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Fonte de 55% das ONGs: Dinheiro Público

OESP, Dossie Estado, p. H1-H8
29 de Ago de 2004

Fonte de 55% das ONGs: Dinheiro Público

Elas floresceram no ambiente da democratização do País. Tiveram papel decisivo na adoção de políticas públicas importantes, em áreas como o meio ambiente, educação e saúde. Disseminam o conceito de responsabilidade social das empresas e estimulam o trabalho voluntário. No seu ímpeto expansionista, no entanto, as organizações não-governamentais, fundações e entidades beneficentes têm cruzado a fronteira da defesa de direitos e da filantropia, para competir, em condições desiguais, com a iniciativa privada, e avançar sobre o terreno movediço dos contratos sem licitação, das regalias sem explicação.

Terceiro Setor assume as tarefas do Estado
Livres das amarras da Lei de Licitações, entidades ganham espaço crescente

Lourival Sant'Anna

Bons tempos aqueles em que reportagem sobre desvio de dinheiro público se fazia com político ladrão, funcionário corrupto e empresário desonesto. Uma vez flagrados, eles protestavam inocência, num gesto quase protocolar, e saíam atrás de um bom advogado. Claro que ainda há muito disso. Mas uma nova modalidade de negócios com o Estado cresce num ritmo assombroso, embaralhando a ética do público e do privado. Trata-se do terceiro setor, que não é empresa nem governo, e vem desenhando uma área cinzenta de intersecção com o Estado.
No rastro da diminuição do Estado, do aperto na competitividade entre as empresas, e do florescimento da chamada sociedade civil no Brasil pós-ditadura, governantes nos três níveis e "donos" de ONGs e fundações bem situadas exploram uma gama infindável de áreas nas quais serviços podem ser contratados sem licitação, justificados pelo "notório saber" e embalados num espírito de "parceria" e "convênio", e não mais de relação comercial.
Recursos -De acordo com o Instituto Licitus - ONG dedicada a monitorar as contratações públicas -, a União, Estados e municípios adquiriram bens e serviços no valor de R$ 120 bilhões em 2003. A fatia do governo federal equivale a R$ 14,2 bilhões, dos quais R$ 6,9 bilhões, ou 48,8%, contratados sem licitação. E em obediência à lei, o que é uma característica dessas parcerias. Já o Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi) registra em 2003 transferência de R$ 1,386 bilhão do Tesouro federal para instituições privadas sem fins lucrativos. Até 27 de julho, outros R$ 486 milhões já haviam sido repassados (ver gráfico).
Pesquisa inédita realizada pelo Centro de Estudos do Terceiro Setor da Fundação Getúlio Vargas, por meio de questionário respondido por mais de 3 mil ONGs de setembro do ano passado até agora, revela que 55% delas se mantêm com recursos públicos. É a soma de 30% que vivem de recursos próprios, públicos e privados; 11% que recebem dinheiro público e privado; 10% com recursos próprios e públicos; e 4%, exclusivamente públicos (gráfico).
A sinergia crescente entre as ONGs e o governo levou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso - recém-fundador de uma ONG - a cunhar o termo "organizações neogovernamentais". E aflige até mesmo uma parcela do setor.
"Não sou contra parceria entre Estado e ONG, mas a ONG deve atuar no âmbito da sociedade civil", diz Jorge Saavedra Durão, diretor-geral da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong). "Não acho que ONGs tenham vocação para gestão. Podem até realizar projetos em pequena escala, para efeito demonstrativo. Mas não entrar num processo de terceirização do Estado, sobretudo para contornar exigências legais. Pode ser um amplo desvirtuamento das ONGs."
Braço do Estado - "O problema é quando se junta tudo e fica difícil ver quem faz serviço público e quem não faz", diz Ana Toni, diretora-executiva da Fundação Ford no Brasil, que administra uma receita anual de US$ 10 milhões para doações a entidades beneficentes brasileiras. "Onde é a linha divisória entre o público ONG e o público governamental? As ONGs viram um braço do Estado."
Cadastro feito pela Abong com 248 filiadas em 2001 mostra que, nesse grupo de elite - as associadas à Abong são mais bem-estruturadas que a média -, o financiamento público é menos importante do que o proveniente das agências internacionais, responsáveis por 50,61% do orçamento total dessas ONGs. O governo federal entra com 7,50%, os Estados com 5,93% e as prefeituras, com 5,03%. Recursos de empresas respondem por 4,19%; venda de produtos e serviços, por 3,83%; agências multilaterais e bilaterais, por 2,40%; contribuições de associados vêm na lanterninha, com 1,77%.
As agências internacionais, por sua vez, gerem fundos públicos de governos dos países ricos. E isso também preocupa. "O Brasil está ganhando importância nas disputas internacionais", observa Durão. "Na medida em que os conflitos vão emergindo, é importante que as ONGs tenham menos recursos do exterior."
O geógrafo Aziz Ab'Sáber, um dos mais conceituados do País, considera "absurdas" as parcerias lançadas pelo Ministério do Meio Ambiente para gestão de áreas de preservação ambiental. "Querem alugar florestas nacionais para ONGs estrangeiras, por 30, 60 anos", diz Ab'Sáber, do Instituto de Estudos Avançados da USP. "Vai virar fazenda de quem assumir no começo, e o dia em que o País não concordar, o caso irá para o Tribunal Internacional. É o começo da internacionalização do entorno das florestas nacionais. Daqui a 60 anos, vamos entrar para ver o que nos restou."
As facetas são múltiplas. "É muito nebuloso o terceiro setor", atesta a professora Maria Carmelita Yazbek, da pós-graduação em serviço social da PUCSP. "É difícil separar o joio do trigo." Carmelita foi vicepresidente do Conselho Nacional de Assistência Social entre 1993 e 94, período em que iniciou uma "limpeza" no setor, e viu coisas do arco da velha. Associações de criadores de cães pastores, sociedades de tênis, sem falar em escolas, universidades e hospitais invejavelmente rentáveis, foram registrados como entidades beneficentes de assistência social, cujo único benefício se refere ao delas próprias: as isenções tributárias. A professora lembra que "há ONGs impecáveis". O problema é que "qualquer um cria uma ONG".
Influência - "Nossa relação entre o público e o privado nunca foi planejada", analisa Marcos Kisil, do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social. "No governo
anterior, a mulher do presidente criou o Comunidade Solidária, uma ONG com todos os ministros de Estado", critica. "No atual, o presidente criou o Fome Zero para pôr dinheiro público. Não conseguiu gastar nem a verba do Orçamento e pede dinheiro privado." Para Kisil, nem uma nem outra iniciativa teve origem na sociedade civil. "Canaliza-se dinheiro público para quem tem influência política."

A candura dos ideais, a reputação ilibada de muitos dos envolvidos, a imprecisão das fronteiras entre público, privado e estatal, a falta de regulação e fiscalização inibem questionamentos.
As dificuldades já começam nas definições. Freqüentemente, o terceiro setor se define pelo que não é: organizações não-governamentais, público não-estatal, sem fins lucrativos, e por aí vai. Não há um censo do setor.
No cadastro da Receita Federal, o item que o captura de forma mais precisa é o das "Outras Atividades Associativas Não-Relacionadas Anteriormente", sob o código 9199500 do índice de atividades do IBGE. Em 1991, havia 220 mil estabelecimentos sob essa rubrica. Hoje, são 453.278.
Aí entra de tudo, de associação de filatelistas ao Greenpeace - uma das dez organizações estrangeiras cadastradas como tais na Receita. ONG mesmo, aí compreendidas as sociedades civis e as fundações, ninguém sabe ao certo quantas são.
Mas a sua força é visível. Levantamento publicado em 1999 pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser), em parceria com a Universidade Johns Hopkins, revelou que as despesas operacionais do conjunto das organizações sem fins lucrativos no Brasil somavam cerca de R$ 10,9 bilhões em 1995, o que equivalia a 1,5% do PIB.
Havia 1,12 milhão de empregos remunerados no setor, ou 2,2% dos postos de trabalho não-agrícolas. De lá para cá, o número de entidades pode ter duplicado. O terceiro setor tem absorvido muitos trabalhadores dispensados dos setores público e privado. "Quando você é demitido, o que vai fazer? Ou monta uma carrocinha de cachorro- quente ou funda uma ONG", brinca o cientista político Marco Aurélio Nogueira, autor do livro Um Estado para a Sociedade Civil.
Proezas -O terceiro setor em geral e as ONGs em particular contêm um imenso poder de mobilização das energias da sociedade. Há histórias fantásticas, de ONGs grandes e pequenas, famosas e desconhecidas, novas e antigas, que têm realizado proezas notáveis. Algumas estão contadas neste caderno.
"Pilantragem há em todas as áreas da sociedade. Entre as ONGs, representa menos de 10%",estima a cientista política Simone Coelho, autora de Terceiro Setor: Um Estudo Comparado Brasil-EUA, e que trabalha com a capacitação de ONGs para avaliação de resultados.
É uma estatística difícil. Seja como for, há uma transferência crescente de dinheiro público para esse setor, sem despertar muita atenção do contribuinte. É isso que este primeiro Dossiê Estado pretende fazer. (Colaborou Bruno Paes Manso)

Fugindo de concursos e licitações
Usando brechas legais, ou criando novas leis, os governos estão transferindo funções típicas do funcionalismo público para consultores ligados a ONGs, que cobram caro pelos seus serviços

