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Fortuna que ameaça os kalungas

Correio Braziliense
30 de Jan de 2006

Terra dos quilombolas em Goiás é alvo de disputa por fazendeiros que buscam explorar a riqueza do subsolo. Sob a área de 253 mil hectares, há ouro e outros minerais. DNPM autorizou pesquisas

31 de janeiro de 2006

Uma área de 253 mil hectares, destinada pelo governo federal para os descendentes de escravos em Cavalcante (GO), a 300km de Brasília, está sob ameaça. Uma disputa em torno do subsolo da região, rica em minerais nobres, como o ouro, coloca sob risco a área destinada aos kalungas. Remanescentes de quilombos, a comunidade enfrenta a cobiça do homem branco, sempre em busca da riqueza. Duas leis estaduais e um decreto presidencial destinam a área a 4 mil descendentes de escravos. No entanto, há pelo menos dois proprietários de fazendas que conseguiram autorização do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) para realizar pesquisas na região.

Dezenas de fazendeiros têm que pagar impostos por terras que, de acordo com os cartórios, ainda têm proprietários particulares.

Proprietária de uma fazenda de 1 mil hectares dentro da área tombada,
Auriberta Alves do Nascimento Campos Silva vive o drama de quem pode se
afundar em dívidas ou se tornar milionária do dia para noite. Com base em
decisões da Justiça que lhe asseguravam a posse das terras, de 1997 até 2004
ela investiu, em parceria com mineradoras, geólogos e engenheiros, cerca de
R$ 1milhão em pesquisas. Acumulou uma dívida de R$ 250 mil, mas descobriu
uma fortuna sob o solo: os técnicos estimam haver mais de uma tonelada de
ouro, quantidade avaliada em R$ 45 milhões.

Este enredo confuso começa se desenrolar em 1991. Recém-separada na época,
Auriberta abandonou tudo em São Paulo para morar em Brasília com o novo
marido, uma agente da Polícia Federal, falecido em 1995.

Por orientação dele, com dinheiro do divórcio, adquiriu uma fazenda de mil
hectares no interior de Goiás, localizada a 130km do município de
Cavalcanti. Meses depois da compra da propriedade, descobriu que uma lei
estadual tinha transformado toda a área em sítio histórico. Entrou na
Justiça pedindo uma indenização. Duas decisões do Tribunal de Justiça de
Goiás ignoraram a existência das leis goianas e disseram que as terras eram
dela.

"Quando fui lá pela primeira vez, já tinha comprado a propriedade. Achei que
o meu marido era louco. Eu reclamava da falta de estrada para chegar no
lugar e ele um dizia que isso não ia ser necessário. Tudo porque um dia nós
íamos chegar lá de helicóptero. Achei tudo muito estranho, só via rochas.
Não dava para plantar nem um pé de alface", lembra.

Quatro meses antes de morrer, o marido disse a ela que suspeitava que as
terras eram, literalmente, uma mina de ouro. Da revelação à certeza de que
debaixo dos pés se escondia um tesouro foram seis anos de pesquisas, todas
realizadas com autorização do DNPM, autarquia vinculada ao Ministério de
Minas e Energia. Durante esse período diz ter resistido a ofertas de
mineradoras estrangeiras para vender as terras e lidou com técnicos que ela
descreve como inescrupulosos. "Eles faziam os trabalhos e se recusavam a se
dizer o que tinham encontrado", explica.

A certeza de que as terras pertencem aos kalungas surgiu neste ano, quando
foi cobrar do governo de Goiás a licença ambiental necessária para construir
o garimpo. "Primeiro os desembargadores disseram que a terra era minha, que
se não gostasse dela o problema era meu e que não iria ser indenizada.
Depois o DNPM me liberou para fazer pesquisas e só agora aparece um órgão
dizendo que não posso levar o trabalho adiante", reclama, indignada, a
funcionária pública aposentada.

A concessão de alvará de pesquisa nas terras dos kalungas não se limita a
Auriberta. Há pelo menos mais um caso de um proprietário de terras na região
que recebeu autorização para contratar técnicos e equipamentos com o
objetivo de detectar a presença de minério em sua fazenda. "Pode haver uma
falta de diálogo entre os órgãos? Pode. Mas estamos trabalhando para
melhorar a nossa estrutura e corrigir os erros do passado", explica Miguel
Antônio Nery, diretor-geral do DNPM, que não quis comentar o caso específico
de Auriberta.

Nery disse não ter condições de avaliar se a concessão de alvarás para
pesquisa em áreas de quilombolas, em terras tombadas, constitui uma
ilegalidade. Mas promete investigar. E recomenda aos proprietários que se
sentirem lesados a recorrer à Justiça pedindo indenização. Auriberta
concorda com Nery e pretende entrar na Justiça.

Para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o pedido
de indenização é desnecessário. "Não há nenhuma ilegalidade de nenhum dos
lados", explica o coordenador nacional de quilombos do Incra, Claúdio Braga.

Ele diz ser normal que órgãos federais demorem a tomar conhecimento de que
uma área foi transformada em sítio histórico. E afirma que leva mesmo algum
tempo para os proprietários serem notificados e ressarcidos. "Enquanto isso,
nos cartórios da região, eles vão continuar sendo considerados donos e a
pagar impostos", explica. Braga relata que existem pelo menos 30 casos de
fazendeiros nessa mesma situação.

Quanto às pesquisas que identificaram a existência de minério em algumas
fazendas, Braga afirma que, no caso de uma desaproporiação, os donos das
terras não serão indenizados pelo que há no subsolo. "Eles perdem as terras,
recebem as indenizações, mas continuam sendo donos das lavras", explica,
referindo-se ao minério. "Se conseguirem depois licença para extrair o ouro,
terão que pagar aos Kalungas e aos Estado brasileiro", completa.

1t de ouro está sob as terras dos kalungas em Cavalcante (GO)

O povo Kalunga é remanescente de tribos da região do Congo, Sudão, Angola e
outras localidades próximas à costa oeste da África. Os kalungas eram
escravos que trabalhavam nas minas e garimpos de Minas Gerais, no século 18.
A comunidade surgiu de uma revolta dos escravos que trabalham na mineração.
Para fugir da escravidão, escaparam para as serras de Goiás e construíram
suas casas nos vãos dos rios, dificultando o acesso daqueles que os
perseguiam. Por quase 300 anos, a existência da comunidade era ignorada e os
kalungas vieram em isolamento geográfico e cultural. Atualmente, estima-se
que 4 mil pessoas vivam na área localizada perto de Cavalcante (GO).

A data em que o grupo foi descoberto é incerta. Estima-se que o primeiro
contato teria ocorrido ainda na década de 1980. Quinze anos depois, o
governo de Goiás demarcou cerca de 200 mil hectares para a comunidade. Em
2000, o governo federal emitiu Título de Reconhecimento de Domínio sobre a
área de 253,2 mil hectares.

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