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Guerra do mogno: país não enxerga tragédia anunciada

O Estado do Acre-Rio Branco-AC
Autor: Lilian Orfanó
15 de Fev de 2004

A paz não existe mais na comunidade Ashaninka do Rio Amônea. A principal característica de um povo está se esvaindo com o barulho estrondoso de cada árvore tombada naquela reserva pelas motosserras dos madeireiros peruanos. A retirada ilegal do mogno, do cedro-rosa e de tantas outras espécies de interesse do mercado madeireiro mundial abre, também, na floresta, o caminho para o narcotráfico alcançar e fortalecer o império das drogas nos morros cariocas e fazer milhares de reféns brasileiros.

A angústia que domina a alma da pacífica comunidade Kampa, na fronteira do Acre com o Peru, não é mais um sentimento exclusivo daqueles que ocupam - para a maioria do povo brasileiro - a inimaginável região fronteiriça do marco 40. A força das motosserras peruanas agora está disseminada também na terra indígena Mamoadate, situada às margens do Rio Yaco, ameaçando os povos Matxineri, Jaminawa e os arredios Masko, na região do rio Chamdles.

O Brasil perde as suas fronteiras para o contrabando de madeiras nobres e para o narcotráfico que se organizam no Peru. Relações diplomáticas entre os dois países não vão além das discussões sobre questões comerciais debatidas na ALCA. Visitas de pequenas expedições da FUNAI, do Exército, da Polícia Federal, do IBAMA, de parlamentares na região invadida em nada surtem efeito para brecar o avanço da ousadia dos invasores.

A ofensa peruana ao território acreano - nas regiões habitadas pelas populações tradicionais - é uma questão de soberania nacional e que está sendo deixada em segundo plano. A tensão que se acumula nas comunidades diretamente ligadas ao conflito sustenta uma condição extrema ignorada pelos governos brasileiro e peruano.

Ameaçados, os povos tradicionais poderão reagir com força bruta para defender a terra, as árvores, o rio, os homens, as mulheres e as crianças que sobreviveram por milhares de anos da harmonia com a natureza na floresta amazônica. Este é o reflexo atual da situação na fronteira brasileira do Acre com o Peru. Um quadro que alerta o país para uma não descartada tragédia anunciada.

A cheia no Rio Amônea, que contorna a área da reserva Ashaninka, mostra àquele povo a real ameaça. Pelo leito do rio deslizam diariamente dezenas de toras de mogno cortadas pelos invasores da reserva. O alerta chegou aos técnicos da FUNAI/Acre esta semana.

O que índios e brancos da fronteira acreana com o Peru querem entender é porque diante de tantas denúncias e absurdos registrados na região contra os recursos naturais, os direitos humanos de povos índios e sobre a ação do narcotráfico na floresta, o governo brasileiro ainda não reagiu, considerando que a questão como um alarme falso.

O reavivamento dos marcos fronteiriços na região conflituosa não resolve o problema. Para o secretário extraordinário dos Povos Indígenas do Acre, o Ashaninka Francisco Pianko, o problema só poderá ser resolvido se houver boa vontade dos governos brasileiro e peruano. Para ele seria necessário que o Brasil pressionasse o governo peruano para impedir a ação dos madeireiros na fronteira.

Pianko lembra que a trajetória dos Ashaninkas do Rio Amônea tem sido dolorosa. A primeira fase enfrentada pela comunidade foi na década de 90 com a invasão de empresas madeireiras do Brasil. Essas exploradoras chegaram a invadir a reserva com máquinas pesadas e destruíram boa parte da área para contrabandear o mogno.

- Naquela época, entraram com máquinas pesadas, como fez a firma Cameli e outras que passaram por lá, tombando tantas árvores que apodreceram no chão. Uma só empresa derrubou mais de 500 mognos e cedros e apodreceu tudo. Essa faixa do centro da terra indígena foi praticamente detonada pelas invasões madeireiras. Quem mora lá sabe que tem muita coisa que não há como ser recuperada, observou Francisco Pianko.

Os Ashaninkas levaram o caso à Justiça. Ganharam a causa, mas até agora não levaram a indenização. A parte invadida hoje pelos peruanos é considerada por eles como a região que ainda restava intocável pelos invasores.