Bruno Paes Manso
e Eduardo Nunomura

Assim como aconteceu com os bancários, metalúrgicos, cobradores de ônibus e estivadores, chegou a vez de funcionários públicos verem seus postos de trabalho minguarem. Tarefas tão variadas quanto administrar hospitais, conferir processos de presidiários, criar tecnologias para o transporte coletivo, tornar a cobrança de impostos mais rápida ou pensar o currículo escolar estão sendo repassadas para consultores ligados a ONGs. Para tornar a máquina mais eficiente, governantes promovem um acelerado processo de terceirização da administração pública.
Só em São Paulo, o Estado e a Prefeitura gastam quase R$ 1 bilhão por ano para contratar esses profissionais. Em todo País, tornou-se uma prática disseminada pelos governantes. E fazem isso por meio de brechas legais ou criando novas leis que permitem fugir dos demorados concursos públicos e licitações e viabilizam as parcerias. Ganham a agilidade e o conhecimento de profissionais da iniciativa privada e ficam livres dos altos custos previdenciários dos barnabés. Mas, ao mesmo tempo, legitimam meios que tornam a administração publica vulnerável às ações personalistas de políticos e empresários.
A Fundação Atech Tecnologias Críticas é uma empresa que presta serviços recorrentes a diversas esferas governamentais. A empresa, de direito privado e sem fins lucrativos, possui mais de 400 funcionários, que trabalham para solucionar problemas públicos, como monitorar vôos para a Aeronáutica ou criar softwares para a polícia mapear os crimes.
Funcionam, assim, como uma espécie de burocracia privada. Do faturamento de R$ 60 milhões, 65% vêm de contratos com governo. Na maioria das vezes, a empresa é escolhida pelo critério do notório saber, que dispensa licitação. E o notório saber se aplica a áreas tão distintas quanto planejamento urbano, saúde e educação.
O diretor-presidente da Atech, Tarcísio Takashi Muta, afirma que o papel da empresa poderia ser resumido em duas palavras: soluções e gestão. Segundo ele, governantes com um problema nas mãos os procuram sem saber o que desejam. Os consultores da Atech discutem e elaboram a solução com secretários ou ministros. Foi o que ocorreu num convênio com a área de saúde da Prefeitura.
Em 2002, Gonzalo Vecina assumiu a secretaria para tentar, a toque de caixa, diminuir o impacto do aumento da procura aos hospitais da cidade. Para melhorar o atendimento precário dessas unidades, a Atech e a Fundação de Apoio à Tecnologia foram chamadas.
A idéia era informatizar e integrar a rede, que funcionava à base dos bloquinhos de papel. Preço das consultorias: R$ 31 milhões. A complexidade do projeto - abstrato e com soluções a construir - era um empecilho para a licitação que, caso fosse feita, demoraria pelo menos um ano para se completar e o projeto seria inviabilizado.
Pressa - O professor de direito administrativo Floriano de Azevedo Marques Neto, da Universidade de São Paulo, lembra que nem sempre a pressa é uma virtude dos governantes. "Essa postura de querer resolver tudo em quatro anos cheira a bonapartismo eleitoral", pondera. "As medidas devem ser mais bem discutidas e por isso existem planos plurianuais e leis de diretrizes orçamentárias."
Os consultores são contratados por intermédio de fundações, institutos de pesquisa e ONGs. Concorrem com vantagem sobre outras empresas. O motivo: teoricamente, são os únicos a deter uma técnica, o notório saber, ou têm "inquestionável reputação ético-profissional" e atuam sem fins lucrativos. É o que diz a lei.
Mas a brecha legal vem criando uma grita de especialistas que vêem na prática um canal aberto para irregularidades e favorecimentos. "Temos 9 mil empresas que poderiam realizar uma série de serviços contratados sob a alegação de demandar notório saber", diz João Del Nero, presidente do Sindicato Nacional das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consultiva. Com os atuais convênios, nada impede que eles privilegiem os amigos ou correligionários. E o pior: é muito difícil fiscalizar uma entidade do gênero. O alvo das críticas não se limita aos meios de contratação. Os fins buscados são igualmente polêmicos. A descrição sobre os trabalhos prestados é vaga e não há como atestar se os valores cobrados estão dentro do que seria razoável (Ver tabela ao lado).É como se o uso de termos como "cidadania", "inclusão", "exclusão" e "participação popular" fossem suficientes para justificar os convênios.
Brechas - A Lei de Licitações foi feita por engenheiros e para engenheiros, sobretudo para regulamentar contratos de obras físicas como pontes e avenidas. Não foi pensada para serviços de informação, tecnologia ou conhecimento. Boa parte dos convênios - e, com eles, os abusos - está nessa área.
O controverso projeto do Fura-Fila tem participação de consultores. Eles desenvolvem um condutor automático do ônibus, que trafegará - ou trafegaria, dependendo da disposição do próximo prefeito de levá-lo adiante - sobre um trilho virtual formado por imãs na pista e em pontes elevadas. O gerente de engenharia da SPTrans, Roberto Brederode, admite que os R$ 19,2milhões gastos no convênio com a Fundação Valeparaibana de Ensino poderiam ser economizados se o veículo fosse controlado da forma convencional. "Mas nossa preocupação é com a segurança, porque não dá para deixar esse carro só nas mãos dos motoristas."
Há ainda efeitos indesejáveis na contratação de consultores. Um deles ocorre na maior universidade pública brasileira, ninho de 33 fundações. Com a reputação da USP, vêm conquistando importantes projetos governamentais. Para o sindicato dos professores, é um desvirtuamento da finalidade do ensino superior público e cria distorções de remuneração - relatório da Adusp indica que professores chegam a ganhar mais de R$ 30 mil com as consultorias.
O diretor-presidente da Fundação Instituto de Administração, Claudio Felisoni de Ângelo, garante que as fundações são uma das melhores formas de manter estudantes e professores dentro da universidade. "As críticas vêm da incompetência de gente que sentou na pedra e fica esperando o Estado pagar a conta." Se um dia proibirem essa atividade, Felisoni parece não estar muito preocupado: "Pego minhas coisas e vou embora", resume.

No Rio, a farra dos servidores sem concurso
Entidades do terceiro setor foram contratadas diretamente para realizar serviços regulares

Luciana Nunes Leal

Rio - A contratação de ONGs por instituições públicas que querem escapar de licitações e concursos virou alvo de investigação no Rio. Um relatório da Delegacia Regional do Trabalho, feito em junho, revela que 3.324 servidores do Departamento de Trânsito do Estado (Detran) não tinham contrato formal de trabalho. Estavam lá por meio de entidades do terceiro setor sem direito a carteira assinada, 13. salário, férias e FGTS. Por causa de irregularidades, o Detran foi multado em R$ 1,5milhão.
Hoje, o número de informais é mais que o triplo do número de concursados do Detran. A diretora do órgão Suzy Avelar informou que correções já estão sendo adotadas e nenhum contrato com institutos, cooperativas e fundações foi renovado.
Essas medidas são insuficientes, segundo o procurador do Trabalho Cássio Casagrande. Há duas semanas, ele entrou com uma ação civil pública contra o Detran e cinco instituições, entre fundações e cooperativas. Só nos três primeiros meses deste ano, elas receberam R$ 23,2milhões.
Uma delas é o Instituto Nacional de Desenvolvimento de Estudos e Projetos (Indep). A ONG é investigada pelo Ministério Público Federal desde 2001, quando se descobriu que contratava atendentes para trabalhar nos postos do Detran. Função: emitir carteiras de identidade. O problema, diz o procurador, é que não se trata de uma atividade temporária do Detran - o que permitiria a contratação extraordinária.
A ascensão do Indep na máquina do Detran do Rio ocorreu nos nove meses do governo da petista Benedita da Silva. Em 2001, os convênios chegaram a R$ 800 mil. No ano seguinte, quando Benedita assumiu, somaram R$ 4,4 milhões. E foi a partir de maio que o advogado Pedro Osório Vargas assumiu a presidência do órgão.
Antes de assumir, Vargas já havia atuado como representante do Indep na Câmara Municipal de Angra dos Reis. Na sessão de 23 de outubro de 2001, disse que estava presente para esclarecer dúvidas sobre um contrato de R$ 4 milhões com a prefeitura da cidade.Em vídeo gravado, ele se referia ao Indep como "nosso instituto".
Favorecimento - Procurado pelo Estado, Vargas negou qualquer ligação formal com o instituto ou favorecimento. E afirmou que à frente do Detran tentou abrir concurso para acabar com a farra dos 3 mil funcionários sem vínculos empregatícios. Só não conseguiu porque estava em período eleitoral.
O advogado do Indep, José Carlos Silva, defende os contratos com o poder público. "Sabe por que existem as ONGs?", pergunta. "Porque o Estado é lento nas suas respostas, não atende as demandas do cidadão que paga imposto. Os dirigentes se valem delas para suprir a demanda da população."

Fundação ganhou 32 contratos sem licitação
A Geap, plano de saúde dos servidores, recebeu mais de R$ 700 milhões no ano passado

Marcelo Onaga
Enviado especial

Brasília - A lista das fundações que mais recebem recursos da União sem passar por qualquer tipo de concorrência ou licitação é encabeçada pela Fundação de Seguridade Social (Geap). No ano passado foram repassados à Geap R$ 708 milhões, dos quais dois terços (R$ 472 milhões) saíram de contribuições de funcionários públicos. Os R$ 236 milhões restantes são dinheiro do governo.
A Geap é uma fundação que atua na área de saúde e previdência. É ela a responsável pelos planos de saúde de 760 mil servidores e dependentes de 32 órgãos do governo.
Mesmo sem ser uma empresa estatal, a Geap se pretende uma "operadora de plano de saúde de autogestão multipatrocinada, constituída pela União e por representantes de funcionários públicos", segundo a diretora-executiva da fundação, Regina Parizi. Esse status garante à Geap o direito de firmar contratos com o governo sem enfrentar licitações.
Como não é uma empresa do governo, já que não foi criada por uma lei, a Geap não poderia ser o que diz que é. "A situação da Geap é complicada. Ela não é nem estatal nem privada", explica o promotor público que atua no Tribunal de Contas da União, Lucas Furtado. "A rigor, levando-se em conta a lei ao pé da letra, a Geap teria de ser extinta." Como seria uma atitude drástica, o TCU deixou a Geap atender os 32 órgãos públicos até o término dos contratos atuais, que vencem a partir de 2008. Depois disso, só poderá renovar, sem licitação, com os Ministérios da Saúde e da Previdência, que participaram de sua criação.
Transparência - Por não participar de concorrências, a Geap é alvo de críticas. "Se eles são tão competentes e cobram menos, deveriam participar de licitações. Eles ganhariam todas e ainda dariam mais transparência ao processo", diz o deputado distrital Augusto Carvalho (PPS-DF).
Parizi, candidata derrotada do PT à Assembléia Legislativa paulista na última eleição, explica que, por ser uma "operadora de plano de saúde de autogestão", a Geap está proibida de participar de concorrência. "Se pudéssemos participar, ganharíamos todas, mesmo."
Ex-vice-presidente do Conselho Federal de Medicina e presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, Regina Parizi se irrita quando é questionada sobre a nomeação de membros do PT para cargos na fundação. "Tenho asco quando tentam me desqualificar dizendo que sou filiada ao PT. Meu currículo não se resume a isso."
Experiência administrativa à frente de uma operadora de saúde ela não teve. "Mas fui diretora do Hospital do Servidor Público de São Paulo, que é a mesma coisa que um plano de saúde do servidor", esclarece.

