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A fome e a água

JB, Opiniões, p. A9
Autor: CORTEZ, Henrique
11 de Fev de 2004

A fome e a água

Henrique Cortez
Ambientalista

Para nós, do Sul e do Sudeste, o sertão é uma incógnita. Vários anos de seca, seguidos de chuvas intensas, alagamentos e inundações. Ora as reportagens mostram o chão ressecado, ora cidades alagadas.
Sem um contato mais próximo, ficamos com a impressão de que o semi-árido é amaldiçoado e que jamais devia ter sido habitado. Conheço a região há anos e, ao longo do tempo, conversei com inúmeras pessoas, com as mais diferentes opiniões e percepções, mas sempre com a mesma perplexidade.
Os atuais alagamentos e inundações são resultantes da conjunção de fenômenos climáticos razoavelmente raros: o aquecimento do oceano, com aumento da evaporação, somado à chegada de uma forte frente fria. Como os poucos rios perenes estão rasos demais, em razão do assoreamento, e o solo quase vitrificado por muitos anos de seca sob sol intenso, a água da chuva desloca-se com grandes velocidade e intensidade, formando correntes violentas.
A última vez que esses fatores ocorreram em conjunto foi há 44 anos - e, antes disso, apenas em 1910. O resultado está em precipitações cinco vezes maiores do que a média histórica. Daí às inundações foi um passo.
De qualquer forma, o problema fundamental continua na seca, no estresse hídrico, no déficit hídrico (evaporação superior à precipitação), no manejo inadequado das reservas de água e na falta de um programa que perenize centenas de rios. Acima de tudo, a seca é resultado de condições geográficas e climáticas. Não existe combate à seca; no máximo teremos como conviver com ela, da mesma forma como os esquimós convivem com a neve.
Com essa visão, tentei registrar a realidade do semi-árido e da seca, em fotodocumentário que realizei ao longo da Bacia Hidrográfica Piranhas-Açu, base de exposição atualmente aberta no Centro Cultural dos Correios. A Bacia Hidrográfica Piranhas-Açu será uma das receptoras da projetada transposição das águas do Rio São Francisco. Apesar da proximidade da bacia hidrográfica, a maioria das cidades visitadas e retratadas estava em estado de emergência em razão da seca. Simplesmente em razão do déficit hídrico, da superexploração e, até novembro de 2003, de três anos sem chuvas.
Participei, em 1998, como consultor e ambientalista, de um projeto de análise de sustentabilidade de projetos de fruticultura irrigada, para exportação. Na época, muitas empresas na região estavam se dedicando à fruticultura de exportação. A partir de 2000, várias delas, senão a maioria, faliram ou fecharam.
Não temos realmente consciência do que sejam as características e os problemas do semi-árido. O convívio com a seca, o combate à fome e a erradicação da miséria são ações de médio e longo prazos que exigem compreensão do problema, conhecimento da situação e comprometimento com a execução de programas corretivos.
Relativamente poucas pessoas leram Os Sertões e Vidas Secas e, mesmo esses poucos, têm dificuldade de compreender o que realmente é a vida no sertão, que não mudou tanto desde que essas obras-primas foram escritas.
É necessário romper os preconceitos para com a região e compreender que é possível desenvolver modelos de convivência com a seca, combatendo o maior flagelo da área - a fome. A fome no semi-árido está claramente associada à seca e, mais precisamente, ao acesso à água. Água para beber, para irrigar, para viver dignamente.
São freqüentes as imagens de rios completamente secos, de açudes exauridos, de ricas áreas irrigadas ao lado da mais impensável aridez. Muitas vezes vemos adutoras tão próximas e, ao mesmo tempo, tão distantes de tantos. Precisamos garantir o acesso à água. O acesso à cidadania. Para nós o acesso à água é tão simples: abrir uma torneira. Para milhões de brasileiros, é sonho distante.

JB, 11/02/2004, Opiniões, p. A9

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