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Governo envia 2 mil homens do Exercito ao Para

O Globo, O Pais, p.13-14
16 de Fev de 2005

Planalto envia 2 mil homens do Exército ao Pará

BRASÍLIA. Depois de um dia de seguidas reuniões, o governo federal decidiu enviar tropas do Exército para fazer policiamento ostensivo na região de Anapu, no Pará, onde foi assassinada a missionária Dorothy Stang. Seguem ainda hoje para o oeste do estado cerca de 2 mil homens que, além do patrulhamento, vão combater a grilagem de terras e o desmatamento, com desarmamento de fazendeiros, posseiros e trabalhadores rurais. A decisão foi tomada à noite, depois da morte de mais dois trabalhadores rurais na região.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em viagem ao exterior, foi consultado pelo vice-presidente José Alencar e aprovou. Segundo o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, as tropas federais vão ajudar nas ações de regularização fundiária, dando apoio aos fiscais do Incra e do Ibama que atuarão na região de Anapu.

O anúncio das outras medidas, previsto para ontem, foi adiado porque o plano de ações ainda será submetido ao presidente Lula, que decidiu antecipar seu retorno ao país e chegará a Brasília às 15h para acompanhar de perto as investigações da morte da freira.

Hoje, Lula já deve se reunir com os ministros para tratar do assunto. Na Guiana, o presidente disse que antecipou o retorno depois de ser informado do assassinato de um trabalhador, dias depois da morte da freira.

— Conversei com o nosso vice-presidente hoje. Está tudo mais ou mesmo encaminhado. Não há nada excepcional que se possa fazer, mas quero voltar para dar mais segurança às pessoas que vão ter de tomar algumas decisões. Por isso decidi antecipar minha volta ao Brasil — explicou o presidente.

O chefe da Casa Civil, José Dirceu, disse que a ação federal não será limitada à atuação de uma força-tarefa.

PF também terá presença ostensiva

BRASÍLIA. As Forças Armadas vão atuar no Pará com mais homens e equipamentos. O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, reuniu-se com os três comandantes militares e confirmou que o contingente de agentes da Polícia Federal no estado também irá aumentar. Será uma presença ostensiva. A fiscalização do Ibama e do Incra nas propriedades rurais enfrenta resistência de grileiros, que ameaçam e intimidam os fiscais.

— Uma coisa é chegar numa área num helicóptero do Ibama. Outra, bem diferente, é chegar num helicóptero do Exército — disse a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.

— Foi uma reunião de planejamento e articulação. A repressão será dura e inteligente. Não é admissível que o Estado seja desafiado e afrontado — disse Bastos.

Ministros evitaram ataque ao governo do Pará

Os ministros evitaram ataques ao governo do estado. Para alguns integrantes do governo Lula, é indiferente que o processo do assassinato de Dorothy Stang seja transferido para a esfera da Justiça Federal.

— Não há inconveniente (em federalizar o crime). As polícias Federal e Civil estão atuando sintonizadas e em harmonia. E de forma eficiente e eficaz. Qualquer decisão será acatada pelo governo — disse o chefe da Casa Civil, José Dirceu.

Bastos afirmou que o assassinato da missionária tem elementos que podem caracterizar o crime como federal, mas ressaltou que há uma absoluta cooperação entre as polícias dos dois governos.

— Nesse momento, é indiferente federalizar ou não. Em qualquer que seja a esfera, a investigação não será perdida e serão aproveitadas as investigações da Polícia Federal e da Polícia Civil — disse Bastos.

O procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, disse ontem que existem indícios suficientes para justificar a transferência da investigação do assassinato da Justiça estadual para a federal. Ele disse, no entanto, que a decisão sobre o pedido de federalização só será tomada em duas ou três semanas:

— Temos que refletir se há interesse federal. Parece haver, porque a luta da irmã Dorothy era justamente para definir a situação do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), um programa federal.

Fonteles voltou a dizer que as autoridades paraenses têm sido omissas e deixam de atender à necessidade de segurança dos envolvidos nos conflitos agrários.

