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Gisele, Leonardo, saúde e soberania

Amazônia-org.br-São Paulo-SP
Autor: Carmen Figueiredo
13 de Set de 2004

A capa da edição de 03 de setembro último da revista Caras é realmente maravilhosa: o ator Leonardo Di Caprio e a modelo Gisele Bündchen pintados em uma aldeia do Alto Xingu e abraçados com o pajé Sapaim. Cartão postal de fazer inveja, de resgatar a romântica idéia do "bom selvagem", de mostrar para o mundo o exotismo da cultura brasileira, a imagem que a maioria das pessoas gostariam de guardar para sempre quando se trata de índios.

Aliás, julho e agosto são os meses favoritos do Governo para exibir o magnífico cartão postal que é o Alto Xingu, afinal é tempo de Kuarup. Aviões pequenos decolam com dúzias de autoridades nacionais e internacionais. Todos ansiosos para assistir a uma festa exótica. Por ironia, a festa animada dos brancos se contrapõe à própria razão do Kuarup, a festa dos mortos. Momento de tristeza e saudade. O fato dos índios realizarem esta cerimônia com uma grande festa não significa que a tristeza não esteja presente, significa apenas que a forma deles expressarem sua tristeza é diferente da nossa.

Mas qual o problema em buscar matar a curiosidade em conhecer uma cultura exótica, tão diferente da nossa? Nenhum, na verdade. Creio até ser muito saudável se permitir conhecer o novo despido de preconceito.

O problema reside em se querer mostrar ou se contentar em conhecer somente a fantasia e a mágica desse novo mundo, dessa nova cultura.

A realidade é muito dura.

Assitir ao Kuarup é o máximo, ver índio colocando verme pela boca ou bêbado na cidade e assistir a morte de sua cultura única é outra. Foto de Leonardo Di Caprio com índios é "fofo", foto de índio recebendo atendimento médico é exploração de imagem.

Não haveria nada de errado em exibir ao mundo a exuberância e riqueza da cultura do Alto Xingu e de tantas outras deste país se não fosse a situação de calamidade em que vivem atualmente esses povos. Preocupante são os atuais referenciais que determinam o que é bom e o que é ruim para os índios.

Levar dúzias de autoridades e bacanas para assitir ao Kuarup é muito bom para os índios, não expõe, nem tampouco denigre a imagem dos índios. Uma equipe de médicos brasileiros - em parceria com o departamento de índios isolados da FUNAI - atender a um pedido de socorro público dos índios do Vale do Javari e da COIAB, que assistem à morte em suas comunidades sem nada poder fazer, é nocivo às comunidades indígenas, segundo a falecida juíza federal substituta do Amazonas, Fabíola Bernardi, que determinou em 30/04 a suspensão da expedição médica.

A juíza determinou que "cumpre ao Estado Brasileiro desenvolver, tão somente, políticas de saúde e bem estar social direcionadas a estas comunidades (indígenas)" e que a expedição "sugere que o Governo Brasileiro nada tem feito pelas comunidades em questão". Se isso é grave, mais grave foi de onde partiu o pedido para a suspensão da expedição médica Imagem do Javari: Ministério Público Federal do Amazonas. Isso mesmo, aqueles que têm por obrigação legal defender os interesses indígenas, em uma demonstração infeliz de despreparo para defender e tratar com estas culturas diferenciadas, pediram a suspensão do atendimento médico às comunidades indígenas no Vale do Javari, quando esta era a única equipe médica dentro da área indígena. O despreparo se evidencia quando o MPF registra que a equipe estava atendendo aos índios isolados. Bem, se eles são isolados, como atendê-los? Na verdade a expedição tinha, sim, como um de seus objetivos proteger os índios isolados na medida em que, se identificando e tratando a epidemia que se alastra entre os índios com contato, poder-se-ia evitar o contágio e mortes daqueles povos ainda isolados.

Para os índios é como ter perdido "um amigo fiel", pois são históricas e louváveis as defesas do MPF em defesa dos direitos indígenas e, de repente, a defesa se transforma numa sentença de morte.

A expedição - comandada pelo sertanista e chefe da Coordenação Geral de Índios Isolados da Fundação Nacional do Índio (Funai), Sydney Possuelo, e pelo médico radiologista Sérgio Brincas - tinha como objetivo investigar uma epidemia infecto-contagiosa ainda desconhecida que vem afligindo as tribos indígenas da região do Vale do Javari.

A expedição pretendia percorrer os leitos dos rios Itaquaí e Ituí, realizando exames de raios-X e ultra-sonografia, além de exames de sangue para rastreamento de doenças infecciosas, principalmente hepatite e turberculose. O projeto contou com o apoio do Colégio Brasileiro de Radiologia e o patrocínio da Divisão de Imagens para a Saúde da Kodak.