- Era uma faixa virgem da nossa terra. Ali ficava o refúgio das caças. Era onde estava as últimas árvores de mogno, um lugar muito precioso, lamenta o líder Ashaninka.

As denúncias mais contundentes contra a ação de invasores na Reserva Ashaninka do Amônea foram feitas em 2001, quando os índios encontraram algumas árvores tombadas e outras marcadas para serem abatidas na área indígena. Essa provável entrada dos contrabandistas peruanos na terra índia era o único indício da invasão peruana até os meados do ano passado.

- A gente suspeitava de outras entradas. Como a terra Ashaninka é uma ponta para dentro do Peru, toda essa área passou a ser pressionada pelos madeireiros. Hoje temos informações concretas de que os invasores já estão no Brasil, explica Pianko.

As denúncias do povo Ashaninka sobre o caso foram seqüenciais. Chegaram ao Itamaraty e forçaram o governo a criar um grupo fronteiriço para tratar do assunto. Esforço em vão até hoje e marcado apenas pela vinda e ida de autoridades governamentais à região invadida. Não houve quaisquer ações de resultado.

Os Ashaninkas hoje compreendem que enfrentam um novo estágio em relação à inércia do governo brasileiro. Eles entendem que o governo já tem informações suficientes para agir.

O líder Pianko hoje se divide em preocupações com as cobranças de seu povo em relação às invasões e o compromisso de ser membro da organização governamental do Acre.

- Hoje não tenho só a visão de ser um Ashaninka e de estar preocupado com a nossa terra indígena. A minha preocupação é também de que o território brasileiro está sendo invadido não só naquele local e a gente não está conseguindo dar uma resposta às comunidades que estão se manifestando contra isto, desabafa o secretário.

A reação dos índios contra os madeireiros peruanos pode ser uma questão de tempo. Uma bomba pronta para ser detonada. O governo parece, ainda, não acreditar nessa possibilidade, mas a comunidade Ashaninka, pacífica por natureza, está disposta a se defender da invasão ou de qualquer reação dos madeireiros e traficantes contra os membros da comunidade.

- A terra é tudo para o Ashaninka. A floresta, a riqueza que tem nela é que diz a qualidade de vida do povo. Se a terra deixar de oferecer as condições que oferece hoje, se tornar pobre, os Ashaninkas estarão dispostos a enfrentar a invasão e defender o território. O enfrentamento que sempre é colocado pela comunidade é no sentido de fazer as pessoas pararem com a invasão e não no sentido de ir lá e matar os peruanos. Agora, os peruanos vêem as coisas de outra maneira. Mandam recado para que os Ashaninkas não mexam com eles para não serem mortos. Não ouvi ainda por parte dos Ashaninkas qualquer manifestação para matar os peruanos, revelou Francisco Pianko.

O aliciamento de ribeirinhos, colonos e índios pelos madeireiros peruanos na região da fronteira brasileira é outro ponto que preocupa as lideranças indígenas. Sem ações e programas do governo brasileiro para apoiar as comunidades fronteiriças, os moradores da região acabam seduzidos pelas ofertas dos invasores. Este fato também é de conhecimento e já foi constatado pelas autoridades brasileiras.

Contrabando de madeira, tráfico, invasão de reservas ambientais e de terras indígenas acabam significando para o secretário Francisco Pianko um assunto complexo que necessita de um acordo entre Brasil e o Peru para ser solucionado. No entanto, Pianko não é só secretário de estado. É membro da comunidade Ashaninka, vítima da invasão, e que mantém um entendimento diferenciado da visão governamental.

- A comunidade fica muito ansiosa com o problema e em muitos momentos se manifesta dizendo que 'se o governo não vai resolver, vamos ter que impedir. Já pegamos peruanos aqui, entregamos para a Polícia Federal e eles foram liberados. Os mesmos que foram liberados vieram com mais força para dentro da comunidade. Então, nós estamos brigando não é só com o Peru. O governo brasileiro também é nosso adversário nesse caso. Parece que estamos criando trabalho para o governo brasileiro e eles não querem ver isto. Então não sabemos com quem devemos contar'. Isto é muito colocado pela comunidade. O que queremos é que o governo brasileiro proteja o território do Brasil, mas não estamos vendo essa resposta, explica Pianko.

