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Gusa em brasa

O Paraense-Belém-PA e Agência Estado-São Paulo-SP
Autor: Lúcio Flávio Pinto
29 de Jun de 2002

Indústria Acordo entre CVRD e Nucor pode elevar produção de gusa no Estado para até 1, 3 milhões de toneladas/ano

Será que vale a pena estancar a transformação do rico minério de ferro de Carajás, no sudeste do Pará, no primeiro degrau da escala industrial, que é o ferro gusa?

Três usinas instaladas em Marabá, no sul do Pará, produzem atualmente 520 mil toneladas de ferro gusa. Até o final do ano, o distrito industrial abrigará mais duas siderúrgicas e a produção instalada passará para 780 mil toneladas, nivelando-se à capacidade do pólo guseiro que se estabeleceu, com cinco usinas, do lado maranhense da Ferrovia de Carajás, hoje a segunda mais importante via de escoamento de riquezas naturais do país (perde apenas para a Estrada de Ferro Vitória-Minas, que desemboca no porto de Tubarão, no Espírito Santo). Pará e Maranhão já respondem por 30% da produção nacional de gusa.
A tendência de crescimento desse setor poderá sofrer um abalo traumático se a Companhia Vale do Rio Doce decidir implantar sua própria usina, em sociedade com a Nucor, uma das maiores siderúrgicas dos Estados Unidos. É a CVRD o único fornecedor de minério de ferro e o único transportador do insumo para as usinas de gusa (não só no Pará e no Maranhão, mas também em Minas Gerais, ainda o maior produtor brasileiro).
A partir de um acordo assinado em abril, as duas empresas poderão iniciar no próximo ano a construção de uma nova siderúrgica, que começará produzindo as mesmas 520 mil toneladas da soma das três usinas implantadas no distrito industrial de Marabá.
Se o projeto CVRD/Nucor sair, a produção de gusa do sul do Pará alcançará 1,3 milhão de toneladas ao ano. Acrescidas as 700 mil toneladas do Maranhão, Carajás chegará a metade dos 4 milhões de toneladas de Minas. Mas há um problema nesse setor da economia: a produção de ferro gusa em Minas Gerais caminha para a inviabilização. As usinas mineiras já estão indo buscar carvão em Mato Grosso do Sul, a uma distância enorme, de centenas de quilômetros. O crescimento do preço do minério e os fretes pesam cada vez mais nos custos. As usinas estão operando no vermelho. Recentemente, ficaram duas semanas sem operar por falta de carvão.
E há ainda dois graves problemas. Um, humano: periodicamente surgem denúncias sobre maus tratos e condições subumanos de trabalho nas carvoarias. Outro, ecológico: o carvão é obtido da queima da floresta. Embora haja o compromisso de florestar ou reflorestar para evitar a destruição ecológica, a expansão da fronteira de carvão indica que ou não se pretende cumprir a obrigação ou seu custo se tornou alto demais para caber nas regras do mercado.
A crise das guseiras de Minas, com capacidade instalada de 4 milhões de toneladas, respondendo por 70% da produção brasileira, ocorre no momento em que o parque siderúrgico do Primeiro Mundo experimenta mudanças. O tamanho dos altos fornos diminuiu. Os mastodontes siderúrgicos, que fizeram a glória (e também a decadência) de gigantes como a United States Steel e a Bethlehem Steel, foram substituídos por mini-mills, pequenas usinas integradas, que reciclam matéria prima ou usam insumo intermediário, como a gusa. O consumo desse mercado cresce e os preços, que haviam baixado de mais de US$ 150 por tonelada para quase US$ 90, se recuperaram um pouco (estão em torno de US$ 110).
Com isso, a competição vai ficar mais afiada e quem não tiver escala ficará ameaçado de despejo. Daí a agitação e o nervosismo desencadeados a partir do momento em que a CVRD, já não mais uma empresa estatal (menos suscetível, portanto, a pressões políticas e a apelos regionalistas), anunciou a intenção de dar mais um passo na verticalização do minério, passando a produzir gusa. Passo que vai esmagar muita gente postada no meio do caminho do trem de Carajás.