Entenda a federalização

A reforma do Judiciário, que entrou em vigor no dia 31 de dezembro de 2004, traz em seu artigo 109 a possibilidade de um crime contra os direitos humanos praticado num estado ser considerado de competência federal. Para isso, o procurador-geral da República deverá solicitar ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) a transferência das investigações para as mãos de policiais federais e juízes federais.

A iniciativa é exclusividade do chefe do Ministério Público, que deverá analisar se o caso é grave o suficiente para merecer a transferência.

O artigo visa a garantir maior isenção a investigações. O legislador entendeu que se a apuração de um crime de alta repercussão ficar sob a responsabilidade da Justiça local, haveria grandes chances de o caso terminar impune. Outra justificativa é assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos.

Freira denunciou três pessoas em carta à polícia

BRASÍLIA. No dia 3 de fevereiro, oito dias antes de ser assassinada, a missionária Dorothy Stang enviou um documento ao delegado-geral da Polícia Civil do Pará, Luiz Fernandes, em que relata que três pessoas estavam ameaçando famílias de agricultores na região de Anapu com pistoleiros. Das três, duas agora estão sendo procuradas pela polícia como responsáveis pela morte da freira americana.

Uma delas seria o mandante, Vitalmiro de Moura, o Tato (ou Tota), e a outra, o intermediário, Amauri Cunha, o Bida, acusado de ter contratado os dois pistoleiros que executaram Dorothy. Pessoas como Taradão, Bida e Tato, que através de pistoleiros, têm amedrontado e expulsado várias famílias de suas casas para explorar livremente a madeira e implementado pasto no lugar das plantações existentes”, afirma o documento.

Na carta, a freira declara que a polícia de Anapu não tem condições de apurar as denúncias de violência. Ela pede que seja designada uma equipe de policiais de fora do município. Ante o exposto, requer as providências cabíveis a Vossa Excelência, em especial a determinação para que a Polícia Civil investigue todos os fatos. Requer ainda que seja designada uma equipe de policiais de fora do município para realização destas investigações”, afirma o texto da missionária.

Mais dois trabalhadores são mortos no Pará

BRASÍLIA E SÃO PAULO. Mesmo diante da forte repercussão da morte da freira Dorothy Stang, pistoleiros voltaram a agir e mataram ontem a tiros o ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Parauapebas, no Pará, Daniel Soares da Costa Filho, e o colono Carlos Branco, encontrado morto perto do lugar onde a missionária foi assassinada. Com isso sobe para quatro o número de pessoas ligadas a conflitos agrários mortas no Pará nos últimos três dias.

— Não tenho alucinação de achar que esses assassinatos estão articulados, mas essas mortes são uma constante. Está acontecendo o que sempre aconteceu no Pará — protestou o presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), dom Tomaz Balduíno.

Segundo a Polícia Federal, Daniel Soares foi assassinado no final da manhã, quando viajava de moto de Parauapebas até o assentamento Carlos Fonseca, a cinco quilômetros de distância da cidade. Dois homens, que estavam em outra moto, perseguiram o sindicalista e dispararam seis tiros contra Soares. Segundo a polícia, Soares teria sido atingido na cabeça e nas costas.

Daniel Soares era presidente da Associação dos Assentados do Projeto Carlos Fonseca, uma dissidência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Parauapebas. O delegado da Polícia Federal Luiz Eduardo foi designado para fazer as investigações preliminares. Segundo o capitão Deodato Alves, da Polícia Militar de Parauapebas, Soares era desafeto do atual presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade, Francisco de Assis, e esta será uma das linhas de investigação.

Sindicalista e padre ameaçados

Momentos depois de receber a informação sobre o assassinato de Daniel Soares, a PF começou a apurar também a morte de Carlos Branco, que vivia na gleba Mandaquaru, que fica entre Pacoiá e Anapu. O principal suspeito é um grileiro conhecido na região como Divino.

