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Gestão hídrica é gestão de saúde

Valor Econômico, Opinião, p. A13.
Autor: BOCCALETTI, GiuIio
19 de Jan de 2018

Gestão hídrica é gestão de saúde

Por GiuIio Boccaletti

Com a aceleração da mudança climática e a exacerbação de outras crises geopolíticas e de desenvolvimento causadas por seus efeitos, o papel da proteção ambiental na preservação e no aprimoramento do bem-estar humano se tornou incisivamente evidente. Esse reconhecimento está no âmago do conceito de "saúde planetária", que se concentra na saúde da civilização humana e nas condições dos sistemas naturais dos quais ela depende.
A lógica do conceito é simples: se tentamos proporcionar uma saúde melhor a uma população crescente, sem levar em consideração a saúde e a segurança dos nossos recursos naturais, não apenas enfrentaremos dificuldades para dar novos passos como também reverteremos o progresso já alcançado. Onde as coisas se complicam é na aplicação do conceito, principalmente ao abordar a ligação entre abastecimento de água, saúde e integridade do ecossistema.
Desde pelo menos 1854, quando John Snow descobriu que a cólera era propagada por meio dos estoques de água contaminada concentrados no centro de Londres, as pessoas entenderam que água poluída faz mal à nossa saúde. A degradação dos ecossistemas de água doce muitas vezes dissemina doenças, da mesma forma que a proteção ou o fortalecimento desses ecossistemas melhora os resultados em termos de saúde.
Mas, embora esteja atualmente bem compreendido que o progresso em uma área melhora os resultados da outra, essa dinâmica cobenéfica é, muitas vezes, insuficiente para estimular o investimento em ambas as áreas.
Por exemplo, investir para proteger uma bacia hidrográfica pode também proteger a biodiversidade e melhorar a qualidade da água dos rios associados, beneficiando, assim, a saúde humana. Mas, se a meta for explicitamente melhorar a saúde humana, pode ser melhor, em termos de relação custo-benefício, investir simplesmente em uma central de tratamento de água.
Uma dinâmica mais convincente é a complementaridade: quando o investimento em uma área aumenta os retornos sobre o investimento em outras áreas. Nesse cenário, os investimentos na proteção de uma bacia hidrográfica visariam não apenas produzir retornos diretamente como também aumentar os retornos de investimentos simultâneos em saúde humana. A complementaridade produz uma dinâmica de reforço mútuo que melhora os resultados de forma generalizada.
Um setor hídrico que funciona bem já tenta contrabalançar as intervenções complementares. De fato, esse sistema constitui um triunfo multidisciplinar da engenhosidade e da cooperação humana - ao envolver engenharia, hidrologia, governança e planejamento urbano - com impactos complementares de longo alcance tanto sobre a saúde humana quanto sobre o desenvolvimento econômico.
Em 1933, por meio da Lei do Departamento do Vale do Tennessee, os Estados Unidos fundaram um órgão cuja finalidade era construir barragens hidrelétricas no rio Tennessee. Esse esforço beneficiou a indústria, a agricultura, o controle de enchentes e a conservação de toda a bacia hidrográfica do Vale do Tennessee, até então uma das regiões mais carentes do país.
Desde essa época, os governos do mundo inteiro reconheceram o potencial da infraestrutura hídrica de complementar outras políticas econômicas e sociais, inclusive as destinadas a melhorar os resultados de saúde. Não é coincidência que uma das maiores carteiras de empréstimos do Banco Mundial - de US$ 35 bilhões em investimentos - englobe projetos hídricos.
Recente análise sugere que, nas áreas rurais, um aumento de 30% da cobertura arbórea rio acima gera uma redução de 4% na probabilidade de incidência de diarreia em crianças - resultado comparável a investir em uma central sanitária aprimorada. Mas, se isso for verdade, ainda nos falta definir até que ponto o reflorestamento se torna um investimento melhor do que melhorar as condições sanitárias, para não falar dos aumentos dos retornos de outras intervenções na área de saúde na maior quantidade possível.
Outro estudo detectou que estimados 42% do ônus mundial imposto pela malária, que inclui meio milhão de óbitos anuais, poderiam ser eliminados por meio de políticas concentradas em questões como uso da terra, desmatamento, gestão de recursos hídricos e localização dos assentamentos humanos. Mas o estudo não abrangeu os benefícios potenciais de empregar mosquiteiros tratados com inseticida como instrumento para o combate à malária.
No mundo inteiro, cerca de 40% das bacias hídricas que abastecem cidades exibem níveis de degradação de altos a moderados. Os sedimentos da agricultura e de outras origens aumentam o custo do tratamento da água, enquanto a perda de vegetação natural e a degradação do solo podem alterar os padrões do fluxo da água. Tudo isso pode afetar desfavoravelmente o abastecimento, aumentando, assim, a necessidade de armazenar água em recipientes - como barris, tanques e caixas de concreto - que são criadouros de larvas de mosquitos. Podemos demonstrar que a restauração ecológica da bacia hidrográfica pode ter um efeito maior do que o simples uso de inseticidas ou mosquiteiros para respaldar os esforços destinados a reduzir a malária (e a dengue) nas cidades?
Em todos esses casos, encontrar a melhor alternativa exige conhecer não apenas a contribuição relativa das diferentes intervenções como também entender sua complementaridade. Em um mundo de recursos limitados, os formuladores de políticas públicas têm de priorizar seus investimentos, inclusive pela discriminação entre os necessários e os desejáveis. Para isso, é essencial encontrar maneiras de identificar e de maximizar a complementaridade.
Cerca de 2,1 bilhões de pessoas no mundo inteiro não têm acesso a água segura, prontamente disponível, em casa, e mais que o dobro desse número - um contingente esmagador de 4,5 bilhões de pessoas - não tem acesso a condições sanitárias geridas com segurança, o que solapa gravemente os resultados em termos de saúde e fomenta a poluição dos rios. Num momento em que uma parcela crescente da população mundial - incluindo muitas dessas mesmas pessoas - sente diretamente os efeitos da degradação ambiental e da mudança climática, não há nada mais importante do que encontrar soluções que simultaneamente façam avançar a proteção ambiental, o abastecimento de água e a saúde. Profissionais mundiais de saúde e de preservação têm de cooperar mais estreitamente para encontrar essas soluções - e de convencer os formuladores de políticas públicas a implementá-las. (Tradução de Rachel Warszawski)

Giulio Boccaletti é diretor de estratégia e diretor-executivo mundial de gestão hídrica da organização internacional sem fins lucrativos The Nature Conservançy. Copyright: Project Syndicate, 2018.
www.proiect-svndicate.org

Valor Econômico, 19/01/2018, Opinião, p.A13.

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