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Gigantes da soja articulam consórcio para concluir BR-163

Valor Econômico, Especial, p. A1, A12
Autor: FALEIROS, Gustavo; LANDIM, Raquel
26 de Nov de 2003

Gigantes da soja articulam consórcio para concluir BR-163

Gustavo Faleiros e Raquel Landim

As maiores tradings de soja do país, a Petrobras e empresas da Zona Franca de Manaus definem, no dia 4, a formação de um consórcio que disputará a licitação para o término da BR- 163, que liga Cuiabá, capital do Mato Grosso, a Santarém (PA). A obra, prometida nos oito anos da administração Fernando Henrique Cardoso, gera polêmica por seus potenciais danos à Floresta Amazônica e revela uma disputa comercial entre as tradings de soja.
A Cargill é a única que possui um terminal graneleiro em Santarém. Mas para não favorecê-la em relação às concorrentes a rodovia só será pavimentada até Miritituba, às margens do rio Tapajós, a 200 quilômetros do porto paraense. Com isso, a iniciativa privada deve economizar entre R$ 50 milhões e R$ 100 milhões. O governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, adiantou ao Valor que, se o projeto da estrada prosperar, a Amaggi (trading que pertence à sua família), a Bunge e a ADM devem fechar parceria para
Fontes: Ministério dos Transportes ; Prefeitura de Locas do Rio Verde -
construir um terminal de barcaças em Miritituba e um terminal graneleiro em Santarém ou Macapá (AP).
A licitação deverá ser encerrada no último trimestre de 2004 e o grupo vencedor terá a concessão da rodovia por 25 anos. O custo estimado para a pavimentação dos 900 quilômetros é de R$ 175 milhões. Preocupadas com o impacto ambiental, ONGs cobram a regularização fundiária nas margens da estrada e a criação de novas unidades de conservação. p. A1