A questão da madeira roubada da reserva, as invasões, o tráfico de drogas hoje são temas que dominam as conversas entre os membros da comunidade Ashaninka. O povo conhecido pela sua organização social não consegue mais ter tranqüilidade para prosseguir com a vida na reserva. Isto porque os acontecimentos recentes não significam apenas a presença do narcotráfico e do contrabando madeireiro dominando o território acreano. A ação dos invasores é uma ameaça direta ao equilíbrio do meio ambiente da região. Há suspeitas de que nascentes de importantes rios como o Juruá, o Purus, o Yaco, o Chamdles estejam sendo ameaçadas pelos contrabandistas. Se isto for verdade, as águas acreanas estarão ameaçadas nos próximos anos.

Tentativas para forçar uma solução para o problema também já foram adotadas pelo Ministério Público Federal no Acre. Uma ação civil pública foi proposta pelo procurador da República, Marcos Vinícius de Aguiar Macedo, contra a União, o Ministério das Relações Exteriores, o Ministério da Defesa, o Departamento da Polícia Federal, a FUNAI e o IBAMA. O objetivo da ação era fazer com que a União indenizasse os Ashaninkas pela invasão peruana. A ação pedia ainda a instalação de posto da FUNAI na faixa da fronteira; um posto de fiscalização ambiental permanente em Marechal Thaumaturgo, município onde fica localizada a terra indígena do Rio Amônea; postos de policiamento ostensivo do Exército e da Polícia Federal na área de fronteira; e o reavivamento dos marcos fronteiriços entre Brasil e Peru, especialmente aqueles localizados na Região do Alto Juruá.

A ação tramita na Justiça Federal a passos lentos e, até certo ponto, inviabilizada por uma decisão judicial que determinou a realização de uma perícia no local da invasão sob as custas do Ministério Público Federal no Acre. Sem recursos para executar a perícia, o MPF desistiu da mesma.

Narcotráfico

Em entrevista ao jornal O ESTADO, o procurador da República, Marcos Vinícius Aguiar Macedo, falou sobre o assunto, revelando que a retirada ilegal da madeira da Reserva Ashaninka é tão preocupante quanto a ação dos narcotraficantes na região.

Jornal O ESTADO - Quando algum brasileiro tem a intenção de visitar o Parque Nacional da Serra do Divisor é preciso cumprir um longo ritual. É preciso pedir autorização ao IBAMA, dizer os motivos da viagem e muitos outros detalhes burocráticos. Mas, o que se vê na realidade é uma invasão descontrolada no parque, com retirada impressionante de madeiras nobres pelos rios da região por parte de madeireiras peruanas. Em contrapartida, o governo brasileiro permanece apático. Isto quer dizer também que o parque está vulnerável a ação de invasores brasileiros?
Procurador Marcos Vinícius - Sempre esteve. Quantos fiscais do IBAMA têm em todo o parque? Creio que um só. A Polícia Federal não consegue manter ali um efetivo permanente. O Exército também. Para se ter uma vigilância regular ali é preciso alimentação, de gasolina ou diesel. O que ocorre é que, a cada ano, tem havido um contingenciamento muito grande para isto. Nos quartéis, todos sabem disto, que quando chega no meio do ano é preciso liberar os jovens porque não tem orçamento para mantê-los. Então, a vulnerabilidade existe há muito tempo. O lamentável de tudo isto é que as coisas continuam exatamente como eram tratadas no governo anterior. O problema do Parque não é só isso.

Jornal O ESTADO - O que é, então?
Procurador Marcos Vinícius - A questão muito mais séria é a entrada do tráfico de drogas. Isso é terrível. Hoje, o tráfico conta com a colaboração de alguns ribeirinhos que ganham em dólar para abrigar e alimentar as pessoas que fazem o transporte. No curso do rio hoje você vê alguns ribeirinhos muito bem estruturados com alojamento para pessoas. A polícia sabe exatamente quem é que abriga esse pessoal. São alojamentos com eletricidade a diesel, que tem capacidade para abrigar de uma vez só de 15 a 20 pessoas. Os 'caras' dormem lá e pagam em dólar. Onde o estado está ausente... é o mesmo que acontece nos morros. Com o estado ausente, o crime organizado toma conta.