No último sábado, logo depois da morte da missionária americana, Adalberto Xavier Leal, peão de uma das fazendas de Anapu, foi assassinado. Seis ativistas e camponeses foram assassinados no sul e oeste do Pará desde o dia 9 de janeiro até ontem, segundo levantamento da CPT.

Além dos assassinatos, as ameaças de morte continuam na região onde foi morta a missionária americana. Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Anapu, Francisco de Assis dos Santos Souza, o Chiquinho, recebeu ameaça na segunda-feira, menos de 48 horas após o assassinato de Dorothy. A ameaça foi deixada por escrito na casa do sindicalista por dois homens que obrigou uma prima de Chiquinho a escrever um bilhete.

Numa referência indireta ao assassinato de Dorothy Stang, o texto dizia que os movimentos populares de Anapu vinham subestimando a inteligência de seus inimigos. E que, agora, está provado quem é mais inteligente. Por fim, vinha a ameaça direta: os homens afirmaram que Chiquinho será a próxima vítima.

Outro ameaçado de morte é o padre José Amaro, amigo e vizinho da missionária. Ele teria sido informado de que estaria na fila como um dos próximos a ser executado. A ameaça foi repassada ao Ministério Publico.

No funeral, protesto e pedidos de justiça

ANAPU (PA). O enterro da missionária Dorothy Stang, assassinada sábado no Pará, acabou transformando-se num grande ato público pela punição dos criminosos e para reforçar o coro por reforma agrária na região, um dos ideais da religiosa. Segundo estimativas da Polícia Militar, cerca de 2 mil pessoas participaram do funeral, em Anapu, a 600 quilômetros de Belém.

O corpo foi enterrado no Centro San Rafael, uma chácara criada por Dorothy para educar e conscientizar os agricultores da região. Era ali que ela queria ser sepultada. O cortejo com o corpo, que chegara em Anapu na segunda-feira à tarde, saiu da igreja matriz ao som de sinos. O caixão estava coberto por duas bandeiras do Brasil.

No cortejo, cartazes, faixas e cruzes pedindo justiça

A pequena multidão que ocupou as ruas estreitas de chão batido da cidade era composta, em sua maioria, por gente humilde, que ostentava faixas, cruzes e cartazes com pedidos de justiça e homenagens à freira. Gente como a lavradora Maria do Carmo Pereira, de 29 anos:

— Foi ela quem deu apoio para minha família quando chegamos aqui, em 1985.

Da igreja o corpo foi levado para o único clube da cidade, onde o bispo da região do Xingu, Dom Erwin Krautler, rezou missa acompanhado de mais onze religiosos, entre eles uma pastora luterana. A celebração misturou comoção e protesto.

— Enquanto o Estado não fizer seu dever de dar segurança ao povo, a coisa não vai mudar. Eles (posseiros, madeireiros e grileiros) vão matar sempre. Aqui é terra sem lei, onde quem manda é o 38 — disse o bispo, antes de cobrar punição também para os mandantes e não apenas para os pistoleiros.

— Viva a vida, acabe a impunidade, viva a floresta e viva Dorothy! — bradaram os fiéis.

Os discursos prenunciavam que o crime acabara de transformar a freira numa nova mártir da região. Pedaços de pano com o sangue de Dorothy, os tênis, o boné, uma camisa e a bolsa que usava foram levados ao altar improvisado, em procissão.

— A vitória não é deles. A semente de Dorothy vai gerar os frutos da justiça e nós, o seu povo, venceremos — dizia Sandra, irmã da congregação da freira.

O governador do Acre, Jorge Viana — representando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva — deputados federais e senadores acompanharam o funeral.

Prisão de suspeito já fora pedida

BRASÍLIA E ANAPU (PA). A Polícia Federal pediu em setembro de 2004 a prisão do fazendeiro Vitalmiro Gonçalves de Moura, agora acusado de mandar matar a missionária Dorothy Stang. O pedido foi recusado pela Justiça Federal, que teria considerado inconsistentes os indícios levantados pela polícia contra Moura.