Infra-estrutura - Rodovia Cuiabá-Santarém será licitada até fim de 2004; ambientalistas impõem condições à obra
Acordo do governo e empresas viabiliza a polêmica BR-163
Promessa dos oito anos do governo FHC, a pavimentação da rodovia BR-163, que liga a capital do Mato Grosso, Cuiabá, à cidade paraense de Santarém, deve se tornar uma das principais obras da administração Lula. Mais do que isso, o governo aposta que o projeto, com conclusão prevista para 2008, será uma das parcerias público-privadas (PPP) mais bem sucedidas de sua gestão.
Trata-se, no entanto, de uma obra polêmica. Asfaltar uma estrada que cruza trechos isolados do Estado do Pará pode representar uma ameaça para algumas das regiões mais preservadas da Floresta Amazônica, alertam os ambientalistas. Além disso, as vantagens competitivas dessa nova saída da produção agrícola têm criado uma disputa entre tradings e produtores de soja, o principal item da pauta de exportação brasileira. São esses ganhos também que explicam por que a BR-163 tem tanto peso nas esferas de governo.
A Cuiabá-Santarém foi "aberta" entre os anos de 1973 e 1976, durante o governo militar. Desde então, de seus 1,7 mil km, apenas 850 1m foram pavimentados, a maior parte no Mato Grosso. Atualmente, trafegam 80 veículos por dia pela rodovia e, na época das chuvas, o trecho paraense torna-se intransitável.
O asfaltamento da BR-163 é o sonho de todo produtor agrícola instalado no Médio Norte do Mato Grosso. Escoar as safras de soja por portos fluviais nos Estados do Pará e Amapá diminuiria significativamente o custo com frete para a exportação-calcula-se uma economia de R$ 46 milhões por ano. Hoje, os grãos são levados por caminhões, ou pela Ferronorte, até os portos de Paranaguá (PR) e Santos (SP). Com a rodovia, também seria possível suprir o mercado nordestino com alimentos (arroz, feijão, milho) e ração animal.
Incitadas pela inclusão do término da BR-163 no plano plurianual do governo Lula, as principais esmagadoras de soja do país, em parceria com os produtores, retomam o projeto de um consórcio com grandes empreiteiras para concorrer à licitação que será feita no ano que vem. Entre as tradings estão o Grupo André Maggi, da família do governador do Mato Grosso e rei da soja, Blairo Maggi (PPS), e as multinacionais americanas Cargill, Bunge e ADM. Também devem participar da sociedade a Petrobras e empresas da Zona Franca de Manaus, uma vez que se espera que a BR 163 diminua em três dias o transporte de bens eletroeletrônicos para os mercados do Sul do país.
O prefeito de Lucas do Rio Verde, município do Médio Norte do Mato Grosso situado na BR-163, Otaviano Pivetta, é a pessoa encarregada de organizar o consórcio para a conclusão da rodovia. Para isso, até se licenciou do cargo. Segundo ele, ainda não existe um consórcio formado, mas o martelo deve ser batido no próximo dia 4. Uma reunião está marcada em São Paulo para a definição dos participantes.
O consórcio deverá tomar empréstimos a serem concedidos pelo governo federal, através do BNDES e dos fundos constitucionais do Centro-Oeste e do Norte. Depois de concluída a obra, irá cobrar pedágio e quitar a dívida, explica o governador do Mato Grosso, Blairo Maggi. Segundo Pivetta, ainda não foi definido o valor do pedágio e está em estudo a isenção de automóveis e a criação de um fundo de desenvolvimento sócio ambiental. Mas fontes das empresas ligadas ao consórcio acreditam em um pedágio entre US$ 5 e US$ 8 por tonelada.
O plano do governo federal é concluir até o último trimestre de 2004 uma concessão para a recuperação do asfalto de Nova Mutum (MT) até a divisa entre Mato Grosso e Pará e para a pavimentação deste ponto até a cidade de Rurópolis (PA), a 2001an de Santarém O custo estimado da obra é de R$ 175 milhões. Segundo o gerente da BR-163, o engenheiro do Ministério dos Transportes, José Maria da Cunha, a expectativa é que as obras se iniciem em abril de 2005 e estejam concluídas em três anos. A concessão do serviço à iniciativa privada duraria 25 anos.
Os volumes anuais de movimentação de produtos agrícolas previstos para a rodovia são expressivos e mostram que em pouco tempo, entre sete e dez anos (dependendo do preço do pedágio) o custo de US$ 175 milhões da obra será coberto. Para esse cálculo, Pivetta considera pedágio de US$ 5 por tonelada e volume de 5 milhões de toneladas de produtos por ano. Somados os custos para manutenção da estrada e os juros, o prazo pode até ultrapassar os 10 anos. Ele ressalta, porém, que esses valores serão definidos pelo edital de licitação.
Como a estrada não chegará até Santarém num primeiro momento, prevê-se que a produção agrícola seja transportada em barcaças de Miritituba; cidade às margens do Rio Tapajós, até os portos de Santarém e Macapá. Segundo os futuros participantes do consórcio, a iniciativa privada irá economizar de R$ 50 milhões a R$ 100 milhões interrompendo as obras em Rurópolis.
De acordo com fontes do setor de soja ouvidas pelo Valor, deixar sem asfalto esses últimos 200 km foi a forma de fechar um "acordo de cavalheiros" entre as tradings da soja. "Se a rodovia for até Santarém, beneficia apenas a Cargill", admite José Luís Glaser, diretor para a área de soja da empresa. "Mas sou a favor de qualquer obra nessa estrada. Para nós, o frete é o mesmo".
A Cargill investiu US$ 20 milhões e inaugurou, em abril desse ano, um terminal de grãos em Santarém com capacidade para 800 mil toneladas de soja/ano. Sem a estrada, a empresa movimenta hoje metade desse volume, que chega pelo Rio Madeira e é adquirido no oeste do Mato Grosso.
Parar as cargas em Miritituba, portanto, é uma forma de colocar todas as empresas em pé de igualdade. Em entrevista ao Valor, Maggi, adiantou que, se o consórcio vingar, a idéia é formar um pool de empresas, incluindo Amaggi, Bunge e talvez a ADM, e construir um sistema de barcaças em Miritituba e um terminal em Santarém ou em Macapá. A maggi, trading do Grupo André Maggi, e Bunge, maior esmagadora de soja do país, são grandes parcerias na logística da soja. Além de serem sócias no projeto do Terminal Graneleiro de Grãos (TGG) em Santos, assinaram um contrato recentemente pelo qual a Maggi aluga parte de sua capacidade no porto de Itacoatiara (AM) para a Bunge, abrindo as portas à múlti para a saída pelo norte do país.
Mas nem todos estão felizes com os planos do `consórcio da BR-163'. Produtores ouvidos pelo Valor vêem a estratégia como forma de manter os benefícios da estrada nas mãos de poucos. Argino Bedin, membro do Sindicato Rural de Sorriso e um dos grandes plantadores de soja do Mato Grosso, afirma temer que o projeto, como está sendo desenhado, seja concentrador de renda e de terras. "Não tenho dúvidas que isso vai acontecer".
Já Maggi enumera a conclusão da BR-163, a ampliação da Ferronorte, e a hidrovia do Rio Madeira como as obras prioritárias para solucionar o gargalo na logística de escoamento da soja produzida pelo Mato Grosso. Se mantiver o ritmo atual de crescimento de safra, o Estado, que hoje produz 17 milhões de toneladas de grãos, irá atingir 24 milhões' em 2004 e 45 milhões em 2010. "Essas quatro vias são muito importantes para o nosso Estado, que não possui recursos para a sua conclusão. Daí a necessidade das PPPs ", diz o governador. O conceito já existe no Estado, que deve concluir esse ano a construção de 5001mi de rodovias, com metade do empreendimento financiado pelos produtores.
Só com a conclusão da BR-163, os produtores acreditam que serão incorporados mais de 3 milhões de hectares à lavoura de soja. Embora os agricultores garantam que a expansão não se dará em nenhuma área de floresta, as principais organizações não governamentais (ONGs) temem que a BR-163 desencadeie um processo de ocupação predatório da Amazônia.
"A BR-163 pode representar um novo foco de desmatamento, fora das tradicionais áreas do arco de desflorestamento, o que causaria uma fragmentação da Amazônia e a tomaria em algo totalmente diferente do que conhecemos hoje", argumenta a coordenadora de políticas públicas do Instituto Sócio Ambiental (ISA), Adriana Ramos. Segundo ela, as ONGs defendem a pavimentação da rodovia, mas querem que ela represente um vetor de desenvolvimento não apenas para o setor agropecuário mas também para pequenos produtores . "O governo tem que chegar na região antes do asfalto", resume.
Para o professor da Universidade Federal do Mato Grosso, Antônio Castrillon, um estudioso dos impactos sociais das lavouras de soja, o problema da BR-163 não é propriamente o seu asfaltamento, mas o modelo de desenvolvimento que pode ser difundido através dele. Hoje, diz Castrillon, a riqueza do nortão do Mato Grosso, representada pelas promissoras cidades de Sinop e Sorriso é uma grande vitrine em prol da estrada. "O Mato Grosso é um perigo para a Amazônia porque está formando uma elite política de sojicultores que defende um modelo com alta concentração de renda", opina.
Para discutir medidas que minimizem os impactos da BR 163, o ISA organizou ao lado de outras ONGs de peso, como Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia, W WF, Conservation Intemational e Instituto Centro de Vida, o seminário "BR 163 Sustentável", em Sinop, pólo de produção agrícola. O seminário foi uma forma de os ambientalistas disserem que não são contrários à pavimentação da estrada, mas também de cobrarem ações do governo federal.
Aparentemente, o governo Lula está empenhado em segurar o afã do desenvolvimento causado pela pavimentação da estrada A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e o ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, estiveram no encerramento do evento em Sinop, ao lado do governador Blairo Maggi, e garantiram que a BR 163 será um marco nas obras de infra-estrutura na Amazônia. Após ouvir discursos das principais lideranças indígenas do Xingu, Marina afirmou: "Se estão formando um consórcio para financiar a obra, porque não formamos um consórcio social".
As medidas para garantir a sustentabilidade da BR-163 serão calcadas nos planos do grupo de trabalho sobre o desmatamento da Amazônia, que foi coordenado por Ciro. Segundo o diretor de florestas do Ministério do Meio Ambiente, Carlos da Rocha Vicente, a prioridade é o ordenamento fundiário das regiões às margens da rodovia. São consideradas a criação de novas unidades de conservação e a implementação de zoneamentos ecológicos econômicos no Mato Grosso e no Pará para definir quais as áreas que serão usadas pela atividade agropecuária.
Assim como a BR-163, o PPA do governo Lula prevê outras grandes obras na Amazônia, como as usinas hidrelétricas no rio Xingu e no rio Madeira, os gasodutos de Urucu e o término de outras rodovias. Como disseram Ciro e Marina em Sinop, a construção da infra-estrutura na floresta dependerá do sucesso do governo em conduzir a pavimentação da Cuiabá-Santarém. O repórter viajou a convite do ISA

