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Freira visitou assassinos um dia antes de ser morta

OESP, Nacional, p.A6
15 de Fev de 2005

Freira visitou assassinos um dia antes de ser morta

ALTAMIRA - Num gesto de ousadia, a irmã Dorothy Stang visitou seus algozes na véspera de ser assassinada. Informada de que sua morte estava encomendada, ela foi à cabana onde estavam escondidos os dois pistoleiros, na sexta-feira. Com sorrisos e palavras amenas, tentou demovê-los da empreitada. Pediu para rezar um salmo, abençoou-os e passou a mão na cabeça dos dois. Atônitos com a visita inesperada, os pistoleiros não tiveram nenhum gesto agressivo, agradeceram a visita e asseguraram à freira que não a matariam. Ainda desconfiados, eles perguntaram sobre o local da reunião que a irmã faria na manhã de sábado com assentados de um grupo de desenvolvimento sustentável.
Às 8 horas de sábado, os mesmos homens aproximaram-se da irmã e a assassinaram na presença de duas testemunhas. A Justiça decretou a prisão dos dois suspeitos, um de nome Eduardo e outro apelidado de "Fogoió", e também de um fazendeiro da região que seria o mandante. Os três estão foragidos e são procurados pelas Polícias Federal, Estadual e Militar, que montaram barreiras em vários pontos do Estado.

A visita da irmã Dorothy aos pistoleiros é confirmada pelas duas testemunhas do assassinato e por uma pessoa que presenciou o encontro da freira com os assassinos. As três testemunhas estão sob proteção da Polícia Federal.

A pequena Anapu, de aproximadamente 13 mil habitantes, parou para receber ontem o corpo de sua missionária mais estimada, que há cerca de 20 anos atuava junto a comunidades carentes no sul do Pará. O corpo foi autopsiado em Belém e velado durante o dia na cidade de Altamira, a 130 quilômetros de Anapu. O sepultamento deveria ocorrer ontem à tarde, mas foi adiado para hoje às 9 horas, em Anapu, onde o corpo continuará sendo velado durante toda a noite. No trajeto de 3 quilômetros entre o aeroporto e a igreja matriz, o caixão foi seguido por uma multidão de fiéis.

OMISSÃO

Preocupado com as repercussões nacionais e internacionais do assassinato da irmã Dorothy, o governo colocou a Polícia Federal nas investigações e mandou dois ministros (Nilmário Miranda, de Direitos Humanos, e Marina Silva, do Meio Ambiente) acompanharem as investigações. O procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, que também foi à região para agilizar as providências do poder público, afirmou que pedirá a federalização do inquérito.

Fonteles contou ter indícios de omissão da segurança pública do Estado do Pará, o que provocou a morte da religiosa. "Vim coletar dados, ouvir as lideranças locais e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e também colher provas documentais de que há inércia no sistema de segurança pública do Estado", disse. Segundo o procurador, essas informações servirão de base para alterar a competência sobre as investigações do caso da Justiça estadual para a federal, com base na emenda 45 da reforma do Judiciário. A ação será ajuizada no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

PIROTECNIA

Para o presidente regional da OAB, Ophir Cavalcante Júnior, tanto o governo estadual como o federal têm responsabilidade sobre a violência nessa região do Pará. O governo federal, segundo ele, "faz muito marketing e pirotecnia e não realiza a reforma agrária" e o governo estadual pela total ausência na região.

Segundo Ophir, a ameaça à vida da freira era fato conhecido. Ela própria teria denunciado as ameaças reiteradas vezes a autoridades de segurança pública locais e também a Nilmário, com quem se reuniu no dia 10, no lançamento, em Belém, do Programa Nacional de Proteção a Defensores de Direitos Humanos.

Governo age rápido e federaliza a busca sem cumprir a regra

INVESTIGAÇ ÃO: Ao determinar que a Polícia Federal abrisse o inquérito para apurar o assassinato da freira Dorothy Stang, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, federalizou, na prática, as investigações do crime, sem esperar que a Procuradoria-Geral fizesse o pedido ao STJ. Empenhado em evitar repercussões negativas, o governo mandou mais um avião da PF para auxiliar a polícia do Pará na busca dos três suspeitos do crime. A policia local cedeu carros para que 20 agentes e delegados possam trabalhar na região. Ontem os investigadores civis descobriram algumas caixas de documentos em Anapu que podem ajudar a desvendar o caso. A documentação chega hoje a Brasília onde será periciada pela PF.

Polícia diz que segunda morte foi retaliação, mas ONGs não acreditam

BELÉM - A Polícia Civil do Pará continua trabalhando com a hipótese de que a morte do colono Adalberto Xavier Leal, o Cabeludo, ocorrida menos de 15 horas depois do assassinato da missionária Dorothy Stang, tenha sido uma vingança. A vítima trabalhava para um fazendeiro que havia invadido uma área do Plano de Desenvolvimento Sustentado (PDS) de Dorothy.
Segundo algumas entidades de direitos humanos e movimentos sociais, a postura da polícia paraense seria a de tentar estabelecer a vinculação entre as duas mortes para justificar sua própria incompetência - por não ter garantido a segurança física da freira, apesar de ela ter feito às autoridades estaduais oito denúncias de que estava ameaçada de morte. Esses pedidos, segundo eles, não foram levados em conta - e o procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, já dizia ontem estar convencido de que houve, de fato, negligência das autoridades paraenses no episódio. (Ao mesmo tempo, a ministra Marina Silva havia declarado, em entrevista no sábado, que a freira havia recusado entrar para o Programa de Proteção a Testemunhas, alegando que a proteção deveria existir para todos, não apenas para ela.)