Segundo a polícia, Moura tem fortes ligações com Regivaldo Pereira Galvão, o Taradão, integrante do esquema de desvios de recurso da extinta Sudam. Taradão fez parte do grupo de supostos aliados do deputado Jader Barbalho (PMDB-PA).

Ano passado, a PF abriu inquérito para investigar desmatamento ilegal e outros crimes em Anapu. Moura chegou a ser indiciado por formação de quadrilha e crimes ambientais, mas a Justiça Federal rejeitou o pedido de prisão dele.

— Dizem que nada fizemos. Fizemos nossa parte. Pedimos a prisão, sem sucesso — disse o delegado Raimundo Soares Freitas, da PF no Pará.

O delegado acrescentou que em junho de 2004 pelo menos 15 policiais estiveram em Anapu para assegurar o trabalho de funcionários do Incra.

No fim da tarde, a PF divulgou uma foto antiga de Moura. O retrato, tirado em 1988, faz parte do banco de dados do Instituto de Identificação do Pará. Na imagem, o fazendeiro aparece sem barba e com topete alto. Para a PF, Moura pouco mudou nos últimos anos. A direção-geral da Polícia Federal reforçou o contingente de policiais mobilizados na busca a Moura, aos pistoleiros José Maria Pereira e Uquelano Pinto e a Amauri Cunha, apontado como intermediário na contratação dos matadores.

Mas, mesmo com a ajuda dos policiais civis e militares, as buscas foram infrutíferas. Os policiais receberam muitas informações discrepantes e nenhuma se confirmou.

— Até agora não temos nenhuma pista concreta de onde eles estão — afirmou o superintendente da Polícia Federal no Pará, José Sales.

A polícia deve divulgar hoje o retrato falado de um dos suspeitos. O retrato-falado vai ser baseado no relato de uma das testemunhas que estava ao lado de Dorothy Stang no momento dos primeiros disparos. As péssimas condições das estradas e a chuva que castiga Anapu vem dificultando a ação policial.

Lula, o grande ausente no Pará

A ausência mais sentida no enterro da freira americana Dorothy Stang, no Pará, foi a do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que ontem estava na Guiana. Desde que assumiu a Presidência, Lula esteve em velórios e enterros de muitas pessoas que não eram tão afinadas com as bandeiras do PT ou com os direitos humanos. Lula chegou a dizer que ficou chateado com o crime, que teve repercussão internacional, porque conheceu a missionária durante uma das caravanas da cidadania.

Em 1988, então presidente do PT, foi diferente: Lula fez um discurso contundente no enterro do líder dos seringueiros Chico Mendes, no Acre. Ele disse que o crime ocorreu por falhas das polícias Federal e Militar, do Ministério da Justiça e da Presidência da República por tratar com descaso os conflitos na região.

Em outubro de 2003, Lula esteve no velório do deputado José Carlos Martinez, um aliado recente e nada próximo do PT, presidente nacional do PTB, que morreu na queda de um avião.

— O povo do Paraná e o povo que acompanha a política sabem da importância excepcional que o Martinez estava tendo para o governo e para a política nacional. Foi um parceiro excepcional — disse Lula no velório.

O mais recente velório em que esteve foi o do presidente do PDT, Leonel Brizola, quando foi recebido com vaias e gritos de traidor. A hostilidade foi tão intensa que Lula ficou apenas cinco minutos com a família de Brizola.

O presidente também esteve no velório do alto comissário da ONU para Direitos Humanos, Sergio Vieira de Mello, morto no Iraque, no do senador Lauro Campos, em que chegou a chorar, e compareceu ao enterro do jurista Evandro Lins e Silva. Lula estava abatido e emocionou-se durante a missa de corpo presente.

Emocionado a ponto de encerrar o discurso por causa das lágrimas, Lula participou do velório de 19 dos 21 técnicos que morreram na Base de Alcântara, no mais trágico acidente em plataforma de lançamento de foguetes no Brasil, em agosto de 2003.

O Globo, 16/02/2005, O País, p.13-14

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