Jornal O ESTADO - O senhor acha que a fronteira do Acre com o Peru corre o risco de se transformar em um novo reduto do narcotráfico no país?
Procurador Marcos Vinícius - Eu acho que já é, com toda a sinceridade. É fronteira aberta de verdade. Essa questão do narcotráfico é complicadíssima para ser combatida, porque o que está acontecendo lá hoje é o mesmo que acontece no Rio de Janeiro. Quando a polícia está subindo ou descendo o rio fiscalizando, começam a estourar fogos de artifício para avisar que tem polícia na área. Antigamente a polícia ainda conseguia fazer um ou outro flagrante. Sabe como eles faziam? A polícia ia de barco e avistava um outro barco suspeito. Se o suspeito visse a polícia, encostava bem ligeiro na beira do rio e corriam para dentro do mato. De vez em quando a polícia pega um ou outro. Hoje nem isso. Pergunte à Polícia Federal se no ano passado houve alguma apreensão de droga naqueles rios. Não houve. Até nisto os traficantes já aperfeiçoaram os seus métodos. Se tiver polícia ou Exército no rio tem fogos de artifício estourando na área. A polícia não pega mais traficante da forma tradicional de abordar. Hoje os 'caras' saem antes do rio, se escondem antes na mata até a polícia passar.

Jornal O ESTADO - Como poderia melhorar esta situação para combater o narcotráfico na fronteira?
Procurador Marcos Vinícius - A lei do abate ainda não foi regulamentada e isto colabora para que esta situação se perpetue. Os nossos vizinhos tem lei do abate. Então, o que é que acontece? É muito arriscado sair num avião da Bolívia e do Peru para levar droga para uma grande capital brasileira. Ou seja, decolar do Peru ou da Bolívia, e mesmo da Colômbia, num avião com autonomia aumentada de combustível em direção a Brasília ou Goiânia, é arriscado porque se aparecer no radar sem plano de vôo, o avião é abatido. No Brasil as coisas não funcionam assim. Enquanto não for regulamentada a lei do abate, o Sivam vai continuar detectando os vôos irregulares sem poder fazer nada. De que adianta mandar um avião lá de Manaus ou de Porto Velho para cá? O avião pode até encostar do lado, mas e daí, o piloto irregular não pousa.

Jornal O ESTADO - O senhor acha que falta vontade política do governo brasileiro para resolver essa questão?
Procurador Marcos Vinícius - Objetivamente essa questão está sendo tratada sem nenhum cuidado. Eu diria que pelas autoridades públicas da União, não tenho visto nenhuma preocupação com o problema. Estou vendo agora uma preocupação muito grande de governo do Estado com relação a isto. E não deveria estar preocupado porque não tem atribuição constitucional para cuidar disto. Mas tudo bem, quem deveria estar preocupado seria o governo federal. A lei do abate já existe há muito tempo e acho que o governo deveria regulamentar. Tenho lido que o José Dirceu pensa em regulamentar isto. Não sei em que interesses essa questão esbarra. Mas acho que está mais do que na hora. Não sei dizer se falta ou não vontade política.

Soberania abalada

O sertanista da Fundação Nacional do Índio no Acre, Antônio Luiz Batista de Macedo, que percorre as reservas indígenas acreanas desde 1977, teme o pior na região. Macedo espera não ter que testemunhar uma tragédia entre índios e peruanos para que os governos dos dois países decidam agir no caso.

Durante entrevista ao jornal O ESTADO, Macedo alertou para a expansão do contrabando na fronteira, lembrando que índios das tribos Matxineri, Jaminawa e os arredios Masko.

Macedo inicia a entrevista revelando que 'toda a fronteira do Brasil com o Peru está invadida'.

Sertanista Antônio Macedo - Estamos emitindo ofício para a Polícia Federal, para o Exército, para o Pelotão Florestal para se deslocarem para a região do Yaco para ver o que está acontecendo.
Toda a região do Parque Nacional da Serra do Divisor - na fronteira Brasil/Peru - e toda a região da Reserva Indígena Ashaninka estão invadidas. Agora, isto está acontecendo na terra Mamoadate também. Já tivemos notícias deles também entre as cabeceiras do Rio Acre e a área Mamoadate. Toda essa região que divide o Brasil com o Peru está sofrendo invasão.
O que é mais cruel é que nesta região é onde se situa a maior quantidade de populações indígenas isoladas, relíquias que o mundo tem. Essas madeireiras peruanas quando estão indo do Peru para o Brasil vão quebrando tudo, vão ceifando vidas dessas populações indígenas. Os índios que elas não destroem se chocam com outras populações indígenas que estão nessa região de fronteira e que são inimigos tradicionais, como é o caso de índios isolados ainda não contatados. É uma questão assustadora. É uma questão de soberania nacional. A pergunta que deve ser realmente feita é: que providências vão ser tomadas pelo Itamaraty? Estamos perguntando isto a todo o momento.