Uma cidade terceirizada: São Paulo
A Prefeitura de São Paulo gastou mais de R$ 168 milhões em contratos, muitos polêmicos, com fundações e institutos para tocar projetos estruturais da administração

Valeria Gonçalvez/AE

Gestão, softwares, terceirização, cases, tecnologia, termos comuns ao ambiente empresarial viraram correntes na administração municipal. Numa atitude inovadora e ainda pouco debatida, a Prefeitura de São Paulo apostou alto nos conhecimentos dos consultores atuando no terceiro setor para tirar do papel projetos estruturais da atual gestão. Em apenas um ano, foram R$ 168 milhões gastos em contratos terceirizados para fundações, institutos e organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips).
Entre os projetos realizados com a participação decisiva dos consultores estão os Centros Educacionais Unificados (CEUs) e a descentralização administrativa que acabou com as regionais e dividiu a cidade em 31 subprefeituras. A Fundação Instituto de Administração recebeu R$ 6,4 milhões para prestar serviços técnicos de assessoria para gerenciamento e coordenação dos CEUs. Já a Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos (Finatec) prestou consultoria para um novo modelo de gestão a ser realizado pelas subprefeituras a um custo de R$ 12,2milhões.
Na área educacional, muitos projetos foram realizados com a ajuda de consultores. O Instituto Paulo Freire recebeu R$ 4,8 milhões para ajudar nos planos de metas da Secretaria Municipal da Educação e para implementar o projeto pedagógico dos CEUs.
Mas um deles chama a atenção pelo ineditismo. O Instituto Paulo Freire recebeu quase R$ 3 milhões para desenvolver um "plano de ação de formação do projeto Orçamento Participativo Criança".O objetivo do programa é fazer de alunos de 7 a 14 anos membros atuantes na discussão do Orçamento da cidade.
Especializada em aprimorar a formação de engenheiros, a Fundação Carlos Vanzolini cuida de um projeto de R$ 14 milhões para transformar 2.872 pajens em educadores. Os consultores da fundação não dão aulas.Professores foram contratados para isso. As salas usadas são as de CEUs.Os diplomas ficam a cargo da Secretaria de Educação.
"No gerenciamento de projetos somos imbatíveis", explica Guilherme Ary Plonski, do conselho curador da Vanzolini. "As fundações fazem trabalhos singulares e não repetitivos." E com isso vêem suas receitas crescerem. Em 2003, a entidade acumulou R$ 34,6 milhões - 40% de convênios com o poder público.Do total, R$ 558 mil foram repassados à reitoria da USP e R$ 1milhão, à Escola Politécnica.
Sem licitação - A contratação de consultores do terceiro setor torna os governantes semelhantes aos empresários do setor privado em outro aspecto: contratam quem eles querem, o que leva muitas vezes a escolhas polêmicas.
O Instituto Florestan Fernandes (IFF), por exemplo, é uma entidade privada que tenta se fortalecer prestando serviço aos governos. Foi criado pelo diretório municipal do PT em 1999 para formular o programa de governo da candidata Marta Suplicy, que foi presidente do instituto. Acaba, portanto, sempre sendo vinculada a uma espécie de pecado original, o de ter nascido do PT e possuir ainda em sua assembléia geral uma série de nomes de senadores, deputados e vereadores filiados ao partido.
Quando os consultores da entidade aparecem prestando serviços à prefeitura, como resultado, as acusações e desconfiança são inevitáveis. Logo no início da administração Marta, o IFF passou a realizar uma série de serviços para a Prefeitura. Participou dos contratos por meio de "convênios de cooperação técnica e científica" firmado com fundações. A Fundação Getúlio Vargas (FGV) e a Fundação de Apoio e Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (Fundep) participaram dessa triangulação. Assim, as fundações eram contratadas sem licitação e dividiam os serviços com o IFF por conta do convênio de parceria.
Segundo os consultores do instituto, a entidade fica com cerca de 10% do valor dos contratos. Pelo convênio com a Fundep, o IFF participou de estudos para a modernização do atendimento da Secretaria de Finanças. Para fazer um projeto de implantação da nova praça de atendimento da secretaria - voltada a melhorar os serviços ao contribuinte paulistano -, a parceria foi com a FGV. Para a Secretaria de Assistência Social, a parceria entre ambos serviu para elaborar procedimentos de gestão de convênios. OIFF recebeu R$ 10,2 milhões pelos projetos.
Os integrantes do instituto se mostram indignados de serem acusados de se beneficiar politicamente pelos contatos com o PT. A ideologia em comum não seria a razão da escolha, mas a capacidade de seus técnicos. Alegando sigilo contratual, não explicam exatamente que técnicas novas de gestão introduziram na prefeitura. Os contratos estão atualmente sendo analisados pela Justiça. (B.P.M. e E.N.)

Não há verba? Solução: parceria
Com isso, Estado se livra do engessamento, diz secretário da Casa Civil, Arnaldo Madeira

No final dos anos 90, o governador de São Paulo, Mário Covas (PSDB) tinha um problema. Preparava-se para entregar 16 hospitais, mas não queria contratar novos funcionários públicos. Com quase dois terços do Orçamento comprometido com pessoal e gastos previdenciários que hoje ultrapassam os R$ 70 bilhões, a solução era recorrer aos serviços da iniciativa privada.
O governo obteve então a aprovação de legislação para regulamentar a parceira do governo com organizações sociais de saúde, entidades do terceiro setor que passaram a administrar os hospitais. Ao longo deste ano, essas fundações receberão do governo R$ 667 milhões para gerenciar 16 hospitais e atender perto de 1,5 milhão de pessoas. Segundo a Secretaria de Saúde, esses hospitais chegam a atender 35% mais do que os administrados por funcionários públicos.
A parceria com o terceiro setor, segundo o secretário estadual da Casa Civil, Arnaldo Madeira, deve-se a uma nova maneira de se encarar a máquina estatal. "Deve haver um núcleo forte, nas secretarias, capaz de formular políticas, monitorando a implementação de projetos, avaliando e articulando os parceiros", explica. "Mas as parcerias são fundamentais, porque estamos engessados pelos custos previdenciários e pelos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal."
As organizações sociais ligadas à saúde representam a maior aposta do governo nessas parcerias e já está sendo ampliada para a área da cultura - para administrar a Orquestra Sinfônica e a Pinacoteca.
A Fundação do ABC, por exemplo, administra o Hospital Mário Covas, em Santo André. Recebe R$ 3,9 milhões mensais para realizar em média 14 mil consultas e 1.200 internações. "Somos econômicos e ágeis, porque podemos comprar mais barato no mercado pagando à vista, além de contratar e demitir sem grandes empecilhos", diz o presidente da fundação, Homero Nepomuceno Duarte, que diz ser ligado ao PT.
Desconfianças -Mas os critérios usados para a escolha das fundações despertam desconfianças da oposição. O Serviço Social da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo (Seconci) administra dois hospitais em bairros da periferia. O Seconci prestou 40 anos de serviços de saúde para funcionários do sindicato. Foi indicado para administrar o Hospital Geral de Itapecerica da Serra quando o engenheiro Alberto Kanamura, que havia trabalhado com o grupo, era secretário- adjunto da Secretaria Estadual da Saúde. "Qual o critério para a escolha?", pergunta o deputado estadual Cândido Vacarezza (PT). "Por que um grupo ligado a engenheiros recebeu essa tarefa?"

Mas não foi o único problema constatado. O Tribunal de Contas do Estado (TCE) levantou dúvidas nos gastos da administração do hospital. "Ganhamos prêmios por serviços inovadores ligados ao parto e recebemos outro hospital para administrar por conta dos bons resultados que conseguimos", defende Emílio Paulo Siniscalchi, presidente do Seconci. "Conversamos diariamente com o TCE e estamos aprendendo juntos a fiscalizar", diz Silvia Oliveira, da Secretaria da Saúde.
Entre os anos 2001 e 2004, o governo do Estado destinou R$ 505 milhões às organizações não-governamentais, o que representa uma média de R$ 126 milhões por ano. Somados aos recursos das organizações sociais, o total se aproxima de R$ 800 milhões anuais. Fundações estaduais, como a Padre Anchieta, que administra a TV Cultura e a Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), entraram na lista. Assim como instituições ligadas à iniciativa privada, que são também beneficiadas pelas leis que permitem contratos sem licitação.
O Instituto Uniemp, criado por reitores de universidades estaduais para prestar serviços à iniciativa privada, foi um dos que mais verbas receberam do governo estadual e da prefeitura. Foram R$ 23 milhões em quatro anos. Nos primeiros dois anos depois de fundada, a entidade era apoiada por empresas privadas para pesquisar novas tecnologias. Os recursos cessaram e os governos tornaram-se importantes clientes. Entre os projetos, criaram um software de administração dos processos de presos nas cadeias do Estado. (B.P.M.)

