VOLTAR

Fissura na base de apoio a Morales

O Globo, O Mundo, p. 34
28 de Set de 2011

Fissura na base de apoio a Morales
Referendo sobre rodovia não impede nova queda de ministro e convocação de greve geral na Bolívia

Janaína Figueiredo

As principais cidades bolivianas serão cenário hoje de uma greve geral convocada pela Central Operária Boliviana (COB), em repúdio à repressão aos indígenas que tentam impedir a construção de uma estrada que cruzaria o Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS), na região central do país. A COB integra uma abrangente lista de setores políticos e sociais que se opuseram à ação do governo Evo Morales e decidiram aderir à onda de protestos que desde domingo se espalhou por vários departamentos (estados) bolivianos. A nova crise política que assola o Palácio Quemado ontem provocou a renúncia que mais quatro integrantes do alto escalão do governo: o ministro do Interior, Sacha Llorenti, de seu vice, Marcos Farfán, da diretora nacional de Migração, María René Quirogam e da coordenadora do Sistema de Informação e Acompanhamento da produção de Preços dos Produtos Agropecuários, Roxana Liendo. E aprofundou as fissuras nas bases de apoio do governo, além de criar um clima de incerteza sobre o futuro político de Morales.
Os cerca de 1.500 indígenas que há mais de 40 dias protestam contra a construção da estrada de 300 quilômetros que uniria as cidades de Villa Tunari e San Ignacio de Moxos - e que ontem decidiram retomar a marcha até La Paz - receberam o apoio da Igreja, de associações de defesa dos direitos humanos e meio ambiente, comitês cívicos dos departamentos de Beni, Pando, Potosí, Oruro e Santa Cruz, sindicatos e partidos opositores. Muitos votaram em Morales em 2005 e respaldaram iniciativas do governo.
Nem mesmo a decisão do presidente de suspender temporariamente as obras e convocar uma consulta popular ainda sem data conseguiu conter os protestos e a enxurrada de críticas. Os indígenas não querem um referendo, querem que o governo cancele o projeto.
- Ou o presidente recua totalmente em sua posição e assume seus erros, ou a crise vai se agravar - disse Carlos Hugo Lanuta, dirigente indígena do partido opositor Unidade Nacional.
Segundo ele, "o conflito com os indígenas deteriorou a situação de um governo que vem acumulando problemas há vários meses e que hoje não tem mais de 30% de aprovação".
Manifestantes pedem a renúncia do presidente
A atitude do Executivo de mostrar-se alheio à violenta repressão exercida contra os indígenas foi considerada inadmissível pelos opositores. Llorenti responsabilizou Farfán, mas acabou deixando o cargo à noite, dizendo que não queria ser "um instrumento da direita". Já Farfán, ex-vice-ministro de Regime Interior, divulgou uma carta na qual negou ter ordenado o ataque. Na véspera, a ministra da Defesa, Maria Cecilia Chacón, deixara o cargo por discordar da ação policial.
Paralelamente, deputados do governista Movimento ao Socialismo (MAS) confirmaram o pedido de interpelação de três ministros no Congresso. O ministro da Presidência, Carlos Romero, anunciou a criação de uma comissão interinstitucional para investigar os incidentes de domingo, que, segundo a imprensa local, deixaram três mortos - entre eles uma criança -, dezenas de detidos e 40 desaparecidos.
- O governo nacional é o primeiro interessado em esclarecer tudo - declarou Romero.
Nas ruas de La Paz e de cidades como Santa Cruz, os protestos continuam. Na Basílica de San Lorenzo, em Santa Cruz, 17 pessoas iniciaram uma greve de fome pedindo a renúncia do presidente. Também há vigílias indígenas na capital do país e em Cochabamba. Apesar de o governo ter se mostrado desde o início da gestão como defensor dos direitos dos indígenas, o desencanto entre membros do setor é cada vez maior.
- Diziam que este seria o governo dos indígenas. Foi uma grande mentira - criticou Fernando Untoja, líder do movimento aimará Ayra.
Ele lamentou que enquanto o conflito se agravava, "Morales estava na Venezuela ou defendendo a Palestina na ONU". O conflito começou há quase 45 dias e se tornou uma causa nacional.
- Não se pode governar desta maneira - afirmou Pedro Montes, dirigente da COB.
O principal sindicato boliviano começou a distanciar-se do governo em 2010, sobretudo após aprovação do chamado "gasolinaço", um aumento dos tributos sobre a gasolina. A medida desencadeou manifestações e começou a mostrar as fraquezas de um governo que, nos primeiros anos, chegou a ter mais de 60% de apoio.
Em Genebra, o relator especial da ONU para os Direitos dos Povos Indígenas, James Anaya, pediu que o governo abra um canal de diálogo, em que "os indígenas sejam consultados a fim de encontrar uma saída pacífica".

