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Febre da indenização esquenta Serra Pelada

O Globo, O País, p. 8-10
29 de Abr de 2007

Febre da indenização esquenta Serra Pelada
Mais de 20 anos depois, garimpeiros voltam a sonhar com ouro e riqueza, mas
vivem em meio a pobreza e doenças

Fellipe Awi
Enviado especial

Há 25 anos, Teodoro Camelo deixou a vida monótona no Maranhão em busca do tal ouro que brotava da pedra em Serra Pelada. Semana passada, fez o mesmo caminho atrás apenas de "notícia verídica", como ele diz. A esta altura, notícia verídica é artigo raro e valioso como o metal que já o fez abandonar mulher e filhos.

Teodoro, de 59 anos, é um dos milhares de garimpeiros de Serra Pelada acometidos pela febre da indenização. Na década de 80, ele ouviu na Rádio Nacional que estava dando ouro no Sudeste do Pará. Agora, chegou-lhe a informação de que, finalmente, vai sair a fortuna que não encontrou em quatro anos de garimpo. Mas parece que o retorno à vila onde o ouro produziu mais miséria que riqueza não lhe deu certeza de nada.

Lá no Rio de Janeiro vocês não sabem de nada, não? - pergunta, ansioso, quando descobre a procedência do interlocutor.

Garimpo no local será feito por máquinas
Em Serra Pelada, a ansiedade de Teodoro é sentida na conversa com os moradores flutuantes que, como ele, voltaram atrás de notícias, ou com aqueles que jamais deixaram o lugar. Uma visita do senador Edison Lobão (DEM-MA), mês passado, reacendeu-lhes a esperança de que a longa espera, enfim, seria recompensada.

Com o parlamentar, chegou o o alvará de pesquisa da cava de cem hectares - a mesma que ficou famosa nos anos 80 por ter se tornado um formigueiro de gente -, concedida pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).

Mas ninguém lhes disse que, para sair o alvará de lavra, ainda falta resolver conflitos de interesses tão antigos quanto o garimpo em Serra Pelada. Fazem parte dele oito cooperativas de garimpeiros, um sindicato, o governo federal, a Vale do Rio Doce e o prefeito de Curionópolis, Sebastião Curió.

O alvará de pesquisa permitirá saber quantas toneladas de ouro ainda existem na cava de Serra Pelada, hoje um lago de aproximadamente 100 metros de profundidade formado pela água da chuva e de um lençol freático. A estimativa ainda é polêmica. De acordo com uma pesquisa da Vale, ex-dona da área, há entre 20 e 35 toneladas do metal, mas o Sindicato dos Garimpeiros de Serra Pelada (Singasp) fala em cem toneladas. O alvará de lavra sairá quando forem apresentados um projeto de exploração mineral e a licença ambiental por uma das empresas interessadas no garimpo mecanizado da cava.

Essa é, aliás, uma das poucas certezas aqui: ninguém mais se meterá em buracos atrás de ouro; tudo será feito por máquinas. A empresa que ganhar a concorrência pagará uma indenização aos garimpeiros e dividirá as receitas futuras, provavelmente meio a meio.

Enquanto isso, os 6.500 moradores de Serra Pelada vivem presos a um lugar que já foi de esperança e, agora, é de agonia.

Como se diz por lá, quem não é menino ou mulher é garimpeiro, mas o garimpo já não existe como atividade oficial desde 1992, quando foi fechado pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello. Ninguém ali "bamburrou", termo usado para o sortudo que achou muito ouro.

Os bamburrados, há muito tempo, deixaram os barracos sem saneamento da vila. Além da espera, os homens vivem do comércio ou criam galinhas; as mulheres vivem de ajudá-los.

Analfabetos em sua maioria, sem carteira assinada, a maioria depende do Bolsa Família ou de cestas básicas distribuídas pela Vale do Rio Doce.

- Todo mundo vive à espera do que é nosso. Mas, às vezes, a nossa esperança fica desesperada - afirma Juvenal Carvalho, de 62 anos, um dos garimpeiros pioneiros em Serra Pelada.