Governador do Mato Grosso atrela sua imagem à realização da obra
"Se essa estrada for construída, vou me sentir realizado", diz o governador do Mato Grosso, Blairo Maggi (PPS). Mentor do projeto e um dos principais interessados, já que sua família é dona de uma das maiores tradings de soja do país, o governador atrelou sua imagem à estrada, para o bem ou para o mal.
Maggi é o personagem principal em matérias da imprensa estrangeira, que criticam a conclusão da BR-163 por contas dos riscos ambientais. "Me expuseram como uma onça pintada para o mundo", diz o governador, referindo-se a matéria publicada recentemente pelo "The New York Times". "As pressões e os interesses são muito grandes", completa, referindo-se ao aumento de competitividade que a BR-163 pode trazer para o setor de soja brasileiro em relação aos competidores americanos.
Em 2000, quando ostentava o título de rei da soja como maior produtor mundial da oleaginosa, Maggi foi o primeiro a ventilar a idéia de uma Sociedade de Propósito Específico (SPE) para construir a rodovia. A Cargill apostou na estrada e construiu um terminal em Santarém, mas a idéia foi morrendo aos poucos.
Em fevereiro desse ano, já governador, Maggi afirmou ao Valor que estava desanimado com a estrada e criticou: "Esse projeto parou. É complicado para as empresas multinacionais ligarem seu nome à construção de uma estrada que passa pela região amazônica". Na época, ele citava a BR-158 e a Ferronorte como as duas grandes apostas do Mato Grosso em logística.
Mas o que mudou nos últimos anos? "Eles (as múltis) mudaram de opinião. Decidiram enfrentar essa situação de frente", afirma Maggi. "Mesmo porque hoje não existem mais dois lados nessa questão. O Meio Ambiente quer apenas condicionar a construção da estrada", acredita. (RL)