Limite da legalidade

Atuando em condições monopolistas, tanto no fornecimento do principal insumo da siderurgia como no transporte do produto, bastaria à CVRD manobrar nos preços do minério ou nos fretes para deslocar competidores ou arruiná-los completamente, ainda mais porque a estreita margem de lucro das guseiras depende da capacidade de operarem no limite da legalidade quanto às normas ecológicas e às relações de trabalho.
O momento pode ser oportuno para avaliar a entrada da Vale no mercado guseiro, mas também para refazer cálculos mais bem estruturados na conta de chegada do produto: será que vale mesmo a pena parar na transformação do rico minério de Carajás, estancando no primeiro degrau da escada industrial, que é o ferro gusa, enriquecido por carvão vegetal, a preço de banana ruim?
Os guseiros não titubeiam em apresentar uma resposta positiva. Em pouco tempo o eixo de influência da ferrovia de Carajás se tornará o grande produtor nacional, de tamanho mundial. Produzir gusa à base de carvão vegetal, atividade banida ou em processo de extinção nos países mais desenvolvidos, não seria o atraso que aparenta ser. Muito pelo contrário: seria o aproveitamento inteligente de um fator de competitividade da região: sua disponibilidade de terras - e terras relativamente baratas, além de mão-de-obra barata - para produzir carvão vegetal, acrescentando um ganho de qualidade à gusa de Carajás sobre concorrentes no mercado internacional. É um argumento. Não é, porém, a verdade - ou, pelo menos, não é toda a verdade, provavelmente nem a sua parte mais substancial.
Quando as riquezas minerais começaram a ser reveladas em Carajás, a partir do manganês e do minério de ferro, imaginou-se que o vale do Araguaia-Tocantins, tendo como seu núcleo irradiador (ou catalisador) a cidade de Marabá, se transformaria em algo como o vale do Rhur representou para a siderurgia e a industrialização alemãs. Ao invés disso, o único passo dado na verticalização foi o enriquecimento do minério de ferro de mais elevado teor do planeta, o de Carajás, através do uso de carvão de origem vegetal, uma fonte de agressão às florestas apesar de toda a retórica em contrário das empresas sobre a auto-sustentabilidade de sua atividade produtiva. Quem percorre as acanhadas, sujas e feias usinas que produzem gusa não sai com uma boa impressão, nem é capaz de se convencer de que elas significam verdadeiro desenvolvimento.

Ceará

A primeira grande aciaria do Norte e Nordeste está sendo construída no porto de Pecém, ao lado de Fortaleza, a capital do Ceará. Os cearenses não têm minério de ferro: irão buscá-lo em Carajás, usando a ferrovia que nasce no Pará e desemboca no porto maranhense da Ponta da Madeira, um dos melhores do mundo. Também não dispõem da energia requerida por esse processo industrial: utilizarão o gás do vizinho Rio Grande do Norte. Sua escassez de matérias-primas obrigou-os a procurar uma solução tecnológica adequada. E encontraram-na: a redução direta a frio. Por isso, tiraram de Carajás o que parecia ser um destino manifesto: montar um grande parque siderúrgico a partir da proximidade da maior província mineral do planeta.
A lição dessa história é clara: não basta ser rico pela própria natureza para ser desenvolvido, ao contrário do que assegura o hino triunfalista. Quem permanece deitado em berço esplêndido aguardando a materialização de uma predestinação de grandeza vai acordar mais pobre do que antes. Ou vai perder o bonde da história. O Pará, que provavelmente tem o território mais rico da federação, no subsolo, no solo e nas drenagens, está se tornando um exportador de energia.
Seja na forma de energia bruta mesmo, como aquela que corre em alta tensão pelas linhas de transmissão da hidrelétrica de Tucuruí, seja em elaborações industriais toscas, primeiras paradas na escala da verticalização e medíocres agregadoras de valor, como o lingote de alumínio (que vai até o Japão) e o ferro gusa (que está se espalhando pelo mundo).
Assim, o Pará, Estado amazônico líder, razão de ser de uma equação de riquezas, ao transferir para outros Estados e outros países a energia que tem, está se tornando exportador de desenvolvimento, um exótico produto que só floresce na seara do comprador. Triste sina. Justo castigo?

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