Casos de depressão e hanseníase preocupam
Por vezes, os garimpeiros definem esse sentimento como depressão, quase sempre no sentido de frustração. Mas um estudo da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, há dois anos, diagnosticou, de fato, vários casos de depressão e ansiedade e recomendou a presença de um psicólogo no único posto de saúde da vila. Não foram atendidos. Atualmente, as doenças da cabeça preocupam mais que as do corpo, embora a hanseníase ainda seja um problema. O Sul e o Sudeste do Pará são as regiões que concentram o maior número de casos no Brasil. A doença chegou com o garimpo e se espalhou rapidamente, assim como outras endemias. Matou mais de cem e, entre os atuais moradores, quase 400 já foram tratados.

- Dizem que é por causa do mercúrio usado para extrair ouro - diz o presidente da Associação dos Hansenianos do Sul e Sudeste do Pará, Antônio Leal, ex-garimpeiro e ex-hanseniano.

Motorista de ambulância, José Ribamar Moreira tem depressão e convive de perto com a precariedade do atendimento no posto de saúde, cujo médico é de Parauapebas, a 85 quilômetros. Há dias em que ele vai três vezes a Curionópolis levar pacientes, enfrentando os 40 quilômetros de estrada de barro que reforçam sensação de isolamento de Serra Pelada do mundo.
A gente não vive, vegeta.
Tenho filhos espalhados por Manaus e pela Transamazônica, mas vou ficar aqui até o fim do bagaço - diz.

Muito ouro e histórias fantásticas no garimpo
Serra Pelada produziu 42 toneladas da pedra preciosa; major Curió mantém poder no local

Fellipe Awi
Curionópolis (PA).

Maior garimpo a céu aberto do mundo, Serra Pelada produziu, oficialmente, até ser fechado pelo então presidente Fernando Collor, em 1992, 42 toneladas de ouro, embora calculese que outras 60 toneladas tenham saído de lá ilegalmente. Sua fama não vem só dos números, mas também das histórias fantásticas vividas por cerca de 80 mil pessoas que, nos anos 80, invadiram um garimpo selva a dentro, aos pés da Serra dos Carajás.

Proporcionalmente, foram poucos os garimpeiros que enriqueceram em Serra Pelada.

Mas eles são usados como referência para os que continuam achando que sua redenção financeira virá do garimpo. Um dos mais lembrados é do goiano Marlon Lopes, que teria comercializado duas toneladas de ouro e virado grande fazendeiro. Há também quem não esquece a visão da Canaã, nome dado à maior pepita já encontrada. Pesava 62 quilos. O homem que a achou, Júlio de Deus Filho, morreu numa briga de bar.

Sebastião Rodrigues de Moura, o Major Curió, talvez seja a figura mais lendária de Serra Pelada. Ex-agente do SNI, conhecido por combater os guerrilheiros do Araguaia, ele foi mandado pelo governo federal para impor lei e ordem sobre um garimpo que crescia desordenadamente.

Curió instituiu regime militar em Serra Pelada

Num regime quase militar, instituiu o hasteamento da bandeira e a execução do Hino Nacional todas as manhãs e proibiu mulheres e bebidas alcoólicas na vila, além de estabelecer as regras da extração do ouro. Tornou-se deputado federal e deu nome à cidade a que pertence Serra Pelada, Curionópolis, ainda administrada por ele. Sua influência já foi maior entre os garimpeiros, mas até hoje o prefeito de Curionópolis, eleito pelo PMDB, é peça importante no jogo de poder de Serra Pelada.

Recentemente, Curió revelou que sua nomeação como interventor federal em Serra Pelada era uma estratégia do governo militar para impedir o avanço de movimentos de esquerda sobre os garimpeiros.

Na vila, falta trabalho e cresce prostituição infantil
Em Serra Pelada, moradores sofrem com falta de escolas e perspectiva de mecanização da extração do ouro

Fellipe Awi
Enviado especial

Nos últimos anos, a praga mais preocupante de Serra Pelada é a prostituição infantil. Seu crescimento, que já mobilizou o Ministério Público do Pará, é resultado da combinação de duas realidades: homens solitários que deixaram a família em suas cidades para procurar ouro e meninas com poucas perspectivas profissionais. Serra Pelada tem uma escola de ensino fundamental (até a oitava série). O ensino médio é feito em sistema modular, com professores de Belém e Parauapebas que fazem rodízio de um mês na vila. Há pouco trabalho e é preciso procurar outra cidade para fazer faculdade.

- Temos que sair daqui para conseguir alguma coisa na vida - diz Alessandra de Souza, de 19 anos, que sonha cursar direito em Marabá.

