, torna
o diálogo intercultural uma tentativa vazia, inócua e apenas
retórica de trato com a diferença.
De uma perspectiva antropológica, qualquer escuta àquelas
comunidades deve considerar que na área em questão existem Kaingang,
Guarani - Kaiova e Nhandéva - e Xetá, o primeiro pertencente ao
tronco lingüístico Gê, enquanto os outros são do tronco Tupi. As
etnias do tronco Tupi têm como tradição cultural deslocamentos
constantes em busca de um lugar mítico: o paraíso terreal ou a terra
sem males. Em função dessa tradição, muitos grupos Guarani ficaram
sem um território próprio, tendo sido incorporados parcialmente em
algumas das áreas Kaingang. Como é do conhecimento da etnologia
indígena brasileira, quando um grupo indígena está inserido no
contexto territorial de outro grupo também indígena, o primeiro
tende a ser dominado pelo segundo (ver Roberto Cardoso de Oliveira e
Alcida Rita Ramos).
Com base nessa assertiva podemos observar que no caso em questão
houve um processo de "invisibilização", a partir do qual
determinados grupos e segmentos das sociedades indígenas locais
foram ocultados. Deste modo, observa-se, por exemplo, que os
posicionamentos dos Guarani e Xetá não foram considerados e nem as
outras aldeias da etnia Guarani situadas no Tibagi foram inclusas
entre as sob risco de serem impactadas. Tal se deve a uma dinâmica
cultural intra-étnica, na qual as lideranças Kaingang, pela própria
estrutura e organização política tradicional, bem como pelo domínio
territorial, passam a englobar as lideranças Guarani e Xetá,
engessando-as e ocultando-as.
Cabe aqui lembrar que a antropóloga Kimmiye Tommasino questiona
vários aspectos dos estudos antropológicos apresentados pelo
empreendedor, dentre eles o fato dos Guarani de Laranjinha e
Pinhalzinho não terem sido considerados na análise, embora eles
constituam uma unidade cultural e sócio-política com os Guarani que
estão na TI São Jerônimo. Ressalta-se, ainda, que os Guarani da TI
São Jerônimo, mesmo citados como passíveis de serem impactados, não
foram objeto de estudo antropológico e, da mesma forma, não foi
analisado de que forma o empreendimento poderia afetá-los do ponto
de vista de sua cultura específica.
Uma escuta antropológica atenta não pode se prender à lógica de
apenas um dos grupos envolvidos e justamente o dominante, em
detrimento dos grupos menores e mais fragilizados. Deste modo,
procedimentos deverão ser adotados para que se garanta
um "consentimento informado" a todas as comunidades atingidas, bem
como para que se assegure uma escuta igualitária a todas as etnias
sob risco de serem impactadas.
Os Kaingang, como dito, são Gê, o que significa que etnograficamente
se caracterizam por possuírem sistemas duais de organização. Entre
eles a estrutura social é composta pelas metades exogâmicas Kamé e
Kairu, que internamente se subdividem em segmentos classificatórios
menores. O sistema de metades regula e perpassa quase todas as
relações e aspectos da vida social - tais como casamento, nominação,
classificação, a divisão das facções, etc -, sendo uma das bases da
construção da pessoa naquele contexto cultural.
A presença do faccionalismo no sistema Kaingang explica parcialmente
alguns eventos ocorridos ao longo da consulta, como no caso dos
múltiplos posicionamentos dos índios ao longo do processo. Contudo,
esses também se explicam pela desinformação dos indígenas acerca do
empreendimento, bem como pelo medo que desenvolveram em relacionar-
se com empreendedores, uma vez que, pelas próprias experiências
pessoais e históricas, eles conhecem desse trato, pela presença de
empreendimentos em suas terras. A isso tudo soma-se ainda a
realidade sócio-cultural sincrética desses grupos étnicos, produto
do contato permanente com segmentos da sociedade nacional envolvente
e dominante.
Uma abordagem antropológica revela que entre os Kaingang, Guarani e
Xetá interagem pelo menos dois sistemas econômicos e políticos de
referência: um sistema tradicional, realizado internamente por meio
de trocas recíprocas e múltiplas entre os vários grupos familiares
indígenas e um sistema interétnico, no qual alguns valores
capitalistas estão presentes, uma vez que esse sistema é produto de
interações históricas. Deste modo, pode-se perceber que ao longo do
processo de consulta os indígenas transitaram ora por um, ora pelo
outro sistema. Em um primeiro momento, guiados pela força dos
valores e vínculos tradicionais relacionados à terra e seus
recursos, as lideranças indígenas foram prudentes e disseram não ao
empreendimento. O mesmo operou no segundo momento. Contudo, em
um "terceiro", seduzidos pela lógica do benefício imediato e pela
lei do menor esforço, conforme versam os melhores mitos do
imaginário capitalista, e fora do contexto de suas aldeias, algumas
lideranças forjaram uma consulta, conforme instruídos por terceiros.
Com isso, acreditavam poder melhorar a vida do seu povo e ainda
auferir algum benefício ou vantagem pessoal que, pelo sistema
interno de reciprocidade das aldeias, acabaria por tornar-se mais
público do que propriamente individual. Em um quarto momento, ao
voltarem para o interior de suas comunidades e serem questionados
dentro do seu e dos outros grupos faccionais, bem como estando
novamente expostos às insatisfações e críticas das mulheres e dos
velhos - que ao longo de toda a consulta também permanecerem
posicionados contra a construção da UH-, as lideranças foram
obrigadas a refazer o seu ato político no "mundo dos brancos", para
darem conta da realidade político-cultural e cotidiana de suas
aldeias, isto é, voltando atrás e denunciando a própria consulta
feita por eles.
Outra falha gravíssima, de uma perspectiva jurídico-antropológica, é
o fato de não terem sido consultadas todas as comunidades indígenas
em risco de serem atingidas. Enquanto deveriam ser ouvidas, no
mínimo, sete comunidades - Queimadas, Barão de Antonina, São
Jerônimo, e mais as áreas guarani de Laranjinha e Pinhalzinho -,
apenas duas foram ouvidas: Apucaraninha e Mococa, ou seja, apenas as
que seriam diretamente atingidas pelo alagamento da barragem.
A reduzida abrangência da consulta causa estranhamento, uma vez que
o próprio relatório antropológico apresentado pelo empreendedor, de
autoria de Cecília Helm, frisa que se trata de cinco terras
descontínuas . Concordando com Tommasino, afirmamos serem sete,
constituídas por três etnias - Kaingang, Xetá e Guarani -, cada qual
formada por famílias extensas entrelaçadas pela consangüinidade e
afinidade, distribuídas em várias aldeias. O conjunto das aldeias
guarani de São Jerônimo, Laranjinha e Pinhalzinho formam uma unidade
sócio-política, da mesma forma que os Kaingang das aldeias das TIs
Apucaraninha, Barão de Antonina, São Jerônimo, Queimadas e Mococa .
Com base nesse entendimento, todas as áreas indígenas inter-
relacionadas deveriam ser consideradas no conjunto e não
separadamente, tanto para fins de consulta, quanto para análise de
impacto, mitigação e pagamento de eventuais compensações. Isto
porque, tal com expresso no relatório antropológico apresentado pelo
empreendedor, quando uma das comunidades locais é atingida, todas as
demais sofrem os efeitos, de acordo com o critério de "impacto
global".
Ressalta-se que, embora haja Kaingang, Guarani e Xetá em outras
áreas no Paraná, bem como em outros estados do sul, sudeste e centro-
oeste, que partilham de uma mesma filiação lingüística, hábitos e
significados culturais, os grupos do Tibagi operam como uma ampla
unidade de atuação política - como no caso do Conselho Indígena do
Norte do Paraná -, ritualística - quando praticam juntos as suas
festas tradicionais - histórica - por participarem do mesmo processo
de "colonização" -, econômica - por meio das trocas de bens e de
mulheres entre as famílias de distintas áreas -, jurídica - como no
caso do comprimento de penas em áreas distintas, dentre outros.
Para melhor esclarecer a relação de impacto em cadeia entre os
vários grupos e terras indígenas, tomemos como exemplo o sistema
jurídico Kaingang, que tem prevalecido nas áreas. Este sistema prevê
que determinadas penas, imputadas aos indígenas infratores ou que
apresentam um comportamento anti-social ou desviante, implicam
exílio em outra área indígena, onde opera o mesmo código cultural.
Em função dessa mobilidade de pessoas e famílias entre as áreas do
Tibagi, quando uma terra indígena é impactada, todas as outras
sofrem as repercussões. Aliás, o vínculo que possuem com esta bacia
hidrográfica específica singulariza os grupos locais, seus
conhecimentos sobre o ambiente e sua forma de significar e
classificar o mundo, conforme as análises antropológicas têm
apontado.