Na selva dos ongueiros
Abarrotado de ativistas, o MMA promove custosa ação entre amigos

Marcelo Onaga
Enviado especial

Brasília - O movimento ambientalista e as organizações não-governamentais têm uma história de atuação conjunta tão intensa e harmoniosa que muitas vezes eles se confundem em uma coisa só.Não é de se estranhar, portanto, que vários integrantes dessas organizações façam parte do quadro dos dois principais órgãos da área: o Ministério do Meio Ambiente e o Ibama (ver organograma ao lado). A própria ministra Marina Silva tem origem ongueira - designação dada aos ativistas de ONGs.
A ministra não atendeu a reportagem, mas designou o secretário-executivo do ministério, Carlos Langone, para explicar a situação. "Fomos atrás dos melhores quadros e vários deles estavam em ONGs", argumenta Langone - que não é ongueiro. "Sozinho, o ministério não teria como trabalhar",completa a antropóloga Mary Allegretti, secretária de Coordenação da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente (MMA), de novembro de 1999 até abril do ano passado. "A presença das ONGs é fundamental, uma vez que elas têm gente capacitada para tocar trabalhos específicos da área."
A contratação de ONGs por qualquer órgão do governo dispensa licitação. A lei permite, portanto, que um ongueiro que está no governo contrate a ONG da qual fazia parte sem nenhum processo formal de concorrência. A fiscalização dos gastos,da qualidade do serviço e do cumprimento do contrato também podem ficar a cargo do ongueiro governamental.
ONGs como Instituto Socioambiental (ISA), World Wildlife Fund (WWF), Greenpeace, Grupo de Trabalho da Amazônia, Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) e outras que têm ou tiveram em seus quadros pessoas que hoje estão no MMA ou no Ibama recebem ou receberam dinheiro do governo para tocar projetos do governo.

Choupana de luxo - Entre essas relações curiosas está uma parceria do MMA e do Centro Nacional de Populações Tradicionais do Ibama (CNPT) com o Conselho Nacional dos Seringueiros, ONG que atua em reservas extrativistas da Amazônia e que tinha como presidente Atanagildo Matos, que depois assumiu a presidência do CNPT. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social reservou R$ 31,09 milhões para um programa de planos de manejo e construção de "centros de difusão de conhecimento" em 30 reservas extrativistas do CNS.
Pelo projeto inicial enviado ao Ibama e ao BNDES, o custo de construção de cada centro - uma choupana de 90 a 200 metros quadrados feita com madeira da região e teto de palha na maioria dos casos - variava de R$ 305,5 mil a R$ 908mil. O metro quadrado desses centros poderia atingir R$ 10 mil, mais que o dobro de apartamentos de alto luxo na Avenida Vieira Souto, no Rio de Janeiro.
O alto custo atraiu a atenção do então diretor de Gestão Estratégica do Ibama, Leonardo Tinoco. Ele descobriu que o Ibama, em toda sua história, nunca teve um valor de referência para planos de manejo. "Resolvi fazer um levantamento."
Como auxílio de dois funcionários, Sinfrônio Silva e Antônio Mileski, Tinoco desenvolveu um plano de manejo para a reserva de Cazumbá/Iracema, no Acre, por R$ 111 mil. No projeto do CNS, o valor de um plano para a mesma reserva era de R$ 819,5mil. "Levei o assunto ao conhecimento do presidente do Ibama, Marcus Barros, que foi comigo ao gabinete da ministra Marina Silva."
Segundo Tinoco, Marina teria mandado apurar o assunto, mas nada foi feito."O que aconteceu foi que eu e os dois funcionários que me ajudaram passamos a ser perseguidos." No mesmo mês, Barros mandou Tinoco demitir Silva e Mileski, alegando que eles estavam causando problemas.
De outubro de 2003 a abril deste ano, Tinoco conta que ficou "com os pés na frigideira e o resto do corpo na geladeira". Não tinha mais acesso a nada. Em abril, foi exonerado sob alegação de ter contratado a empresa de um parente para prestar consultoria ao Ibama.
Mary Allegretti diz que Tinoco não tem qualificação para questionar o projeto: "Quem é Tinoco? Ele não conhece o assunto, nunca foi à Amazônia e não sabe do que está falando." Mas a ex-secretária, que diz ter colaborado na elaboração do projeto do CNS, não explica o elevado custo das choupanas. "Aquilo era só um plano inicial, o preço poderia ser corrigido. Nem plantas do projeto havia."
A alegação de Mary é a mesma do assessor técnico do CNS, Carlos Chagas Teles. "Aquilo era um estudo inicial. Pode ter sido feito por uma pessoa sem nenhum conhecimento de construção civil que 'chutou' um valor exagerado. Mas isso já foi corrigido", explica. De acordo com Teles, há centros que passaram a ter 500 metros quadrados. Com isso, mesmo reduzindo-se o valor do metro quadrado, o valor a ser liberado pelo BNDES manteve-se nos mesmos R$ 31,09 milhões. O projeto continua sendo tocado e, apesar das denúncias, nunca foi investigado pelo Ibama.
O presidente do Ibama nega que tenha havido perseguição por causa das denúncias feitas por Tinoco. "Ele está sendo processado porque contratou sem licitação empresa de familiares e superfaturou o contrato para desviar recursos do Ibama. Ele está usando uma cortina de fumaça", interpreta Barros.
A empresa é a Estratégia Consultores, representante no Brasil da Fundação Altadir de Caracas, que pertence a Aristogiton Luis Ludovice Moura e a Silvia Guz,respectivamente ex concunhado e irmã da ex-mulher de Tinoco.A empresa,com sede em Natal, foi contratada por R$ 1.995.932,00 para fazer uma reforma organizacional do Ibama, que incluiu treinamento para modernizar sua gestão.
Versões - Tinoco diz que indicou a empresa, mas se negou a contratá-la por seu vínculo com o dono. "Disse isso ao Marcus (Barros) e ele me respondeu que, se cunhado não é parente, ex-concunhado, muito menos." O presidente do Ibama nega a versão. "Ele nunca me disse isso e contratou diretamente."
A empresa não foi contratada por Tinoco, mas pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) - em convênio de cooperação com o Ibama-, após rigorosa análise técnica, segundo Fernando Barbieri, assessor jurídico do Pnud. "Depois da solicitação do Ibama (feita por Tinoco, o responsável pelo projeto), vários documentos foram levantados, fizemos vários questionamentos à empresa e todos foram respondidos satisfatoriamente", diz o representante do Pnud. "O custo por hora era de cerca de R$ 100, até abaixo do praticado no mercado."
Entre a documentação levantada pelo Pnud estão contratos com outros órgãos governamentais, inclusive com o Incra, que na época era presidido pelo atual procurador-geral do Ibama, Sebastião Azevedo.
O presidente do Ibama nega que haja influência política ou de amizade nas parcerias com ONGs. Ele afirma ter atualmente apenas dois convênios envolvendo repasse de recursos do Ibama. Barros não diz, contudo, que diversas ONGs são escolhidas pelo órgão para receber recursos externos aplicados em projetos aprovados pelo Ibama.
"Envolvem-se com projetos do Ibama as organizações que possuem tradição na execução de projetos temáticos específicos", resume ele. Fica difícil entender, então, como o CNS foi escolhido para gerir um programa de reservas extrativistas marinhas no Rio de Janeiro, Bahia, Santa Catarina e Piauí.

Cupuaçu: uma história de Davi contra Golias
Como uma ONGde um homem só que funciona num quintal derrotou a gigante Asahi Foods

Rio Branco-A Amazonlink.org ocupa um cômodo de 4,5 por 4,5 metros no fundo da casa do ambientalista austríaco Michael Schmidlehnerseu, em Rio Branco.Não recebe dinheiro do governo. As doações são esparsas; sua grande arma, a internet.
Pois foi essa ONG que conseguiu, em março, cassar o registro da marca " Cupuaçu" no Japão. Fruta tradicional da Amazônia, o cupuaçu e seus derivados - sorvetes, geléias, cremes, etc. - não podiam ser comercializados com esse nome no Japão, na União Européia e nos Estados Unidos. Tornaram-se grife legalmente registrada nos escritórios de patentes daqueles mercados pela Asahi Foods, uma multinacional japonesa de alimentos. E, portanto, excluídos do mercado segundo as regras de propriedade industrial da Organização Mundial do Comércio.
"Nós descobrimos a apropriação indébita por acaso,em 2002, quando fazíamos contato com uma organização alemã que procurava no Brasil produtos cujo comércio resultasse em redução da miséria e preservação ambiental, o chamado mercado justo", explica Schmidlehner, radicado no Brasil há dez anos. "O cupuaçu tem todo o perfil do mercado justo. É uma fruta nativa da Amazônia e seu comércio ajuda sua população, mas fomos informados que a Asahi Foods tinha seu monopólio."
Para cancelar o registro da marca no Japão, o ambientalista contou com o apoio de uma rede de ONGs e de US$ 30 mil que, segundo ele, foram entregues ao Greenpeace, especialmente para essa causa, por um doador inglês anônimo.
O site da ONG foi transformado em porta-voz da campanha. Schmidlehner promoveu um abaixo-assinado on line e passou a divulgar o movimento em três línguas - português, alemão e inglês.
Protestos - Em setembro de 2003, um banner de 14 metros de altura como slogan da campanha "O cupuaçu é nosso" foi levado até o encontro de cúpula da Organização Mundial de Comércio em Cancún, no México.
No mês seguinte, ONGs alemãs realizaram manifestação em Munique e protestaram no Escritório de Patentes da Europa contra outra armação da Asahi Foods. A multinacional apresentou pedido de patente sobre um processo de extração do óleo de semente de cupuaçu e de um processo de fabricação de um chocolate também da semente, denominado cupulate.
A tentativa não prosperou porque a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) já desenvolvera processos semelhantes e interveio perante o Escritório Japonês de Patentes (JPO).
Em março, o JPO decidiu cancelar a marca do cupuaçu, mas a empresa ainda detém sua propriedade na União Européia e nos EUA. Segundo Schmidlehner, a embaixada brasileira em Bruxelas está pleiteando o cancelamento na União Européia e um escritório voluntário faz o mesmo nos Estados Unidos.
Mas Schmidlehner quer continuar em campanha. Agora não para cancelar registros, mas para prevenir que surrupiem os segredos das comunidades tradicionais da Amazônia. Sua meta é estabelecer uma parceria com o Ministério do Meio Ambiente para instalar postos avançados na floresta onde profissionais treinados fiscalizem e orientem os moradores sobre a ação de eventuais biopiratas. (J.M.R.)