Jornal O ESTADO - Este já é um fato antigo, não é?
Sertanista Antônio Macedo - Não é uma coisa qualquer que começou ontem. Caravanas oficiais já estiveram lá. A deputada federal Perpétua Almeida fez uma caravana interessantíssima composta de deputados federais, presidente da Funai, apoiada pelo Comando Militar da Amazônia, pela Polícia Federal. Surtiu um relatório interessante que foi oferecido ao Itamaraty. A Funai já fez vários outros relatórios, outras instituições também. A imprensa já esteve lá. O que a gente ainda não teve foram respostas objetivas do governo. E isso é o que a gente espera que aconteça. Se não, daqui há pouco não adianta mais se queixar que está acontecendo as invasões de madeireiros peruanos e que o capital multinacional está por trás de tudo isto.

Jornal O ESTADO - Por que você acha que isto não se resolve?
Sertanista Antônio Macedo - Creio que está faltando vontade política para isto. É uma situação diplomática. E, se há uma situação diplomática para ser resolvida num país como o nosso e num país como o Peru e não se resolve é porque certamente a vontade política ainda não alcançou o grau que deveria alcançar.

Jornal O ESTADO - A Funai tem alguma noção do tamanho dos prejuízos?

Sertanista Antônio Macedo - Olha, a Funai não tem noção do prejuízo causado à cultura indígena, ao meio ambiente. Isto sem contar o valor contabilizado com a retirada das madeiras em si. Mas, o Brasil inteiro não tem noção disto e a Funai é uma célula dentro do Brasil. Ela não tem hoje nos cofres, aqui, para trabalhar, um dólar furado. Ela tem planos, tem um memorando que pode se planejar cerca de R$ 180 mil para as atividades em 2004, mais ou menos R$ 120 mil para planejar a atuação dos postos indígenas, os quais são as unidades mais próximas das terras indígenas. A Funai precisa ser mais bem entendida pela sociedade brasileira e deixar de ser tratada como uma espécie de saco-sem-fundo como a sociedade a vê. Trabalhamos com populações tradicionais, com valores culturais, com raízes. Outra coisa, o nosso trabalho hoje representa 17% da preservação ambiental do país e não somos visto dessa maneira, mas como órgão que lida com as questões indígenas.

Jornal O ESTADO - De onde vem os recursos da Funai?
Sertanista Antônio Macedo - Do orçamento da União como todos os ministérios e autarquias. Só que para a Funai os recursos foram sempre minguados. A gente escuta falar que um projeto de um determinado ministério ou de uma determinada autarquia custa R$ 8 milhões, R$ 10 milhões. O orçamento da Funai é brincadeira perto disto. O ano passado foi cerca de R$ 104 milhões em todo o país. Este ano está mais ou menos a mesma coisa. Poderia ter melhorado. A situação vem se apertando. A exigência de gestão ambiental das terras indígenas se torna cada vez mais e a vigilância e fiscalização sobre essa gestão precisa estar acontecendo mais regularmente e, infelizmente, sem recurso financeiro não dá.
Nós estamos arbitrando aqui contra a regra. Estamos tendo que nos deslocar para as áreas para acompanhar essas situações que estão emergindo, a todo o momento, sem condições alguma. Muitas vezes a gente conta com o crédito pessoal de cada indivíduo da Funai para poder realizar as operações que precisam ser feitas.

Jornal O ESTADO - E de quem é a culpa?
Sertanista Antônio Macedo - Não é culpa do presidente da Funai. Não é culpa de diretores. É uma questão de falta de sensibilidade nacional sobre a questão indígena. É preciso que a Funai seja vista pela sociedade nacional como órgão de diplomacia mesmo e não apenas como uma instância bombeira de apagar fogo. Somos o consulado pluriétnico mais interessantes deste país. Se no passado existiam 1.400 nações diferenciadas falando 1.400 línguas diferentes, com todas as atrocidades que aconteceram ao longo desses 500 anos passados, ainda existem 180 nações diferenciadas com mais de 350 línguas e nós lidamos com eles. E, é com esses diversos indivíduos que atuamos é que lidamos com 17% do meio ambiente deste país.

