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A força do NÓS

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Autor: Patty Durães
14 de Fev de 2019

A força do NÓS
14/02/2019

Patty Durães

Relato de uma vivência no Quilombo de Ivaporunduva

Meu nome é Patrícia e sou uma mulher negra de 43 anos, mãe de duas lindas meninas, Aniké de 18 e Ivy de 8 anos. A convite do Instituto Brasil a Gosto, tive o privilégio de representar a empresa de gastronomia na qual sou gestora numa expedição de reconhecimento da soberania alimentar quilombola no Quilombo de Ivaporunduva.

Tudo o que eu sabia sobre comunidades quilombolas era, até então, advindo de leituras em revistas, jornais, sites e documentários. Em 43 anos eu ainda não tinha tido a oportunidade de vivenciar tão de perto a rotina de um quilombo e posso assegurar, mudou completamente o meu olhar.

Ivaporunduva é uma comunidade que fica no Vale do Ribeira, próxima à cidade de Eldorado. Uma região muito famosa por conta do turismo de aventura em suas cavernas e matas. O que poucos sabem, ou se interessam, é que a área também é formada por muitos quilombos. Nessa comunidade vivem hoje mais de 100 famílias que sobrevivem basicamente da produção agrícola familiar na qual o carro-chefe é a distribuição de banana orgânica para prefeituras do estado de São Paulo e o turismo. Os maiores responsáveis por alimentar o turismo da região são os alunos de escolas particulares.

Essa imersão de dois dias foi para abrirmos os nossos horizontes para a produção agrícola, as técnicas de manejo, e principalmente para apoiarmos a salvaguarda da tradicional comida quilombola. A base da alimentação é o arroz pilado, o feijão, a mandioca (e suas farinhas) e as variadas qualidades de banana. O consumo interno é 80% produzido localmente e 100% orgânico. Compram de fora pouquíssimos itens e insumos que produzem em pequena escala, como a carne de vaca, por exemplo.

Todas as casas quilombolas preservam a tradição de ter em seus quintais ervas e condimentos necessários para o dia-a-dia, além de pequenas criações de porcos e galinhas. Têm também o privilégio de serem abraçados pelo rio Ribeira de Iguape, e também o sustento da pesca para o consumo interno.

O que entristece um pouco é perceber que parte fundamental da tradição se perdeu... com a ausência de benzedeiras e parteiras. Ainda numa comunidade onde o posto de saúde não tem mais médico. Eles eram atendidos pelo programa Mais Médicos, com profissionais cubanos, e agora, infelizmente estão desassistidos. Não se cultua mais os Orixás do panteão iorubano, nem se cantam mais as cantigas e rezas. A igreja católica é a base religiosa ainda que sem a presença de líderes religiosos fixos.

Mas os saberes agrícolas se mantiveram. O respeito ao rico e fértil solo, a abundância da água, a sabedoria dos ciclos lunares e a sua real importância no tempo do plantio e da colheita.

É lindo ver a força do NÓS, lá não tem o eu isolado. Nada ali é para o benefício individual e o coletivo se sobressai. Todo mundo se ajuda, todo mundo se complementa e se fortalece, seja na administração da vida, da economia, dos afazeres de manutenção do turismo escolar, nas viagens de representação do seu povo e nas reuniões de troca de saberes entre os líderes quilombolas da região. Uma força que emociona. Se uma pessoa se ausenta, a roda continua a girar. Ela não pára porque não existe uma dependência, e sim, muita autonomia produtiva.

Ainda há muito a se aproveitar do que é produzido. Os Chefs e cozinheiros da expedição tiveram a oportunidade de bater longos papos com as cozinheiras para ensiná-las um pouco mais sobre o que fazer com a banana, a farinha, o palmito juçara, o maná cubiu, a taioba .... e foi incrível ver a alegria e a surpresa em seus olhares. E se sentiram extremamente honradas ao verem homens cozinhando. O matriarcado impera nas cozinhas quilombolas, mas elas também estão nas roças, nas lideranças, nas escolas e onde mais for necessário estar. Viva a força do feminino!

Acredito que tenha deixado muito de mim por ali, mostrando para aquelas mulheres que na cidade também tem mulheres negras travando suas batalhas internas para se manterem fortes, criarem seus filhos, garantirem seus direitos, sua integridade física, emocional e principalmente a sua voz.

Saí desse lugar mágico, como se saísse de 1800 para 2000, num estado de contemplação etéreo, ainda sob os efeitos no corpo daquela comida, daquela água, daquele ar. Ainda com o olhar marejado de tanto verde, de tanta vida, de tantos sorrisos. E os efeitos na alma.

O povo de Ivaporunduva tem o sorriso no olhar e seus corpos vivem ainda a luta, as mortes e toda violência e sofrimento da escravidão. Mas em sua superfície o que impera é a amorosidade, o afeto e a gentileza. Talvez a história desse povo tenha tido um caminhar diferente quando os senhores daquelas terras saíram dali fugidos, abandonando seus escravos que se organizaram e fizeram daquele lugar o seu paraíso e o seu refúgio.

Ainda existe o medo constante de perder os direitos à terra e à produção agrícola, mas desse medo, surge a força para defender seus direitos. A fala de seus líderes é amorosa e muito inspiradora. Seus netos saíram para estudar, são muito capacitados e para lá voltaram para cuidar do que é realmente importante: manter a vida da comunidade. Tem gente com mestrado internacional, alguns engenheiros agrônomos, pedagogas... que voltam às origens para o orgulho de gente como o Setembrino, a Sirley, a Meire, o Tio Lé e o Seu Ditão, as grandes vozes de Ivaporunduva.

Já em São Paulo, reflito sobre minhas atitudes há dias: o que eu posso fazer para contribuir com essa cultura? Qual é a minha responsabilidade perante tudo o que vivi e aprendi? Estou no caminho certo? Algumas respostas eu tenho, outras ainda estou construindo.

Estou certa de que louvo e valorizo meus ancestrais, de que faço as escolhas certas quando o assunto é alimentação. Meu mantra há anos é o "descasque mais e desembale menos"; com a certeza de que estou no caminho certo quando diminuo o consumo de proteína animal e que esse caminho me faz pensar não só no meu bem-estar físico mas também, na escassez dos recursos hídricos, no menor desmatamento das matas e no fortalecimento do produtor rural... ou mesmo quando olho para o prato dos que vivem ao meu redor, e que são diretamente influenciados pelo meu discurso, e vejo ali boas escolhas.

Mas ainda é pouco, e eu quero mais.

Quero mais porque até o que está morto dentro de uma comunidade quilombola, está muito vivo. O que morreu vira adubo, o que morreu vira história, vira força.

Quero mais porque na cidade me sinto menos livre do que eles na roça.

Quero mais porque posso mais!

https://medium.com/@MidiaNINJA/a-for%C3%A7a-do-n%C3%B3s-cb631eaeb90d?fb…

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