De volta à borracha
Projeto tocado por ONG misturada com empresa e gente do governo está em crise

João Maurício da Rosa
Enviado Espedial

Boca do Acre - A especialista em compra de produtos florestais Ana Yang pegou um táxi-lotação em Rio Branco (Acre) e foi ver de perto o que está acontecendo em Boca do Acre (Amazonas). Ana faz pós-graduação em economia social e meio ambiente na PUC-SP. Seu foco são negócios de produtos florestais não-madeireiros em comunidades amazônicas. Ela ouviu dizer que o couro vegetal, considerado o grande filão desse segmento, está em crise.
Wilson Manzoni, presidente da Apas, a associação dos seringueiros de Boca do Acre, confirma. Única compradora da produção, a empresa carioca Couro Vegetal da Amazônia S/A suspendeu o negócio em novembro por tempo indeterminado. Os seringueiros que viviam do produto estão atrás de alternativas.
O temor é que deixem a floresta e tomem o rumo de Terto Monteiro dos Santos, 51 anos, que está trabalhando no seringal de cultivo de um fazendeiro, perto da cidade, e melhor remunerado. "Ele me convidou para dividir a sorte com ele", conta Terto, referindo-se à parceria com o fazendeiro para limpar o seringal em troca da produção.
A fixação dos povos e a conseqüente conservação da floresta é o apelo para a venda de produtos florestais, lembra Ana Yang, ex-compradora de produtos florestais para a indústria de cosméticos Natura. Ela está trocando a iniciativa privada por uma ONG, o mais novo nicho de mercado de trabalho para especialistas em marketing. "A primeira lição para este tipo de empreendimento é que ele nunca será sustentável se contar só com um comprador", ensina.
O caso do couro vegetal das comunidades do Sul do Amazonas e do Vale do Juruá, no Acre, é bem ilustrativo. O produto foi desenvolvido por seringueiros na segunda metade do século 19, quando descobriram que tecido de algodão, como os sacos de farinha, quando banhado em látex e defumado, fica impermeável como o couro animal.
Em 1991, o artesão Manzone apresentou o produto à estilista carioca Beatriz Saldanha. Associada ao construtor João Augusto Fortes, Beatriz fundou a empresa Couro Vegetal. Financiada pelo BNDES, a empresa aprimorou a tecnologia para produção do couro e investiu em designers para criação de peças de acessórios. Fortes patenteou o processo de couro vegetal e lançou a grife Tree Tap.
Na Rio-92, o couro vegetal teve divulgação mundial como a oportunidade de redenção econômica dos seringueiros e, conseqüentemente, a salvação da floresta. Com a comercialização do couro, em vez da borracha bruta, os seringueiros passaram a ter ganho seis vezes maior, ou R$ 6,00 por um espelho de couro de 60 por 80 centímetros.
Mas o negócio só deslanchou em 1999, quando a grife francesa Hermès fechou contrato com a empresa carioca no valor de US$ 50 mil. Já na primeira fornada, no entanto, a Hermès descobriu que suas bolsas de US$ 1.500 esfarelavam. O contrato foi honrado, mas a técnica de produção está sendo repensada.
A ONG WWF-Brasil está patrocinando um plano de manejo para obter a certificação do método de produção do couro vegetal no Conselho de Manejo Florestal( FSC, em inglês), ONG baseada em Bonn, especializada nisso. O plano está a cargo da ONG Instituto Nawa para o Desenvolvimento do Extrativismo Sustentável da Amazônia.
Criado pela própria empresa Couro Vegetal e presidido por Beatriz, o Nawa é uma constelação. Segundo sua página na internet, o conselheiro fiscal é o secretário do Planejamento do Acre, Gilberto Carmo Lopes Siqueira. Luis Carlos de Lima Meneses Filho, coordenador da WWF para a Amazônia, é diretor. E no conselho consultivo estão: Fábio Vaz Lima, marido da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva; e Mary Alegretti, secretária de Coordenação da Amazônia do ministério entre 1999 e abril deste ano.
Segundo Mariana Pantoja, diretora do Nawa, a página na internet está desatualizada: os quatro já deixaram o instituto. Beatriz Saldanha se recusou a dar entrevista. Mariana Pantoja disse que acredita,mas não tem certeza, que a certificação possa ampliar as oportunidades de vendas:"É muito difícil o mercado para qualquer produto florestal que não seja madeira." Enquanto isso, os seringueiros do Sul do Amazonas esperam que o governo do Estado cumpra a promessa de subsidiar a produção da borracha em R$ 0,70 por quilo, levando o preço a R$ 2,00. Daí, retomarão a venda de borracha bruta em vez de couro vegetal, como faziam seus avós. (Colaborou Marcelo Onaga)

Aviões zelam pela saúde indígena
ONGs de saúde chegam a usar 60% do faturamento em vôos para resgatar índios

A ONG Urihi recebeu entre os anos 2002 e 2004 R$ 17,9milhões para cuidar de 5.872 índios em um ponto isolado da região norte, em Roraima. O volume total de recursos significa que cada índio contaria com mais de R$ 1,5 mil, cinco vezes mais do que a média de R$ 300 per capita gasta com saúde no Brasil.
Se o total de recursos já não bastasse, foi constatado que o dinheiro era mal usado. Uma auditoria realizada pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) detectou problemas na administração dos recursos pela ONG, que acabou sendo descredenciada.
Nas reservas indígenas, o isolamento geográfico eleva os custos de serviços de saúde. Quando um índio precisa de tratamentos emergenciais em hospitais, muitas vezes, resta apenas uma alternativa: contratar aviões ou helicópteros para levar até o posto mais próximo. Para tratar dos índios, por esse motivo, certas ONGs costumam gastar 60% das verbas que recebem do governo em gasolina e fretes de avião.
Benefícios como esses - dificilmente reservados a outros brasileiros que vivem na zona rural em geral e na Região Norte em particular - foram conquistados nos últimos anos na base da pressão política, de dentro e de fora do País, sobre o governo brasileiro.
Em 1997 e 1998, os defensores da causa indígena alertavam para riscos reais de extinção da cultura caso o governo brasileiro não tomasse atitudes drásticas para diminuir os índices de doenças. Em 1999, o governo incumbiu a Funasa de cuidar da prevenção, assistência e recuperação da saúde indígena, traçando uma série de parceiras com as ONGs, que passariam a ajudar na aplicação das políticas que cobravam. Em vez de contratar novos funcionários, o governo terceirizou os serviços a pessoas envolvidas com a causa.
Em 2003, a parceria já havia rendido 59 convênios, com bons resultados. A mortalidade infantil entre os índios,principal índice a ser revertido, diminuiu quase 50%, passando de 101 mortos por cada mil nascidos vivos para 52 por mil. Como resultado, a população voltou a crescer, chegando nos dias de hoje a uma total de 430 mil índios vivendo em aldeias, contra cerca de 300 mil na década de 90. Nas parcerias, entretanto, foi detectada uma série de problemas, sendo necessárias providências para evitar que os recursos fossem desperdiçados ou desviados.
A ONG Pró-Vida, por exemplo, com sede em Brasília, atuou mais de dois anos no Maranhão, sem prestar contas do repasse de verbas do governo federal. Segundo a regional da Funasa em São Luís, a ONG recebeu cerca de R$ 1,6 milhão entre 2001 e 2003. O coordenador do Conselho de ONGs do Maranhão, Lourenço Borges Milhomem, disse que havia denúncias de compras irregulares de remédios feitas por entidades formadas por índios de aldeias localizadas em Amarante, Montes Altos, Grajaú e Barra do Corda.
Nessa terceira fase de sua relação com a saúde indígena, o governo percebe que não está livre de riscos mesmo quando os serviços são prestados pelos próprios interessados nos benefícios. Para evitar abusos, a Funasa adotou diversas medidas, como aferir resultados, diminuir o prazo do intervalo dos repasses e exigir prestação de contas.
Este ano, a Funasa destinará R$ 205 milhões a saúde indígena, 30% mais que no ano passado. Desse montante, R$ 164 milhões vão para as terceirizadas. "Nosso papel na gestão dos contratos aumentará", diz Alexandre Padilha, diretor do Departamento Indígena da Funasa. (Bruno Paes Manso, Flávia Moura e Zequinha Neto)

As melhores e piores intenções
O terceiro setor é o mundo da criatividade, tanto para boas ações quanto para falcatruas
A verba que se multiplica
Entidades como a Pastoral da Criança fazem questão de mostrar resultados

