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A grande derrubada das araucárias

OESP, Vida, p. A27
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
21 de Set de 2006

A grande derrubada das araucárias

Marcos Sá Correa

O documentário, em si, dura 11 minutos. Mas a voz cansada do narrador soa como se falasse em nome da eternidade. Ele conta, passo-a-passo, a queda de um pinheiro do Paraná como se aquilo estivesse acontecendo ali na hora, ao ritmo dos machados de cabo 'envernizados de tanto uso', em 'golpes surdos, constantes, certeiros', que tiram 'lascas cheirosas' das feridas na resina. Não se vê o pinheiro cair nas cenas filmadas pelo fotógrafo Haroldo Palo Júnior. Mas na locução parece ao vivo e em cores: 'toc, toc, toc', 'vai cair, vai cair'. Narrá-las foi um dos últimos trabalhos de Gianfrancesco Guarnieri, que morreu em julho.

Agora sai A Grande Derrubada, como serviço póstumo à SPVS, ONG paranaense que, pela mão do publicitário Eloi Zanetti, procura com o documentário quem adote os últimos pinheirais do Estado, pagando para mantê-los em pé. Num país onde as campanhas políticas parecem mais mortas do que nunca, a voz de Guarnieri prova que, se elas acabaram, não foi por falta de causas ou de assunto. Pena que, para isso, não haja lugar nem partido nos horários de propaganda gratuita.

Sobram, no Paraná, 0,8% das suas matas nativas de Araucária augustifolia. E, mesmo reduzidas a esse ponto terminal, continuam caindo essas árvores que surgiram na terra há 300 milhões de anos. Em meados do século 16, quando o explorador espanhol Alvar Nuñes subiu o Prata, eram tão grandes 'que vários homens com os braços estendidos' não conseguiam abraçar. Por que caem?

A resposta pode ser quase inocente, como a do agricultor Felipe Paulo Rickli, soprada no documentário pelos vãos de caninos de ouro emergindo da barba branca: 'Papai mandou nós ir ver o terreno e nós voltemos aborrecidos, porque o terreno do homem não presta. É só pinheiro'. É o mesmo Rickli que aparece depois, confessando que do arroio mais próximo seu irmão tirou 'um capãozinho de pinheiro'. Depois, 'o genro dele destocou o terreno e fez roça'. No fim, 'não sobrou nem a metade do arroio que era'. Visto assim, Rickli nem chega a ser o culpado do estrago. É vítima dos costumes perdulários que o brasileiro herdou de seus colonizadores.

O legendário botânico Gerdt Hatschbach, que aos 80 e tantos anos ainda faz pesquisas de campo e conheceu o Paraná com florestas de araucária aparentemente sem fim, viajando um dia sob a cortina de fumaça que cobria o caminho, encontrou 60 quilômetros de pinheirais queimando, 'porque o dono não queria vender a madeira para as serrarias'.

'Tinha muito, muito, muito', lembra o agricultor Leonardo Czeleiski. Mas seu pai 'era dono de uma serraria que começou a serrar em 1923 e em 1928 ele parou, porque não deu mais para tocar'. A fonte de madeira havia secado em apenas meia década. Em seu lugar restou 'só devastação, ninguém ficou melhor de vida porque vendeu pinheiro'.

O problema é que, depois das serrarias, quase sempre vêm os campos de soja, que devastam mais ainda. 'Todos vinham para cá para ficar ricos depressa e voltar', lamenta o engenheiro florestal Miguel Milano. Ele cresceu no planalto paranaense dos anos 50, tomando banho em rio limpo e catando jabuticaba, pitanga, araticum, uvaia e pinhão na mata que confinava com os fundos de Palmital, então um arruado de casas de madeira. Milano viu fazendeiros e sitiantes venderem as araucárias de Palmital à indústria de papel, milhares de cada vez. Naquela época, os meninos brincavam com caminhões de madeira carregados de troncos, imitando o que faziam seus pais. O desmatamento serviu ao menos para empurrar Milano para o ambientalismo.

A Grande Derrubada chegou para dizer que não adianta mais esperar pela solução caída do céu, em forma de providências do governo. Não dá tempo para esperar que a sociedade mude e, mudando, conserte os políticos. 'Está na hora de tomar uma decisão final', resume o veterinário Clóvis Borges, que puxa a campanha para a adoção das últimas matas com araucárias do Paraná. Ele tem a única proposta para o meio ambiente que o brasileiro poderia ouvir neste triste ano eleitoral.

Marcos Sá Correa, Jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, 21/09/2006, Vida, p. A27

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