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Fome miseria na beira do rio

CB, Brasil, p.11-12
22 de Nov de 2004

Fome Miséria na beira do rio
O governo garante que a transposição vai levar água e desenvolvimento para a região seca do Nordeste. Mas se esquece de que às margens do São Francisco estão alguns dos municípios mais pobres do país
Bernardino Furtado
Do Estado de Minas
Traipu (AL) - Um dos argumentos mais freqüentes do governo para defender a Transposição do Rio São Francisco é a oportunidade de levar desenvolvimento a uma das regiões mais pobres do País. A lista dos 100 municípios brasileiros com pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) leva a uma conclusão completamente diferente. Não figura na relação nenhum município do Ceará nem do Rio Grande do Norte, importantes beneficiários da transposição. Mas estão lá 11 municípios situados a menos de 100 quilômetros do leito do rio São Francisco, em Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia. O IDH, calculado pelo Programa das Organização das Nações Unidas Para o Desenvolvimento (Pnud), combina índices de educação, renda e longevidade da população.
Traipu, na margem alagoana do rio São Francisco, tem o quarto pior IDH do Brasil, segundo a última edição do ranking, publicada em 2002, com base nos dados do Censo de 2000. Os principais números que marcam o baixo desenvolvimento humano de Traipu são a mortalidade infantil — no município ocorrem 85,1 óbitos até um ano de idade em cada mil nascimentos —, quase o triplo da média nacional, 88,3% de pessoas com renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo mensal, para uma taxa brasileira de 32,75%, e índice de analfabetismo de 61%, aproximadamente o quádruplo do percentual de analfabetos do país.
Renda mínima
A única renda regular de José dos Santos, de 37 anos, vem de dois programas federais de renda mínima. São R$ 75 de Bolsa Escola e R$ 25 do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti). Assentado da reforma agrária na antiga fazenda Marcação, Santos, contudo, vive com a mulher e seis filhos num bairro sem saneamento básico de Traipu. Fez essa opção porque a mulher tem problemas neurológicos e toma remédios controlados. Da casa, se avistam a caixa dágua da Casal, a empresa de distribuição de água de Alagoas, e uma placa de boas vindas da Prefeitura com o seguinte enunciado: Traipu, terra de paz, sol, praia e água fresca.
Santos tem motivos de sobra para discordar da propaganda oficial. Sua casa e a dos vizinhos do bairro, conhecido como Loteamento, não têm água encanada. Felizmente fica a um quilômetro e meio do rio São Francisco. O agricultor tem carroça e burro, um patrimônio que, segundo os cálculos de Santos, vale R$ 800. Diariamente vai a um chafariz público, na beira do cais. Volta a pé, a puxando o burro pela rédea. Não convêm forçar o animal arcado sob o peso de 300 litros de água.
O agricultor se queixa da qualidade da água, cheia de lodo. Vivemos lá em casa com coceira pelo corpo, diz. Antes da inauguração do chafariz, Santos e outros despossuídos entravam no Velho Chico para buscar água corrente, mais limpa. Segundo ele, a prefeitura proibiu esse expediente.
A estratégia de vida de Santos explica a baixíssima renda familiar de Traipu. Até fevereiro, o agricultor vai passar os dias em casa, na cidade, porque, enquanto não chover, não há o que fazer na terra esturricada do assentamento Marcação.

Alagoas lidera lista dos piores
Manari (PE), Traipu, Poço das Trincheiras, Canapi, Senador Rui Palmeira, Inhapi, Major Isidoro, em Alagoas, Coronel João Sá (BA), São José da Tapera (AL), Santa Brígida (BA) e Águas Belas (PE), são, em ordem decrescente, os 11 municípios situados a menos de 100 quilômetros do rio São Francisco que figuram na lista dos 100 piores IDHs do país, num universo de mais de 5,5 mil municípios brasileiros.
Entre os estados que vão ser beneficiados pela transposição do rio São Francisco, a Paraíba tem 16 municípios na relação dos 100 menos desenvolvidos. Boa parte, no entanto, está fora da área de influência do projeto, a exemplo de sete municípios da região de Mamanguape, perto do litoral, no Nordeste do estado: Curral de Cima, Casserengue, Capim, Marcação, Damião, Pilõezinhos e Pedro Régis.
A transposição, contudo, vai beneficiar seis municípios de baixíssimo IDH na região de Itabaiana, no Baixo Rio Paraíba, que tem uma grande incidência de secas. Estão nessa lista Natuba, Santa Cecília do Umbuzeiro, São Miguel do Taipu, São José dos Ramos, Itatuba e Gado Bravo. Essa é uma das razões que tornam defensável o eixo leste do projeto, apesar do altíssimo gasto de eletricidade no bombeamento. É necessário vencer um desnível de 304 metros entre o Lago de Itaparica e a divisa de Pernambuco com a Paraíba. Os críticos da transposição defendem, em vez dos caros e superdimensionados canais, uma adutora (tubulação) com capacidade suficiente para abastecimento humano, excluídos projetos de irrigação.
O Ceará só aparece na lista dos piores IDHs a partir da 209ª posição. Nessa tabela invertida de desenvolvimento humano, até o 300o lugar, figuram Barroquinha e Granja, no Vale do Coreaú, Croatá, na divisa com o Piauí, Salitre, na Chapada do Araripe, e Saboeiro, nos Inhamuns. Nenhuma dessas regiões está na área de influência da transposição do rio São Francisco.
O município de pior IDH do Rio Grande do Norte, Venha Ver, é o 160o da lista dos municípios brasileiros menos desenvolvidos. Fica no Vale do Apodi, que será beneficiado pela Transposição do Rio São Francisco. O Rio Grande do Norte só volta a aparecer na lista dos piores na 266ª posição, graças ao município de São Miguel de Touros, no litoral norte.