A Pastoral da Criança atua no Brasil e em outros 14 países da América Latina, África e Ásia, para onde exporta seu conhecimento sobre cuidar de crianças pobres. No Brasil, esparrama-se por 36.422 comunidades de 3.757 municípios. Uma estrutura capaz de acompanhar 83.993 gestantes e 1.815.572 menores de seis anos só em 2003. Números que reforçam o êxito de uma parceria com o governo que já dura 21 anos.
"Não basta ser honesto. Tem que provar que é honesto", diz o gestor Clóvis Boufleur, explicando que a ONG quer reduzir a dependência de verbas governamentais, hoje em torno de 75%.No último exercício financeiro, encerrado em setembro de 2003, a Pastoral teve uma receita de R$ 25,4 milhões. O maior repasse, de R$ 15 milhões, veio do Ministério da Saúde. O resto vem de apoios institucionais e pequenos doadores.
Mas cada centavo depositado na Pastoral vale muito. Para uma criança, a ONG gasta R$ 1,33 por mês. O suficiente para que a rede de 242.552 voluntários ensine aos pais como cuidar da nutrição, reforçar o aleitamento materno, controlar doenças e peso e até aumentar a renda familiar.
No sertão nordestino, há outro exemplo de eficiência e transparência. Cerca de 700 entidades reunidas na Articulação do Semi-Árido (ASA) ajudam famílias a construir cisternas. Ao custo de R$ 1.461,87 cada, as caixas recolhem a água da chuva e garantem abastecimento durante oito meses para beber, cozinhar e cultivar pequenas hortas.
Até agora, foram construídas 42.103 cisternas em 581 cidades do semi-árido. A qualquer momento, é possível saber onde cada cisterna foi feita. Todas têm numeração e o nome da família beneficiada, dados reunidos em computadores. O governo banca a maior parte do projeto. Mas a iniciativa privada também apóia. A Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) financiou 10mil cisternas no ano passado.
Diversificar parcerias também foi a solução encontrada pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, no Rio. Este ano, chegou à marca de 14 projetos, cada um ligado a uma entidade diferente, pública ou privada. A ONG percebeu que muitas políticas públicas tinham dificuldade de atingir a população do Complexo da Maré, área carente do Rio. Logo, a saída seria formular maneiras de o Estado atuar no local.
Com a Petrobrás, mantém um projeto de R$ 1 milhão para reduzir a evasão escolar. Da Secretaria de Saúde do Rio recebe R$ 600 mil por ano, valor convertido em atendimento médico a moradores de 12 a 21 anos. Há ainda oficinas de vídeo, fotografia e produção gráfica e literária criadas com colaboração da Infraero e vários programas em conjunto com universidades. Com o BNDES, construiu o maior banco de dados do País sobre um conjunto de favelas.
Inspiração - Muitas vezes, a inspiração pessoal é vital. Ana Moser, ex-jogadora da seleção brasileira de vôlei, criou em 2001 o Instituto Esporte Educação. Com patrocínio de cerca de R$ 700 mil por ano da Unilever, forma professores de educação física para ensinar vôlei a crianças e adolescentes carentes da favela Heliópolis, em São Paulo, e nas cidades de Indaiatuba, Vinhedo e São Sebastião. Graças a esse trabalho, muitas crianças e jovens estão melhorando o rendimento na escola e mantendo-se longe das drogas.
A Toca das Hortênsias, dedicada a portadores de Alzheimer, também é iniciativa de uma pessoa: Lilian Alicke, que se aposentou em 1993 e resolveu adaptar a casa onde vivera 30 anos, em Cotia, a 20 quilômetros de São Paulo, para cuidar de idosos com essa doença. Lilian investiu parte da herança e logo nos primeiros anos teve de vender carro e dois apartamentos.
A Toca, associação sem fins lucrativos, vive das mensalidades pagas pelos familiares de seus dez hóspedes, e mais a ajuda de um doador anônimo. É gerida com a participação dos familiares, e seus balancetes estão abertos para quem quiser ver. Mas as mensalidades e a doação não cobrem as despesas. A entidade deve R$ 300 mil ao INSS. Só depois de quitá-la poderia requisitar isenção da parcela patronal da contribuição, como entidade de assistência social. Um círculo vicioso.
Situação semelhante vive o Instituto Crianças e o Mar, em Ubatuba, no litoral norte paulista. Por duas vezes teve de fechar as portas e hoje funciona atendendo 98 crianças carentes. A ONG, criada pela atriz e ex-deputada estadual tucana Ruth Escobar, teve o patrocínio da Petrobrás por três anos. Com a mudança de governo, foi cancelado. A atriz se cansou e quer passar o instituto para a frente.

O dinheiro que some
Mais comum do que se imagina, desvios de recursos públicos viram alvo de investigações

O Programa de Combate à Pobreza Rural (PCPR), da Secretaria de Planejamento do Piauí, aplicou mais de R$ 20 milhões neste ano por meio de organizações não-governamentais. A maioria dos seus projetos é administrada informalmente pelos prefeitos que lutam pela liberação dos recursos. Quem apóia o governador Wellington Dias (PT) tem preferência. Eles pegam os cheques destinados às associações e sacam o dinheiro.
Nessa relação entre políticos e dirigentes de ONGs, surgiu uma série de denúncias de escândalos, que pode comprometer a boa intenção do programa - em várias localidades, ele tem gerado emprego e renda e melhorado a qualidade de vida de muitos. Várias entidades e seus representantes respondem por processos na Justiça.
Uma auditoria constatou que ONGs credenciadas estavam irregulares e desviaram dinheiro do programa. Verificou-se o superfaturamento das obras e a não realização de algumas delas."Um poço que deveria ser perfurado para atender a comunidade está instalado dentro de uma propriedade privada", exemplificou o auditor fiscal e conselheiro substituto do Tribunal de Contas do Estado Jaylson Campelo.
Pelo País todo, uma série de entidades do terceiro setor, que deveriam ser transparentes na aplicação dos recursos públicos, está na mira de promotores e tribunais de contas. Acusações de desvios, fraudes e irregularidades partem de todos os lados.
A Fundação Dom Aguirre, mantenedora da Universidade de Sorocaba e do Colégio Dom Aguirre, com um total de 10 mil alunos, está sendo investigada pela promotoria por possível malversação e gestão ruinosa. A entidade é presidida pelo arcebispo metropolitano de Sorocaba, dom José Lambert.
Segundo os promotores Jorge Alberto de Oliveira Marum e Orlando Bastos Filhos, que assinam o pedido de instauração de inquérito civil, aberto em janeiro, há indícios de superfaturamento nas construção do campus universitário na Rodovia Raposo Tavares. As obras, orçadas em R$ 17 milhões, acabaram custando mais de R$ 24 milhões. Parte dos recursos, R$ 11 milhões, foi repassada pelo BNDES. Documentos comprovariam pagamento sem duplicidade e sem lastro em contrato. A fundação teria ainda contratado empresas fantasmas.
O advogado da fundação, Luiz Rosati, alegou que não poderia se manifestar sobre o inquérito em razão do sigilo na apuração da Justiça. O Estado teve acesso à defesa apresentada pela entidade, segundo a qual a contabilidade referente à construção do campus foi fiscalizada pela Receita Federal. A única irregularidade se refere a quatro pagamentos feitos a uma empresa de estruturas, no valor de R$ 1,2 milhão, sem lastro em notas fiscais. A fundação explicou tratar-se de um erro administrativo já sanado.
Em Mato Grosso, os Ministérios Públicos Federal e Estadual investigam as atividades da ONG Sarã, acusada de desviar R$ 268 mil.A denúncia de fraude com recursos do Fundo de Amparo do Trabalhador (FAT) adiou a execução do programa em 2003 no Estado. Milhares de jovens que poderiam fazer cursos de qualificação profissional em 126 municípios foram prejudicados. Os indícios de irregularidades na execução das atividades da ONG levaram a Procuradoria Geral do Estado a pedir na Justiça o ressarcimento do dinheiro público.
Facilidades - Para o procurador Tomás de Aquino Resende, coordenador do Centro de Apoio do Terceiro Setor do MPE, em Cuiabá, desvios dessa natureza têm ocorrido com freqüência porque é "muito fácil" criar no Brasil uma ONG para arregimentar recursos públicos.
Muitos desvios envolvem a exploração dos mais fragilizados. Em Porto Ferreira, no interior paulista, Antônio Marcelino, ex-diretor do asilo Solar Jovens de Ontem, é acusado de apropriação indébita e crime contra a saúde pública. O asilo de idosos recebe verbas públicas, vencimentos de 40 internos e doações privadas.
Em abril, Marcelino foi acusado de se apropriar de doações e de não prestar contas das aposentadorias que recebeu em nome dos idosos. Teria também ficado com alimentos e objetos doados à entidade, enquanto os pacientes eram obrigados a comer produtos com data de validade vencida. "Infelizmente, exemplos como o do Solar são mais comuns do que gostaríamos, mas a principal dificuldade é constituir a prova do mau uso do dinheiro público", admite o promotor de Cidadania do Ministério Público de Porto Ferreira, Cássio Roberto Conserino.

"A fiscalização é inútil, burocrática"
Dona Ruth defende as parcerias entre as ONGs e o Estado, que ela ajudou a fomentar, com a Comunidade Solidária. Mas desde que haja avaliação de resultados

Em matéria de ONGs, ela se vê como "uma guerrilheira do campo". Estudiosa dos movimentos sociais desde os anos 60, a antropóloga Ruth Cardoso foi a principal responsável pela intensa aproximação entre as organizações não-governamentais e o Estado. Como primeira-dama entre 1995 e 2002, Dona Ruth tomou para si a tarefa de estabelecer um canal entre o terceiro setor e governo, por meio do Conselho da Comunidade Solidária.
Hoje instalada num casarão na Avenida Angélica (região central de São Paulo), que pertenceu à extinta Sudene e lhe foi cedido pela Secretaria do Patrimônio da União, Dona Ruth leva adiante os programas de alfabetização, capacitação profissional e extensão universitária para comunidades carentes que criou durante o governo FHC. Nesta entrevista, ela defende as parcerias entre o Estado e o terceiro setor, desde que haja avaliação eficaz de resultados: "A fiscalização existe e é inútil, porque é burocrática."
Estado - Qual deve ser o papel das ONGs?