Tudo isso poderia ter sido uma grande mal entendido mas, infelizmente, não foi. Mais tarde, em reunião na PGR em Brasília, em 14 de abril de 2004, na 6a. Câmara, com dois sub-procuradores, FUNAI e Direção da FUNASA, a situação se torna ainda mais preocupante. Para começar, a direção da FUNASA desqualificou por completo sua equipe de campo, ao afirmar que essa não tem qualquer autoridade para efetuar a parceria com uma ONG e FUNAI, mesmo que em uma iniciativa louvável e respeitosa para melhor cumprir seu papel de garantir a saúde dos índios frente às dificuldades e limitações da própria FUNASA. A vaidade fala mais alto que a tentativa de salvar vidas humanas. Onde chegamos - a direção de um órgão que não respeita seus profissionais de campo, verdadeiros heróis que se submetem a situações não imagináveis pelos teóricos diretores em seus gabinetes em Brasília?

O então diretor do Departamento de Saúde Indígena da FUNASA, Dr. Ricardo Chagas, ainda afirmou que a FUNAI não poderia realizar qualquer iniciativa na área de saúde junto às comunidades indígenas. Os absurdos continuaram quando o presidente da FUNAI se desculpou ao representante da FUNASA por ter apoiado a iniciativa do Departamento de Índios Isolados do órgão em levar socorro médico aos índios contatados. Em uma situação surreal, desculpou-se por fazer o que tem por obrigação: garantir a integridade física e cultural dos povos indígenas deste país.

As surpresas não pararam por aí. Um coro foi formado quando a "soberania nacional" foi invocada como uma das preocupações para o pedido de interrupção da expedição médica. A direção do Departamento de Saúde Indígena questionou quais seriam os interesses de uma empresa estrangeira em fornecer equipamentos de última geração para atender aos índios quando a maioria dos hospitais públicos brasileiros não dispõe destes equipamentos. O Sub-Procurador da República, membro da 6a. Câmara, que estava presente, concordou veementemente e afirmou ser necessário estar atento aos interesses internacionais na ajuda aos índios no Brasil. Cabe abrir parênteses para registrar a desinformação do MPF quando da insinuação dos "interesses internacionais": a equipe do projeto - brasileira, diga-se de passagem - procurou o apoio de uma empresa que possuísse uma tecnologia em equipamentos radiológicos portáteis e que não produzissem resíduos tóxicos em sua revelação, diferentemente do que ocorre com os aparelhos convencionais. A questão era buscar tecnologia correta e adequada e não nacionalidade de empresa. Esta poderia ser brasileira, paraguaia ou chinesa.

Aparentemente, o problema reside na ajuda aos índios. Até hoje ainda não vi a soberania nacional ser invocada quando empresas - nacionais ou não - apóiam iniciativas junto às comunidades não índias, de brancos, através de seus programas de responsabilidade social. Existem inclusive, diversos prêmios para estas iniciativas. Será que é proibido multinacional doar dinheiro para o Fome Zero? Será que a soberania nacional está em jogo quando o FMI e Banco Mundial emprestam dinheiro para o Brasil? Claro que não! O problema é índio. Índio não pode ter atendimento médico com equipamentos de última geração, afinal quem eles pensam que são? Índio não pode receber apoio de programas privados de responsabilidade social, seria o cúmulo, afinal a soberania nacional está em jogo. A soberania nacional tem sido o pano de fundo para um genocídio lento e discreto, de forma a não ser percebido e dar margem a denúncias em tribunal internacional de direitos humanos. Afinal, será que vinte índios mortos aqui e mais dez acolá é genocídio?
Este lamentável episódio provoca uma importante reflexão. Como um governo que se elegeu tendo como princípio a participação e inclusão social permite que a vaidade e o preconceito de seus representantes seja maior que a vida de seus cidadãos? Será que os índios não são tidos como cidadãos? Por que os índios teriam menos direitos que o restante da população brasileira? Por que somente a assistência aos índios coloca em risco a soberania nacional?

Mais uma vez poderia se pensar que essa situação somente ocorreu em razão do despreparo dos dirigentes da FUNASA responsáveis pela saúde indígena mas, infelizmente, é pouco provável. Pouco tempo depois da citada reunião, o diretor foi demitido. No entanto, existe a informação de que o atual diretor, ao tomar conhecimento do episódio, reconheceu e agradeceu por escrito os resultados parciais da expedição como de fundamental importância para a execução de ações na região. Apesar disso, o processo judicial contra a expedição continua e a FUNASA nada fez para corrigir essa situação. No mínimo, isso permite supor que não se trata de desconhecimento, mas sim, uma política da Instituição - e conseqüentemente, de Governo - avessa às parcerias não governamentais.

Por isso Gisele, cuidado! Ajudar aos índios como você pretende, segundo declaração na revista Caras, pode lhe custar um processo milionário. Mas com certeza seus cheques continuarão a ser bem-vindos no Fome Zero. Ajudar índio pode lhe transformar em inimiga da soberania nacional, mas ajudar o Fome Zero vai lhe render título de cidadã exemplar.

Enquanto os índios morrem aqui, o Brasil faz papel de bom moço com o envio de tropas para o Haiti. Mas o que vale mesmo é esperar pelo próximo Kuarup. Qual será o artista da hora para a capa da Caras? Para tanto, o Governo vai ter que ficar na torcida para que morram chefes importantes do Alto Xingu, afinal, sem a morte deles não terá festa. Aliás, nem vai precisar torcer muito, é só continuar do jeito que está que tem Kuarup garantido por um bom tempo.

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