"O colono foi assassinado como se fosse uma represália", reafirmou o delegado Marcelo Ferreira, que investiga o caso. Ele explicou que com seus policiais de Anapu foi para a área com a finalidade de resgatar o corpo de irmã Dorothy quando foram avisados de que um homem havia sido assassinado. O corpo de Xavier Leal estava a menos de 500 metros do local onde estava o cadáver da freira.

O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Anapu, Francisco Souza, denunciou ao Estado que ele e outras pessoas ligadas à irmã Dorothy Stang estão também marcadas para morrer. "Depois da morte dela, vários pistoleiros aqui da cidade andam dizendo que, além da freira, devemos ser mortos eu, o meu irmão, Gabriel, e o Geraldo".

O assassinato de sindicalistas e de ativistas de direitos humanos que atuam no município, segundo Souza, na concepção dos fazendeiros e madeireiros restabeleceria a "paz" em Anapu. "Eu não sei a que tipo de paz eles se referem", resumiu o sindicalista.

Embaixador dos EUA se diz 'triste e horrorizado'

WASHINGTON - O embaixador dos Estados Unidos no Brasil, John Danilovich, afirmou ontem ter ficado "triste e horrorizado" com "o brutal e absurdo assassinato" da irmã Dorothy Stang. Manifestando publicamente o sentimento que transmitiu no domingo em conversas com parentes da religiosa, Danilovich disse que Dorothy foi "uma pessoa corajosa, que amava o povo do Brasil e dedicou sua vida a servir aos menos afortunados".
Ele informou que a embaixada dos EUA acompanha as investigações de perto e disse estar "encorajado pela rápida reação do governo brasileiro e da Polícia Federal". "Estamos confiantes de que haverá uma investigação plena e completa desse assassinato e que os responsáveis irão à Justiça."

No domingo, Danilovich disse ao Estado que a embaixada "está pronta a cooperar com o governo nas investigações". Ele instruiu a embaixada a organizar uma cerimônia em memória da freira. Nos EUA haverá pelo menos duas homenagens - no Trinity College, em Washington, administrado pelas Irmãs de Notre Dame de Namur, ordem à qual Dorothy pertencia, e em Ohio, onde nasceu.

Ela tornou-se freira em 1951. Trabalhou 12 anos como professora antes de iniciar sua missão no Brasil, em Coroatá (MA). Segundo a irmã Joan Krimm, ex-colega de missão, em 74 Dorothy acompanhou os milhares de colonos pobres que trocaram o Maranhão pelo sul do Pará na época da construção da Rodovia Transamazônica. Viveu 4 anos em Abel Figueiredo, mudou-se para Arraial Jacundo e estava em Anapu desde 82. No verão passado, esteve pela última vez em Ohio, após participar da comemoração dos 200 anos de sua ordem, em Namur, Bélgica.

Num relato que enviou à sua ordem em Ohio, em dezembro passado, ela informou que o programa no qual estava trabalhando tinha o apoio do governo federal, mas sofria a oposição da "máfia da madeira" - alusão a 19 companhias madeireiras que operavam ilegalmente na área do projeto.

"Dorothy era uma pessoa de uma maravilhosa simplicidade e estava sempre feliz, independentemente das dificuldades que enfrentasse", contou Elizabeth Bowei, a superiora da ordem de Notre Dame de Namur em Ohio. "Ela era totalmente devotada à justiça social e ao povo." Segundo Elizabeth, Dorothy "tinha um conhecimento claro e profundo das injustiças com que lidava em seu trabalho e era uma pessoa completamente pacífica, gentil, calma, que não ameaçava ninguém".

Crime acordou governo para a questão, diz ativista

EXPECTATIVA: A presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB no Pará, Mary Cohen, disse que o assassinato da irmã Dorothy Stang deve abrir os olhos das autoridades para a situação precária dos povos da floresta e os crimes bárbaros no sul do Pará, quase sempre sem punição. "Não vamos deixar morrer a chama acesa pela irmã Dorothy", afirmou em Altamira, por telefone. "Aqui o clima é muito tenso e vemos com bons olhos a federalização dos crimes contra os direitos humanos." A advogada, que viajou cerca de 720 quilômetros para assistir à missa de corpo presente da amiga, responsabilizou "a cobiça de gente do Sul e do Sudeste" pela situação. "São eles que promovem a violência", afirmou. "Mas talvez agora tenhamos um serviço efetivo do poder público."

OESP, 15/02/05, Nacional, p.A6

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