Ruth Cardoso - Mobilizar as pessoas e trabalhar com elas. O terceiro setor é o campo da diversidade, da liberdade. A idéia de regulamentar, organizar as ONGs é muito difícil. Há ONGs voltadas para defender certas posições. Outras se propõem a certos experimentos, a realizar ações. Do movimento feminista, por exemplo, surgiu o SOS Mulher em São Paulo. Depois, o Estado foi o primeiro a criar a Delegacia da Mulher.

Estado - Um projeto gerido por uma ONG tem um efeito demonstração, que depois o Estado pode colocar em prática?

Ruth - Não é mecânico. Não é que o Estado vai se apropriar daquilo que a ONG fez. A ONG pode experimentar e trazer uma contribuição nova. É uma demonstração de que as idéias que se defendiam podem ter um efeito prático, podem mudar a sociedade.

Estado - E quando isso atinge uma escala muito grande? É crescente a destinação de recursos do Estado para as ONGs...

Ruth - Eu gostaria tanto que isso fosse verdade...

Estado - Na área de saúde indígena, são milhões de reais para alguns milhares de pessoas em uns poucos meses. No meio ambiente, também, há projetos grandes. Isso conserva o espírito original da ONG?

Ruth - Acho que o papel fundamental que elas desempenham é o de serem experimentais, de dar viabilidade a certas idéias e mostrar que elas podem mudar nossa sociedade. Mas não é também para ficar sempre na pequena escala. Vou dar um exemplo próprio: todos os programas da Comunidade Solidária foram criados exatamente para mostrar que se ganha eficiência com a parceria do Estado com a sociedade civil. Todos os nossos programas começaram pequenininhos. O de alfabetização, por exemplo, era uma nova metodologia, uma nova visão sobre o problema. E isso é difícil dentro do Estado, não porque ele seja burro, mas porque o Ministério da Educação tem que equacionar o problema do Oiapoque ao Chuí. Tem que tomar uma medida geral. Tem que fazer apoio a 5mil municípios. A taxa de 12% de analfabetismo no Brasil - agora parece que está um pouquinho mais - é uma média de coisas absolutamente diferentes. Em 1991, a taxa de analfabetismo entre 15 e 19 anos no Rio Grande do Sul era pouco mais de 3% - menos do que a da Espanha, na época. No Nordeste, a média era de 26%, e muitos municípios tinham 60% de analfabetos. Em Pauini (Amazonas), onde começamos o programa, eram 83%. Não é que o MEC não tenha dinheiro. Ele não tem capacidade. Chamar jovens adultos para voltar a estudar é algo que mexe com a auto-estima deles. Não pode ser feito de maneira burocrática, colocando um cartaz. Só gente da comunidade sabe como fazer isso.

Estado - A fiscalização dessas parcerias é suficiente hoje?

Ruth - A fiscalização existe e é inútil, porque é burocrática. Durante o Comunidade Solidária, procuramos discutir muito o marco legal da relação do Estado com a sociedade. É um tema dificílimo, porque tem que mexer com privilégios que já estão concedidos.

Estado -Na área da educação e da saúde, por exemplo?

Ruth - Por exemplo. Fizemos a Lei das Oscips (organizações da sociedade civil de interesse público), que estão se expandindo, e o Termo de Parceria, que até hoje temos dificuldade de implementar porque a burocracia está moldada no formato antigo, que são os convênios. Quando você assina um convênio, compromete-se com uma série de coisas, que são fiscalizadas no final: dar recibo de tudo, etc. Nada contra. Tudo bem cobrar recibo. Mas a finalidade, em geral, não é avaliada. Qualquer trabalho social tem que ter avaliação: com ou sem parceria. O instrumento legal ainda é muito antigo. E é difícil conseguir o Termo de Parceria, que implica avaliar o resultado. Se fiz um acordo com o Estado ou município para cuidar de cem crianças é importante saber se cuidei das cem e se cuidei bem, não se comprei nessa padaria ou naquela.

Estado -E há também a ingerência política, por serem parcerias sem licitação...

Ruth - Se houver avaliação, não há (ingerência). Em geral, a ingerência política é o velho clientelismo. Mas ele está sumindo. Não vamos ficar olhando para ele, em vez de olhar o que tem de novo. O Estado era clientelista, não os agentes da ação social. Clientelistas são os políticos, não as ONGs. (Lourival Sant'Anna)

Obrigatório: Petrobrás Fome Zero
Programa do governo passa a nortear patrocínios da Petrobrás

Em 2003, primeiro ano do petista José Eduardo Dutra no comando da Petrobrás, havia 34 projetos sociais em andamento. No fim do ano, 18 contratos foram renovados e 16, não. Para continuar, os programas tinham que se adequar ao Petrobrás Fome Zero, lançado em setembro de 2003 e que adotou o selo social do governo Lula. São três eixos de atuação: educação e qualificação profissional; geração de emprego e renda; e defesa dos direitos das crianças e adolescentes.
Foram sacrificados projetos como o de atendimento a acidentados nas estradas. Outro programa não renovado foi o Universidade Solidária (Unisol), idealizado por Dona Ruth Cardoso. "O projeto é bom, mas o formato não era de co-gestão. No Unisol, a Petrobrás tinha papel de patrocinador", diz o gerente de Comunicação Nacional da empresa, Luiz Fernando Nery, que desde julho de 2002 cuida dos programas sociais e ambientais da unidade central. A Petrobrás contribuía desde 1995 com R$ 600 mil por ano, usados para o transporte de estudantes e professores.
O Petrobrás Fome Zero vai investir R$ 303 milhões até o fim de 2006 e tem a meta de atingir 4 milhões de pessoas. "Não escolhemos primeiro o parceiro para depois ver o projeto. Escolhemos o parceiro em função do projeto", resume Nery. Serão investidos R$ 45 milhões em programas escolhidos por meio de seleção pública. Os selecionados, entre 5.884 projetos inscritos, serão anunciados em setembro.
Também idealizado por Dona Ruth, o Alfabetização Solidária continua o maior destinatário das verbas do Ministério da Educação para o ensino de jovens e adultos. Mas os recursos do MEC estão sendo deslocados das ONGs para as prefeituras. Em 2003, o MEC destinou R$ 176 milhões à educação de jovens e adultos, dos quais 54% foram para ONGs. Este ano, o montante caiu para R$ 162 milhões e a fatia, para 30%. (L.N.L., E.N. e L.S.)

Destino do benefício, decisão de Estado
Para especialista do Ipea, os governos não podem delegar a terceiros a escolha dos beneficiários

Fernando Dantas

Rio - Para Ricardo Paes de Barros, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e um dos maiores especialistas em pobreza e desigualdade do Brasil, existe uma decisão crucial de política social que o Estado jamais pode delegar: a seleção dos beneficiados. "Quanto mais o governo se preocupar com a escolha dos beneficiários, com a coordenação e com a garantia de qualidade dos serviços sociais, melhor", diz Paes de Barros.
Para o especialista, "compete ao Estado garantir os direitos sociais". Isto não quer dizer, porém, que ele deva sempre produzi-los e distribuí-los. Esta é uma tarefa para a qual podem ser utilizadas também empresas ou ONGs.
Para decidir como repartir as tarefas de política social entre aqueles três atores - setor público, empresas e ONGs -, é preciso levar em consideração algumas questões de fundo, ou "filosóficas", como diz Paes de Barros, e outras operacionais. A escolha dos beneficiários pelo governo, por exemplo, é um ponto "filosófico" - não há como repassar dinheiro público para que particulares o transfiram para quem bem entenderem.
Já a questão de quem produz e quem distribui os bens e serviços da política social é mais operacional. Tema ver com a eficácia, isto é, com a combinação de eficiência e economia que deve nortear qualquer gasto público.
As ONGs podem ser muito úteis em determinadas partes da política social, e menos adequadas para outras. Dificilmente, por exemplo, as ONGs poderão competir com empresas se a tarefa for produzir alimentos para uma cesta básica. Isto ocorre porque as empresas, que são maximizadoras de lucro, não têm como forçar a mão nos preços de uma commodity, que, por outro lado, conseguem produzir mais barato.
A situação muda, nota Paes de Barros, quando o serviço ou produtos a serem ofertados no programa social envolvam "informação assimétrica", isto é, o governo conhece muito menos sobre como são feitos e quanto valem do que o fornecedor. Neste caso, o custo de evitar que o fornecedor exagere no preço pode ser alto demais. "Para certas coisas, é muito difícil fazer a regulamentação e legislação adequadas, porque a empresa que vai executar sabe um monte de coisas que o governo não sabe", observa o especialista.
Aquela situação pode ocorrer, por exemplo, no fornecimento de um'sopão' num bairro popular. Neste caso, o governo pode se sentir mais confortável se estiver lidando com uma ONG sem fins lucrativos, exatamente porque sabe que ela não está ali para maximizar seus ganhos. É claro, porém, que o governo tem de se certificar da boa-fé da ONG.