88,3% Percentual de pessoas em Traipu com renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo mensal, para uma taxa brasileira de 32,75%
61% Índice de analfabetismo de Traipu, aproximadamente o quádruplo do percentual de analfabetos do País
11 Municípios situados a menos de 100 quilômetros do rio São Francisco que figuram na lista dos 100 piores IDHs do País

Sede
Sem-terra agora são sem- água
Em Poço Redondo, município às margens do São Francisco, população depende de carros-pipa para ter água em casa. Na zona rural, situação é pior. Sem irrigação, assentados não têm como produzir
Poço Redondo (SE) - No último 3 de novembro, Enoque Salvador de Melo (PL), prefeito desse município banhado pelo rio São Francisco, encaminhou uma carta dramática ao governador do estado, João Alves Filho (PFL). Pelo amor de Deus nos socorra neste momento difícil com pelo menos cinco caminhões-pipa, implorou o prefeito, na sexta e última linha da carta. Em 19 de janeiro, o prefeito tinha usado a caneta por outro motivo. Decretou estado de calamidade pública em virtude das fortes chuvas que provocaram mortes por afogamento, destruição de pontes, de estradas, da rede de distribuição de água e de açudes na zona rural.
A transição da enchente para a seca, nas margens do rio São Francisco, num intervalo de 11 meses, não é uma aberração climática. Chuvas concentradas em poucos dias do ano, solo raso e embasado em rochas impermeáveis, o chamado solo cristalino, escassez de água subterrânea, em geral salobra, e 2 mil horas de sol por ano são características da maior parte do semi-árido nordestino. Essas condições ocorrem em Sergipe, em Alagoas, na Bahia e em Pernambuco, estados da Bacia Hidrográfica do São Francisco, tanto quanto no Ceará, no Rio Grande do Norte e na Paraíba, beneficiários da transposição das águas do Rio da Integração Nacional.
Neste mês, a adutora que liga Poço Redondo ao rio não tem dado conta da demanda de água da sede do município. Nem o hospital municipal prescinde da colaboração de um dos sete carros-pipa contratados pela Prefeitura para enfrentar a seca.
Na zona rural, onde moram 80% da população de Poço Redondo, a situação é mais crítica, por falta de rede de distribuição de água. O município foi alvo de uma intensa reforma agrária que assentou 2,1 mil famílias, que hoje representam aproximadamente um terço da população total. Esses assentamentos são inviáveis porque não há água nem assistência técnica, afirma o prefeito. Segundo ele, é impossível para um pessoa pobre sobreviver exclusivamente da agricultura em um município que tem um ano chuvoso por década.
Redenção
Da parede da barragem da Hidrelétrica de Xingó desce, quase na vertical, um grande tubo com a inscrição Jacaré-Curituba. O cilindro de metal pode ser visto à distância, da rodovia. É a legenda do que deveria ser a redenção de Poço Redondo. Um projeto de reforma agrária para 700 famílias em 5 mil hectares, irrigados pela água da represa, a 10 quilômetros. Assentadas há sete anos, essas famílias ainda esperam a chegada da água nos lotes. Já foram investidos quase R$ 30 milhões, mas as obras foram interrompidas há cerca de três anos. Faltam R$ 18 milhões para pôr a irrigação em funcionamento. Nem mesmo o abastecimento das casas chegou e a maioria dos assentados depende de carros-pipa.
Há cinco anos, outro grupo, de 160 famílias calejadas por oito despejos judiciais, conquistou o assentamento na fazenda Lagoa da Areia, na barranca do rio São Francisco. Estão em situação pior do que os assentados de Jacaré-Curituba. Na Lagoa da Areia não há água nem energia elétrica. Para montar um sistema de irrigação seria necessário vencer, com bombas, o desnível de 150 metros entre a parte mais alta da antiga fazenda e o leito do Velho Chico. É uma altura de bombeamento menor do que a projetada para o Eixo Norte da Transposição do Rio São Francisco: 165 metros.
O governo federal construiu nove agrovilas no Assentamento Lagoa da Areia. Boa parte das casas nem sequer são dotadas de fossas. A mais distante está a sete quilômetros do rio. As grandes ladeiras tornam inviável o transporte de água em carroças. Por isso, os assentados têm de disputar com o resto da população de Poço Redondo os carros-pipa pagos pela prefeitura. Um carro-pipa particular, com tanque de 7.500 litros, custa proibitivos R$ 40. O armazenamento de água nas agrovilas é feito, predominantemente, em tanques coletivos de cimento destampados.

CB, 22/11/2004, p.11-12

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