Jornal O ESTADO - Você visitou as áreas de conflito na Reserva Ashaninka? O que você viu por lá?
Sertanista Antônio Macedo - Fomos eu e José Áurea - chefe da atividade produtiva da Funai - até a terra indígena Kampa do Rio Amônea, onde pudemos acompanhar a atividade feita pela Polícia Federal, pelo Exército, pelo Ibama e pelo IMAC. Todos foram com muita boa vontade, mas não foi encontrado nenhum corpo físico peruano no local. Aconselho aos peruanos que não se atrevam tanto porque se a gente os encontrasse, os traríamos presos. É um abuso o que está acontecendo. Tem muita gente que não gosta de ouvir isto que eu falo. Mas é importante que tomem consciência e eu não estou querendo guerra, mas consciência humana em relação aos direitos humanos.
No passado quem estabeleceu os limites entre o Brasil e o Peru não estudou direito o que tinha que ser feito. Diga-me se é certo delimitar um território deixando fora desse perímetro as nascentes que formam as bacias que banham aquele território. E aqui nós temos essa situação que é um dos fios condutores das invasões. Por exemplo: as cabeceiras do Rio Amoninha estão dentro do Peru, do Rio Amônea também, do Juruá estão dentro do Peru, do Purus também e é lá nesses locais que estão as populações isoladas. A pergunta que faço não só à sociedade nacional, mas à sociedade mundial é: até quando vamos segurar esse tipo de situação? Quando é que vão estar dispostos a discutir isto e a corrigir esse problema? Se isto revoluciona o Tratado de Petrópolis, eu sinto muito, mas é importante rever essa situação que está aí causando um estrago enorme nas questões ambientais e indígenas, ceifando vidas no nosso país. É isto o que estamos vendo.

Jornal O ESTADO - O problema é bem mais abrangente...
Sertanista Antônio Macedo - É. É a invasão madeireira, é o narcotráfico, é toda essa situação que está aí. O que é a invasão madeireira? É um fio condutor, é uma espécie de alavanca que move o narcotráfico e todo o mundo sabe disto.

Jornal O ESTADO - Vocês não fizeram contato com nenhum peruano na última visita, mas foi possível ver o que?
Sertanista Antônio Macedo - Os estragos causados. Foram feitas fotografias. O engenheiro florestal André, que foi nessa missão, fez as fotografias. A Polícia Federal também tem as fotos da exploração, os vestígios deixados, as estradas abertas, as toras de mogno. Agora há pouco os Ashaninkas ligaram dizendo que com a enchente do Rio Amônea estão descendo toras de mogno que estavam encalhadas dessa exploração. Tá tudo indo por rio abaixo. Tudo está documentado. Só ainda não tem concluído o laudo pericial. Estamos solicitando a volta de uma missão à região para concluir os laudos periciais. Estamos solicitando técnicos do IBAMA, do IMAC, membros da Polícia Federal e o efetivo do Exército na região. Estamos solicitando inclusive a presença da Polícia Militar para se inteirar do problema que o nosso Estado está vivendo.

Jornal O ESTADO - É um bom efetivo. Por que então as coisas não acontecem?
Sertanista Antônio Macedo - Não basta ter as instituições, não basta que elas cheguem ao local. O importante é ter as condições para que elas possam atuar. Aqui o Exército não tem um helicóptero. E para se deslocar a essa região é necessário. Quando é que vão suprir essa necessidade de Exército? O Exército precisa disto. Não é uma questão de falta de vontade do Exército para atuar na questão e cumprir o seu dever, mas não tem esses meios. Não é uma questão da Polícia Federal ao ver as fronteiras invadidas por estrangeiros não querer prendê-los. Não é isso, mas não tem muitas vezes o combustível para chegar ao local. A FUNAI está aqui com um quadro de funcionários super reduzido. Aqui nós atuamos em 49 terras indígenas que se localizam no Acre, no Sul do Amazonas e no noroeste de Rondônia. Temos alguns carros velhos quebrados, não temos uma aeronave, não temos um helicóptero. O IBAMA não possui isto também na região. É importante que a sociedade recorra às autoridades competentes deste país para que se discuta as necessidades que aqui existem, para que as instituições possam comprovar a sua atuação.