Licitem-se as ONGs!
Para especialistas, controle externo, contas vinculadas e marco legal reduziriam problemas

Se a orientação é para que tudo seja licitado, licitem-se as ONGs. Quem pensa assim é o controlador-geral do município do Rio, Lino Martins. Cansado de constatar distorções como "ONGs que compram avião e ao mesmo tempo constroem creches comunitárias", Martins luta para disciplinar as parcerias entre terceiro setor e poder público.
Por orientação da Controladoria-Geral, o prefeito Cesar Maia assinou este ano decreto que proíbe cada secretaria municipal de contratar mais de duas entidades por vez. E as escolhas são feitas por seleção pública, em que cada instituição apresenta suas propostas e o município escolhe a melhor na relação custo-benefício.
Trata-se de uma das primeiras iniciativas do poder público em criar uma norma nesse segmento. No restante do País, a regra é outra e impera a falta de transparência, regulamentação e fiscalização. Como não há um marco legal para o terceiro setor, cabe aos ministérios públicos e tribunais de contas a tarefa de fiscalizar as parcerias.
Um dos pontos que dificultam a fiscalização é a não-exigência de conta vinculada para se movimentar dinheiro de projetos tocados por ONGs. "Se você tem uma conta vinculada, restrita, é fácil rastrear os desvios. Sem ela a porta fica aberta", atesta o sub-controlador-geral da União, Jorge Hage. Segundo ele, outra falha é não obrigar que seja feita a apresentação de um plano de aplicação de recursos detalhados para os projetos contratados.
Atualmente,um órgão do governo pode contratar uma ONG de sua preferência sem ter de prestar contas ou justificando com descrições genéricas sobre os serviços. "É claro que a maioria dos contratos é feita de boa fé, mas precisamos reduzir as brechas para irregularidades", afirma o sub-controlador. Além de não ter de abrir um processo de licitação, o contratante é o responsável por fiscalizar o trabalho e os gastos dos projetos tocados pela ONG que ele próprio escolheu.
Contas - Por lei, as ONGs têm de prestar contas aos Ministérios Públicos dos Estados, os curadores dessas entidades. "Mas ninguém dá conta de fiscalizar as mais de 200 mil existentes", afirma Hage. A promotoria paulista decidiu instaurar no mês passado, só depois de seis anos de atuação, processo para verificar a relação de cada uma das fundações da USP com o poder público.
O professor Luiz Carlos Bresser-Pereira, ministro da Administração e Reforma do Estado no primeiro mandato de FHC (1995-98), que introduziu os contratos de parceria com organizações sociais para assumirem a gestão de órgãos públicos, recomenda a adoção de três providências para que o aumento da autonomia venha acompanhado de um aumento da responsabilidade: firmar contratos de gestão e de controle de resultados; incumbir instituições de fora, como comissões e conselhos, de realizar o "controle social"; e instituir a competição entre as organizações de uma mesma área, com indicadores de excelência.
Lucas Furtado, procurador do Ministério Público que atua no Tribunal de Contas da União, também defende algum controle externo sobre o trabalho das entidades do terceiro setor que utilizam recursos do governo: "Há denúncias de ONGs que utilizaram dinheiro público para construir hospital privado, de contratações de organizações recém-criadas por parentes de funcionários de órgãos públicos e outras aberrações."
No caso das Oscips, existe uma legislação própria que as obriga a ter um registro no Ministério da Justiça, segundo requisitos bem definidos. Talvez por isso, há apenas 1.326 Oscips no País: a migração, pretendida com a criação da lei em 1999, das entidades para esse novo status, que permite remunerar diretores, não ocorreu. Afinal, as entidades remuneram seus diretores por baixo dos panos, gozam de isenções fiscais e não têm o ônus do rigor. Só ficam com o bônus. Em qualquer caso, mesmo com as Oscips, prevalecem contratações sem licitação.
Licitações são processos demorados e muitas vezes contraproducentes, dos quais não resulta necessariamente a melhor relação custo-benefício para o Estado. Daí o interesse dos governantes, mesmo quando honestos. "Essas brechas legais (para contratar ONGs) são uma solução para um problema concreto, mas também abrem espaço para que a lei seja usada de forma indevida", pondera Carlos Ari Sundfeld, especialista em direito público.
'Pilantropia' - Até quem não tem nada a ver com esse confusão toda, mas pertence ao terceiro setor, se sente prejudicado. É o caso de entidades ligadas a empresas privadas. Reunidas no Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), que hoje agrupa 71 companhias, elas destinam cerca de R$ 700 milhões por ano em ações sociais, sobretudo para educação e saúde. "Muitos desses institutos e fundações estão dentro do terceiro setor, mas têm clara atuação empresarial, distribuem os recursos de origem pública entre seus membros e não buscam promover o bem social", diz o diretor-executivo do Gife, Judi Cavalcante.
Para o consultor Stephen Kanitz, que promove anualmente o Prêmio Bem Eficiente, a ação social do terceiro setor deveria ser custeada com doações dos cidadãos, dedutíveis do imposto de renda: "Em vez de dar dinheiro para o governo dar para as ONGs, seguindo critérios políticos e não humanistas, deveriam deixar o consumidor, que não é bobo, escolher. Ninguém vai dar dinheiro para ONG que não dá resultado."

EUA: incentivo fiscal é chave do sucesso
ONGs vivem de doações, que atraem com a transparência de seus balancetes

Paulo Sotero
Correspondente

Washington - Herdeiras da tradição americana da participação da sociedade nas questões de interesse coletivo por meio do voluntariado, as milhares de organizações não governamentais dos Estados Unidos exibem uma importante diferença em relação às suas congêneres brasileiras. Sua existência é assegurada tanto pelo mérito das causas que defendem como pela possibilidade de os cidadãos abaterem suas doações do imposto de renda.
Essa cláusula do código tributário é anterior à expansão da presença e do impacto das ONGs, que ganhou impulso nos anos 70, a partir da multiplicação de grupos ambientalistas e feministas. Graças a ela, as ONGs dos EUA contam com uma base de financiamento razoavelmente estável garantido por seus associados.
Outra diferença em relação à maioria das ONGs brasileiras é que as americanas profissionalizaram-se à medida em que cresceram e operam sob regras claras. Entre estas incluem-se critérios de mérito e eficácia na contratação e promoção de seus funcionários, a exigência da publicação de balancetes e a prestação de contas sobre o que fazem e como fazem, a seus associados e aos demais doadores dos fundos que sustentam suas atividades, entre as quais estão fundações, empresas, organismos oficiais e governos municipais, estaduais e federal.
Escrutínio - Os fornecedores de fundos não são os únicos a monitorar o funcionamento das ONGs. Embora tenham uma imagem pública positiva, porque se pautam pela defesa de valores e de causas que refletem os sentimentos e opiniões de segmentos significativos da população, as ONGs americanas não escapam do escrutínio da imprensa. Em maio, a Nature Conservancy, a maior organização ambiental do terceiro setor, reconheceu que havia cometido erros depois que o jornal The Washington Post publicou uma série de três reportagens expondo irregularidades em suas operações.
A competição entre elas pelas dezenas de bilhões de dólares de contribuições feitas anualmente por fundações, por contribuintes individuais e pelas fontes oficiais de financiamento é um forte incentivo para que atuem de forma transparente. Além disso, as ONGs tornaram-se tema de estudos acadêmicos e são alvos de fiscalização de outras ONGs que se formaram nos últimos anos com esse propósito.
Em contraste com o que ocorre no Brasil, os líderes dessas organizações nos EUA não se identificam como "donos" de ONG. Seria o caminho mais curto para a perda de financiamento. Quem quer ser dono de algo nos EUA cria uma empresa, o que demora, em média, não mais de quatro dias, enquanto no Brasil leva quatro meses.
Em parte, a legitimação política das ONGs americanas deu-se com a ajuda de órgãos do governo e de organismos multilaterais como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Algumas ONGs, no entanto, não aceitam contribuições oficiais, para não comprometer sua autonomia de ação. É o caso do Sierra Club, com mais de cem anos, que ajudou a criar os dois primeiros parques nacionais. Hoje, tem nada menos do que 700 mil sócios pagantes, que elegem por voto direto uma diretoria encarregada de fiscalizar a atuação dos executivos do grupo.

Governo prepara pacote
Grupo interministerial constata brechas na lei e falhas no sistema de prestação de contas

Vannildo Mendes

Brasília - O governo federal planeja baixar um pacote de medidas para disciplinar a atuação das ONGs no Brasil e estabelecer mecanismos de fiscalização dos gastos da União com o terceiro setor. A constatação é que o sistema de parcerias com organizações da sociedade civil, embora tenha trazido benefícios à sociedade, contém brechas usadas por entidades inidôneas para desviar dinheiro público.
Um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) criado pelo Palácio do Planalto fez, durante cinco meses, um estudo, por amostragem, dos diversos tipos de convênios, contratos e parcerias do governo com o terceiro setor. Os problemas encontrados vão desde uma legislação obsoleta até a falta de mecanismos eficientes de controle e fiscalização dos gastos.
"As lacunas legais são de fato enormes", diz o subsecretário-geral da Presidência, Cezar Santos Alvarez, relator do grupo. "É preciso dotar o governo de instrumento indutor de uma parceria de qualidade, que trabalhe a motivação existente na sociedade civil. Mas, ao mesmo tempo, o governo tem responsabilidades no sentido da qualificação dessa parceria, da transparência na prestação de contas, da renovação."
Segundo Alvarez, o governo encontrou demandas por maiores incentivos fiscais, "um tema sempre complexo". Outro problema detectado foi que não se concretizou a esperada conversão das entidades filantrópicas em organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips), criadas por lei em 1999, "a fim de que elas alcançassem uma relação com o Estado baseada em contratos de gestão mais transparente", com a possibilidade de remuneração de gestores, por exemplo. "De mais de 2 mil Oscips existentes, não temos mais do que 200 termos de parceria", observa o subsecretário.
"Os termos gerais pelos quais uma entidade é classificada como de interesse público merecem ser atualizados à luz da questão da renda, emprego e combate à pobreza", afirma Alvarez. "É preciso uma modernização programática nesse conceito de utilidade pública."
As conclusões do trabalho devem ser apresentadas no próximo mês ao secretário-geral da Presidência, Luiz Dulci, coordenador do grupo interministerial, que decidirá sobre a continuidade do trabalho. O grupo está propondo uma segunda fase para aprofundar o estudo de ações mais imediatas.

OESP, 29/08/2004, Dossiê Estado, p. H1-H8

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