Considerações finais e algumas orientações sobre futuras consultas

Embora não exista um documento legal que esclareça sobre a forma
como se deve proceder a um consentimento (ou não) "informado" às
comunidades indígenas e populações tradicionais atingidas por
empreendimentos do setor elétrico, há um documento similar,
produzido pelo CGEN/MMA/IBAMA, que fornece alguns subsídios. Trata-
se da Resolução No5, de 26 de junho de 2003, que instrui sobre o
processo de obtenção de anuência prévia, para acesso a conhecimento
tradicional associado a recursos genéticos. Esta Resolução, no seu
artigo 2o, propõe como diretrizes para os processos de consulta os
seguintes parâmetros:
"I- esclarecimento à comunidade anuente, em linguagem a ela
acessível, sobre o objetivo da pesquisa, a metodologia, a duração e
o orçamento do projeto, o uso que se pretende dar ao consentimento
tradicional acessado, a área geográfica abrangida pelo projeto e as
comunidades envolvidas;
II- respeito às formas de organização social e de representação
política tradicional das comunidades envolvidas, durante o processo
de consulta;
III- esclarecimento à comunidade sobre os impactos sociais,
culturais e ambientais decorrentes do projeto;
IV- esclarecimento à comunidade sobre os direitos e as
responsabilidades de cada uma das partes na execução do projeto e em
seus resultados;
V- estabelecimento, em conjunto com a comunidade, das modalidades e
formas de repartição dos benefícios;
VI- garantia de respeito ao direito da comunidade de recusar o
acesso ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético".