Jornal O ESTADO - É verdade que os Ashaninkas declararam guerra aos peruanos?
Sertanista Antônio Macedo - Eles estão dispostos a isto a todo o momento. Eles disseram isto a todos nós e estão dispostos a confirmar isto a qualquer membro da sociedade nacional. Se nada for feito no sentido de coibir os abusos que estão sendo cometidos contra os direitos deles, estão dispostos a qualquer momento... e eu te garanto que eles são capazes.

Jornal O ESTADO - Já existe registro de mortes?
Sertanista Antônio Macedo - Com os Ashaninkas do Brasil, não. Mas os Ashaninkas do Peru já entraram em choque com os Amowaka pela pressão causada por esses madeireiros. Então tiveram muitas mortes e vítima de guerra entre tribos não se conta.

Jornal O ESTADO - Quais são as populações indígenas que estão sendo diretamente afetas pela invasão madeireira na região próxima ao Rio Yaco?
Sertanista Antônio Macedo - O povo Manchineri (Matxineri) e o povo Jaminawa. Nessa região está também a população indígena Masko que não foi ainda contatada. Então há muita coisa aí pendente. O débito do país com a nossa região amazônica é grande. Hoje há uma mentalidade mais contemporânea, mas não basta isto não. Tem que ser contemporânea no que diz respeito à mentalidade, mas tem que operar com as condições que é preciso para trabalhar. Estou falando isto num desabafo real da minha parte. Sou um sertanista de quase 30 anos nessa Amazônia. É raro o território indígena nesta região que eu não tenha atuado. É rara a reserva extrativista criada nessa região que eu não pude atuar. Sou a pessoa que organizou o primeiro modelo de reserva extrativista neste país. E, de repente, me deparo com uma situação totalmente absurda que é essa. Eu não tenho poder algum, a não ser o da voz, de falar às pessoas que está errado o que está acontecendo, não só pela invasão, mas pela falta de condições que as organizações estão tendo para atuar no nosso território nacional. O que está acontecendo hoje não é um alarme falso, é questão de soberania nacional.

Jornal O ESTADO - A região em conflito começa onde?
Sertanista Antônio Macedo - Toda a região da fronteira peruana-brasileira, desde o Parque Nacional da Serra do Divisor a reserva Kampa do Rio Amônea; da Reserva Extrativista do Alto Juruá a região dos índios isolados; da região do Manchineri, na reserva indígena Mamoadate a Reserva Ecológica do Alto Acre, da cabeceira do Alto Acre onde estão os índios Jaminawá. Todas essas regiões estão sofrendo invasões. Se formos assistidos com os pedidos que estamos fazendo, uma expedição estará percorrendo essas regiões a partir desta semana. Isto é o que podemos fazer.

Jornal O ESTADO - Isto quer dizer que o Acre está perdendo a sua fronteira com o Peru?
Sertanista Antônio Macedo - Não só está perdendo a sua fronteira como as riquezas que tem nela. E pior que isto. Estaremos sofrendo um surto epidêmico pela poluição das águas. Será algo muito forte. As madeiras que estão levando daqui são o mogno, o cedro rosa, a copaíba. São essas espécies que aqui no Brasil são proibidas de serem retiradas e os peruanos estão levando de graça.
Não tenho nada contra o povo peruano, nem preconceito contra ninguém, mas quero usar um ditado que o meu pai dizia muito antes de morrer: 'somos todos iguais, mas cada macaco no seu galho e cada porco no seu chiqueiro'. Então, a gente respeita o Peru. Pode até haver nessas regiões a conivência de madeireiros brasileiros, mas pelo nosso conhecimento, dificilmente uma instituição brasileira esteja operando na ilegalidade na fronteira peruana.
É importante que o Peru se dê conta de que estamos vivendo um momento em que temos um governo no Acre que se diferencia muito dos governos anteriores. Um governo disposto a fazer valer, pela diplomacia, o desenvolvimento sustentável. E, hoje é o momento dessa importância diplomática ser levada a sério e acabar com essa brincadeira de invasões. Faz-se um pacto diplomático ali e pelas costas está se invadindo o território do outro. Não sei se as autoridades brasileiras vão se acostumar com esse tipo de brincadeira.

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