Mudança no traçado pode tornar a estrada inviável, diz OAS

Janaina Lage

Uma eventual mudança no traçado da estrada que liga Villa Tunari a San Ignacio de Moxos pode tornar a obra inviável economicamente, disse ontem o diretor da Área Internacional da construtora OAS, César Uzêda. Ele explica que a estrada tem extensão total de cerca de 300 quilômetros. O trecho dois, que está em discussão na Bolívia, representa quase 47% da obra e metade dele passa por uma reserva indígena:
- Existe alternativa no trajeto, mas isso aumentaria muito o tamanho da estrada. Economicamente ela poderia se tornar inviável. Estamos falando de um parque de 1,1 milhão de hectares. Isso resultaria em mais 150 quilômetros de construção.
Uzêda explica que a construção dos trechos um e três, que não passam pela reserva, continuam em andamento. Ele ressalta que o governo da Bolívia é soberano para decidir o futuro do projeto, com manutenção ou alteração do traçado. Atualmente, cerca de 1.200 pessoas trabalham na obra. A previsão de conclusão integral da estrada está prevista para 2014. O trecho que passa pela reserva ainda não tem licenciamento ambiental e tinha início de construção estimado em julho de 2012.
O financiamento de US$332 milhões aprovado pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) representa cerca de 80% do custo total da obra e ainda não foi liberado. Caso o traçado seja alterado em decorrência do referendo popular o projeto deverá ser reapresentado ao banco. O BNDES afirma que é cedo para comentar o episódio, mas esse é o procedimento normal em caso de alterações em obras de infraestrutura. Segundo Uzêda, o financiamento foi dividido de acordo com os trechos. Mesmo que a discussão sobre a passagem pela reserva continue, isso não impede o financiamento a exportações para os outros trechos.
Para Emílio Telleria, diretor da Câmara de Comércio Brasil-Bolívia, a principal importância do projeto, que faz parte do chamado Corredor Bioceânico, planejado para ligar o porto de Santos, no oceano Atlântico ao de Iquique (Chile), no Pacífico, é a integração da economia boliviana:
- O caminho abre oportunidades para as pessoas se estabelecerem ali, isso aumentaria a integração social.
Os fatores que preocupam os índios são justamente a perspectiva de maior povoamento e a expansão da fronteira agrícola.

Corpo a Corpo

Carlos Cordero

'Todos perderam o medo do governo'

BUENOS AIRES. O presidente Evo Morales pagará um alto custo político pela repressão aos indígenas. A opinião é do analista político e professor Carlos Cordero, da estatal Universidad Maior de San Andrés, em La Paz. Segundo ele, a Bolívia está presenciando um movimento de reacomodação de suas forças políticas e cada vez está mais claro que o governo perdeu parte de sua base de sustentação.

O Globo: Onde pode terminar esta nova crise política boliviana?

Carlos Cordero : Não imaginamos, ainda, uma queda do governo. Mas o presidente pagará um altíssimo custo político por seus erros, sobretudo pela repressão aos indígenas. Morales já estava pensando em buscar um novo mandato após 2014, mas esta crise poderia pôr fim a seu projeto de permanência no poder. Ele está perdendo legitimidade.

Muitos setores que antes apoiavam o governo agora estão nas ruas protestando.

Cordero: Vemos fissuras cada vez mais profundas na base de apoio do governo. Estamos presenciando um movimento de reacomodação das forças políticas e cada vez está mais claro que o governo perdeu parte de sua base de sustentação. Os sindicatos, a Igreja, os indígenas, todos perderam o medo do governo e se atrevem a enfrentá-lo.

Até quando continuarão os protestos?

Cordero: As pessoas estão muito irritadas, querem que o Executivo assuma sua responsabilidade. Os indígenas não querem mais diálogo, querem ser reconhecidos.

Há divisões no movimento indígena?

Cordero: Sim, por um lado temos os indígenas que querem proteger o meio ambiente. Por outro, os chamados colonizadores: grupos de quéchuas e aimarás que querem o desenvolvimento do campo boliviano, estradas, novos comércios, novas cidades. Esse grupo está sendo respaldado pelo governo e está por trás da repressão. O governo não está sabendo lidar com estas diferenças. (J.F)

O Globo, 28/09/2011, O Mundo, p. 34

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.