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Haja heresia!

OESP, Espaco Aberto, p.A2
Autor: MESQUITA, Fernão Lara
20 de Mar de 2004

Haja heresia!

Fernão Lara Mesquita

Acaba de ser constatado mais um recorde no desmatamento da Amazônia.
Este jornal anunciou, a 4 de março passado, que a área devastada neste primeiro ano de governo Lula estava se aproximando dos 25.476 quilômetros quadrados do ano anterior e que as previsões do INPE davam a entender que, logo, logo poderia ser ultrapassada a marca dos 29.059 quilômetros devastados no período de 1994/95.
Doze dias depois, a 16 de março, o mesmo Estadão noticiou que, depois de reuniões "com 11 ministros" (!), a titular do Meio Ambiente, Marina Silva, e seu secretário de Biodiversidade e Florestas, João Paulo Capobianco, anunciaram que, doravante, o Exército Brasileiro "se integrará à rotina do combate à devastação", dentro do Plano de Ação de Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia Legal.
Essa multidão de ministros que me desculpe, mas não acredito nem por um minuto que a entrada das Forças Armadas brasileiras nessa briga vá mudar qualquer coisa (a não ser, talvez, nas Forças Armadas). Nem que fossem as norte-americanas, que, com toda a sua tecnologia, não conseguem segurar meia dúzia de iraquianos decididos, eu acreditaria. Aliás, desde que, lá pelos 1600 e bolinhas, o rei de Portugal proibiu, sob pena de morte, o corte de pau-brasil, se sabe neste país que a mera repressão - por mais violenta que se proponha a ser - não adianta coisa nenhuma contra a devastação ambiental.
Não é que essa pena de morte não mudou a sorte do quase extinto pau-brasil.
Não segurou sequer a Mata Atlântica, seu hábitat, cujos últimos resquícios estão sendo substituídos por eucaliptais plantados com subsídio público por empresas que até o Lula visita lá no Sul da Bahia, quase no centro econômico do Brasil plenamente ocupado pelo Estado e por suas polícias.
Dir-se-ia que já era tempo de alguém dizer a esse pessoal, que há mais de 20 anos manda na política ambiental brasileira, aquela frase lapidar que o ex-presidente Clinton dirigiu ao pai do Bush, para fazê-lo entender por que estava perdendo a eleição: é a economia, cara!
Mas eles já sabem.
Na última matéria do Estadão - esta em que anunciaram a entrada do Exército na parada -, eles próprios mencionam que as principais causas do desmatamento são "a pecuária, seguida pela soja mecanizada" (que a entrada da China no circuito internacional do consumo tornará mais sedentas de terras de floresta a cada dia que passarmos insistindo em velhas mentiras).
A notícia trágica para a fauna e a flora brasileiras é que, apesar de todas as evidências, as pessoas que poderiam virar esse jogo continuam decididas a tratar a natureza econômica do homem como uma questão de polícia.
No resto do mundo, a solução dada à disputa pela terra - que está no centro da questão ambiental, que, por sua vez, é essencialmente econômica - foi instituir políticas de valorização da natureza preservada. À medida que lugares preservados se foram tornando mais raros e o número de pessoas com dinheiro para gastar foi aumentando em todo o mundo - o que também é conseqüência da conversão de um número cada vez maior de governos, da sanha autoritária de mudar a natureza humana à força de repressão para o esforço construtivo de dirigir essa natureza para um sentido positivo -, o enigma se desfez. A exploração da natureza preservada passou a ser mais bem remunerada que sua exploração tradicional pela agricultura e o mundo inteiro começou a contabilizar ganhos ambientais.
O eixo dessa "virada" foi a exploração da caça amadorista. Esportes ligados à natureza também contribuíram para essa conta. Mas nenhum como a caça amadorista, que depende do perfeito estado de conservação da natureza para poder ser praticada de forma sustentável e mobiliza a quantidade necessária de dinheiro para fazer frente à agricultura. Até na miserável África, muito mais exposta que nós à corrupção, se desistiu do cerco policialesco à depredação ambiental e, com o apoio até da Cites, o órgão de proteção às espécies ameaçadas da ONU, se voltou à caça controlada como alternativa para a destruição de hábitats e a extinção de espécimes de fauna. Ao sistema de parques nacionais, que vinham sendo depredados exatamente como os brasileiros, se acrescentou a idéia dos "anéis de terras privadas", licitadas para a exploração exclusiva de fazendas de caça em torno das reservas públicas. Assim, já não se depende mais dos "ibamas" e das corruptíveis polícias e exércitos locais para preservá-los. Banida a agricultura pela nova alternativa econômica mais rentável, conta-se, nessas áreas, com o interesse dos proprietários privados de fazendas de caça que cercam as reservas públicas, que é o de vender apenas o descarte sustentável de caça, para proteger dos invasores e dos caçadores furtivos as reservas públicas na retaguarda de suas terras.
Caça-se cada vez mais nas Américas, na Ásia, na África, na Europa e na Oceania, sob regimes democráticos e até sob os últimos regimes comunistas, porque esta é a única maneira de sustentar economicamente territórios "libertados" da agricultura. Mas não neste Brasil, onde a única alternativa sustentável à predação agropecuária é proibida por lei em nome da ecologia, o que condena o mato a virar cinzas à velocidade alucinante de quase 30 mil quilômetros quadrados por ano.
Haja heresia!
Fernão Lara Mesquita é jornalista

OESP, 20/03/2004, p. A2

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