Tomando como referência o documento acima citado, sugere-se que,
quando novas consultas forem feitas às comunidades indígenas, seu
modo de organização seja compreendido e considerado. Que os estudos
apontem todos os grupos envolvidos e que todos os grupos étno-
culturais sejam ouvidos, e não somente os majoritários. Que os
estudos apontem não somente a perspectiva das lideranças, ou seja,
não apenas a leitura masculina da realidade local, mas também a das
mulheres e a das várias faixas etárias, pois a boa antropologia
informa que embora constituídas em unidades organizacionais, as
sociedades indígenas - como qualquer outra sociedade - são
internamente heterogêneas.
Por fim, levando em consideração que ao MPF cabe tanto a defesa das
populações indígenas, quanto a defesa ambiental, sugerimos que o
mesmo leve ao conhecimento do Congresso Nacional as seguintes
orientações:

1-A proposta de construção da usina hidrelétrica São Jerônimo
demonstrou-se de custos sócio-ambientais incalculáveis, ao mesmo
tempo em que os estudos e procedimentos até agora efetuados não dão
conta da complexa realidade sócio-cultural, intrinsecamente
vinculada ao contexto ambiental. Logo, no presente momento não
existem as condições necessárias para que o processo de autorização
seja levado adiante, uma vez que apresenta vícios seríssimos tanto
de ordem jurídica, pois atingem princípios constitucionais e
convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, quanto
antropológica, como se procurou demonstrar nesta nota.
2- Antes de qualquer tentativa futura de consulta aos indígenas do
Tibagi, novos estudos ambientais e antropológicos devem ser feitos.
Somente após o conhecimento real da situação é que devem ser
iniciadas, junto aos indígenas, as discussões e esclarecimento.
3- Que sejam assegurados "consentimentos informados", pois conforme
relatamos, ao longo de todo o procedimento os índios demonstraram
não estarem entendendo nada, quando já se cobrava deles um
posicionamento.
4- Que os EIA/RIMA da UH São Jerônimo considerem a bacia do Tibagi
como um todo, uma vez que, embora atualmente o empreendedor esteja
tentando licenciar individualmente cada usina, ao todo elas são 7
(sete) que, se porventura vierem a ser construídas no Tibagi,
afetarão a bacia como um todo. Do mesmo modo, pelo risco de impacto
envolver 3 (três) etnias e 7 (sete) terras indígenas, elas devem ser
consideradas no conjunto para fins de avaliação de impactos,
formulação de medidas de mitigação, bem como para o cálculo das
indenizações.
5- Que os estudos sócio-culturais do EIA/RIMA abordem também outras
comunidades tradicionais não indígenas no Tibagi. No atual estudo
antropológico contratado pelo empreendedor, comunidades ribeirinhas,
camponesas ou quilombolas podem ter sido ignoradas. Nosso
entendimento é o de que todas as comunidades tradicionais devem ser
consideradas dentro de um espaço de discussão sobre o uso de partes
do território nacional já utilizadas por elas, mas que estão sendo
estudados para instalação de empreendimentos.
Por fim, gostaríamos de relembrar que as áreas indígenas
foram originalmente criadas (conforme Souza Lima e Pacheco de
Oliveira) para garantir a ocupação do resto do território nacional
pelos "não-índios". Ocorre que, mesmo desejando a Constituição de
1988 dar proteção especial às áreas que restaram aos indígenas, sob
as mais diversas formas, os empreendedores da sociedade abrangente
têm-nas como objeto de interesses e desejo, sempre idealizando e
propondo a realização dos seus projetos sob os atuais territórios
indígenas.
No caso dos índios do Tibagi, eles já sofrem pela presença
de empreendedores em suas áreas. Em termos constitucionais atuais
não há justiça e nem legalidade na proposição de mais uma usina
hidrelétrica nas já diminutas terras indígenas do norte paranaense.
A própria notícia da possível construção já tem gerado "stress" e
conflitos entre os indígenas e entre eles e os não-índios.
Os problemas energéticos do branco devem ser solucionados, mas não
às custas dos territórios indígenas. Empreendimentos de cunho
desenvolvimentista podem e devem ser realizados, uma vez que é o
desejo da ampla sociedade, mas não às custas de modos de vida
tradicionais de populações que estão no mundo e na história
direcionados por outras óticas, que não necessariamente a do
capitalismo e do desenvolvimentismo, em especial a do setor elétrico
que impacta tão significativamente os modos de ser e de estar no
mundo e no presente dessas populações.
É o parecer!

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