Pequeno agricultor e índio
Não só os grandes produtores têm sonhado com a pavimentação da BR-1 63. Um dos fatores que tem fortalecido a determinação do governo em concluir a obra é o apoio de pequenos agricultores e até de tribos indígenas, que vivem na área de influência da rodovia. A expectativa é de que o eixo Cuiabá-Santarém sirva de integração a assentamentos isolados e também para que estes possam escoar a sua produção agrícola.
A cidade mato-grossense de Guarantã, por exemplo, localizada a poucos quilômetros da divisa com o Pará, perdeu nos últimos anos 20% de sua população rural. Segundo seu prefeito, Lutero Siqueira, não há condições de escoar a produção da pequena agricultura na época de chuva. "Não tem sentido ter uma estrada que na hora em que se precisa ela não funciona", diz.
A mesma análise é feita por Nilfo Wandscheer presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Lucas do Rio Verde, município do Médio Norte, grande produtor de soja. Para ele, há uma possibilidade de abastecer as cidades do norte do Mato Grosso com hortifrutigranjeiros. Hoje 85% destes produtos são trazidos da região sul. Por isso, além da recuperação e pavimentação da BR-163, os pequenos também reivindicam o asfaltamento de estradas vicinais que levem à principal. "A estrada tem que gerar inclusão e não exclusão". Uma das propostas levantadas pelo documento final do seminário "BR 163 Sustentável" é criar programas que organizem o comércio entre os municípios de produtos apóiam rodovia da agricultura familiar.
As principais lideranças indígenas do Xingu, que participaram do encontro promovido por organizações não-governamentais (ONGs) na última semana em Sinop, mostram-se dispostas a aceitar a pavimentação da BR 163. Alguns chegam a falar até na possibilidade de incrementar a venda da produção de cantanha-do-pará com a conclusão da estrada. Mas a maioria se concentra nas condições para a liberação da obra.
A principal reivindicação é á proteção das cabeceiras do rio Xingu. Todos os rios que formam o Xingu, que cruza as terras indígenas e deságua no Amazonas, estão fora de áreas de proteção. Teme-se que a BR-163 acentue o avanço da soja para estas áreas e cause contaminação das cabeceiras. Outra preocupação é a ação de madeireiras. Umas das propostas que está sendo apresentada ao governo, explica o representante das lideranças indígenas, Marawe Kaiabi, é a criação de zonas de 10 km de floresta entre os limites do parque e as terras particulares. (GF)

Valor Econômico, 26/11/2003, Especial, p. A1, A12

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