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Festa que nao muda o mundo

OESP, Notas e Informacoes, p.A3
28 de Jan de 2005

Festa que não muda o mundo
D e diversas maneiras pode ser avaliada - ou apreciada - a grande concentração mundial de protestos e utopias em que se transformou o Fórum Social Mundial, cuja 5.ª edição teve a abertura oficial quarta-feira, em Porto Alegre. Iniciado como uma contrafação meio parodística do Fórum Econômico Mundial de Davos, a cada nova edição a reunião da capital gaúcha foi adquirindo uma ressonância internacional de dimensões maiores, assim como um "glamour" político-intelectual que jamais representou mudanças, idéias novas ou impactos transformadores no percurso do mundo globalizado - se bem que, em termos de resultados práticos, não se pode dizer coisa muito diferente em relação às reuniões de Davos, sempre marcadas, na melhor das hipóteses, por bem-intencionados wishful thinkings, no que diz respeito à participação dos países ricos na luta contra a miséria.
Algumas opiniões podem espelhar de forma bem ilustrativa as expectativas e os sentimentos multifários que o Fórum Social costuma despertar: "É uma beleza de feira ideológica" - definiu-o, entusiasmado, Frei Betto, o ex-assessor especial do presidente Lula. "É o maior encontro antiimperialista do mundo" - sacramentou-o em brado estentórico a jovem Ana Maria Prestes, do comitê organizador, armada de microfone em cima de um caminhão durante a Marcha pela Paz que fez desfilar pelas ruas de Porto Alegre cerca de 100 mil pessoas, segundo cálculos da Brigada Militar gaúcha. "A energia é muito boa, anima todo mundo" - avaliava uma veterana de participação no fórum, a argentina de origem norte-americana Beverly Keene, não demonstrando, porém, entusiasmo tão grande quanto a seus resultados, ao observar: "Mas esta é a quarta edição da qual participo e estou achando que é preciso mais do que isso. Não vamos mudar o mundo só conversando."
Com seu "Território Social Mundial" espalhando-se por 400 hectares da área central da cidade; 203 salas construídas, com capacidade de 50 a 1.000 lugares, tendo em vista abrigar a realização de 2.000 diferentes debates; 295 tendas de apoio para equipes de informações e para venda de alimentos e bebidas; 700 computadores, 1.000 pontos de acesso à internet, 30 cybercafés, 11 centrais de informações; com 120 mil participantes esperados até o final do evento de 6 dias (até dia 26 já havia 80 mil inscritos), vindos de 122 países; com a participação de 6.586 organizações, que enviaram 45 mil representantes; com cerca de 6 mil profissionais de imprensa inscritos para cobrir o evento, vindos de 70 países, tudo isso dá ao Fórum Social Mundial, ao custo orçado em R$ 14 milhões, uma dimensão, realmente, respeitável. E a isso se acrescente a multiplicidade de idiomas, de trajes e coloridos típicos das mais diferentes regiões do mundo, que dão às ruas, praças, lojas e restaurantes de Porto Alegre, nestes dias, um ar de festividade especial - mesmo que grande parte de sua população esteja ausente, em razão das férias de verão.
A participação, no evento, de algumas figuras internacionalmente bem conhecidas - como os presidentes do Brasil, Lula, e da Venezuela, Hugo Chávez, os escritores argentino, Adolfo Perez Esquivel (Prêmio Nobel da Paz de 1980), e uruguaio, Eduardo Galeano, o sociólogo português Boaventura de Souza Santos e outros, chancelados pelo carimbo da velha esquerda mundial ou exercendo militância contestatória terceiro-mundista em fóruns e ONGs de diversas partes do mundo - cria, perante a cobertura geral da imprensa, as expectativas, se não as mais importantes, as mais curiosas - visto que sempre aí reside uma oportunidade de anúncios, idéias ou pelo menos frases "de impacto".
É possível que em meio a uma carga volumosa de temas em debate - como o do combate à pobreza e à devastação ambiental, do direito à vida e da legalização do aborto, da defesa dos Estados palestino e israelense, o da "Reforma das Instituições Internacionais" e o do "desgaste comercial do Mercosul", e questões especialmente complexas que preocupam as sociedades do mundo contemporâneo - de repente surjam idéias novas, originais e até aproveitáveis, por mais surpreendente que isso pareça aos mais pessimistas. Há que se ter tal esperança, mesmo que se considere esse fórum uma festa que não muda o mundo - pois, afinal, como as civilizações humanas haveriam de ver seu próprio sentido sem a produção contínua e sistemática de suas utopias?

OESP, 28/01/2005, p. A3

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