Vila tem um único comprador de ouro
A maioria das pessoas tem planos de sair da vila, se não por opção, por necessidade, uma vez que o garimpo mecanizado deverá forçar a desapropriação dos barracos de Serra Pelada. Mas não é por saudades antecipadas que alguns garimpeiros continuam procurando ouro, apesar de a lavra estar oficialmente proibida pelo governo federal. Com a ajuda de chupadeiras - máquinas de sucção -, gente como Osvaldo Pereira fica dias para retirar dois ou três gramas do metal da montoeira, como é chamada a montanha de resíduos tirados da principal cava de Serra Pelada.

Nos bons tempos, o lugar ganhou o apelido de FMI, mas hoje o banco estaria quebrado.

No trabalho, eles mergulham numa água completamente contaminada de mercúrio. É o garimpo de subsistência, cuja cadeia de produção mantém o único comprador de ouro que restou na vila. Enquanto espera a indenização, Moacir Martins compra o grama a R$ 37 e vende para uma empresa de Curionopólis com 10% de lucro. É insuficiente para pagar aos agiotas que lhe permitiram começar o negócio:

- Quando sair o nosso dinheiro, pago a todo mundo e volto para o Rio Grande do Norte. Como eu nunca bamburrei, só assim terá valido a pena passar tantos anos preso aqui.

São tantas histórias tristes relatadas em Serra Pelada que a de Juvenal Carvalho só difere das outras por ser mais antiga.

Como um jogador de cassino, ele investiu na área os 19 quilos de ouro que ganhou em outro garimpo, em Mato Grosso. No Pará, aprendeu o que é ser dono de barranco cego, aquele que não dá ouro. Perdeu tudo, menos a esperança, insuflada quando exibe uma pepita de 39 gramas achada recentemente por um amigo. Nessa hora, ele sorri e dá a resposta mais original sobre como será seu futuro depois que a indenização for paga.

- Vou fazer um check-up geral para voltar a ser um menino de 50 anos, se é que você me entende.

Cooperativas, sindicatos e governo disputam direitos de exploração
Vale do Rio Doce cedeu direitos à União, que os repassou a associações

Fellipe Awi
Enviado especial

A vida dos garimpeiros está emperrada num emaranhado de disputas entre representantes de todas as partes interessadas na retomada da exploração mineral de Serra Pelada. De lados opostos estão o Sindicato dos Garimpeiros de Serra Pelada (Singasp) e Sebastião Curió, prefeito de Curionópolis, município que engloba a vila. No meio do conflito, estão o governo federal e oito cooperativas que representam 67 mil associados, entre elas a Coomigasp, que detém os direitos sobre a cava de cem hectares, considerada a mais valiosa. Há outras áreas de minério repartidas entre as demais cooperativas.

Repleta de casos de assassinato e, até hoje, ameaças de morte, a disputa entre sindicato, governo, cooperativas e o prefeito remonta ao início do garimpo em Serra Pelada, no fim dos anos 70. As maiores vítimas sempre foram os garimpeiros. Naquela época, completava o cenário a Vale do Rio Doce, detentora da área. Recentemente, os conflitos voltaram a se acirrar, depois que, após uma longa novela e em troca de uma área de calcário, a Vale cedeu o direito sobre a cava ao governo federal, que o repassou à Coomigasp.

Antes mesmo de sair o alvará de pesquisa, as partes já brigavam para escolher que empresa fará o garimpo mecanizado de Serra Pelada. Em 2004, a Coomigasp assinou um contrato com a americana Phoenix Gems, que não foi reconhecido pelo governo porque a cooperativa ainda não possuía a licença.

Nova direção da Coomigasp quer rever contrato
Sindicalista acusa Curió de agir em benefício próprio

Pelo acordo fechado pela Coomigasp e a empresa americana Phoenix Gems, os associados da cooperativa receberiam US$ 240 milhões, sendo US$ 40 milhões adiantados. A empresa ficaria com 60% dos resultados da extração de minério, contra 40% dos garimpeiros. O acordo foi fechado por Josimar Barbosa, então presidente da Coomigasp, afastado depois na Justiça por grupos rivais.

Após uma longa briga pelo comando da Coomigasp, a nova diretoria pretende rever o contrato com os americanos, considerado desvantajoso para os garimpeiros. Entraram na briga outras empresas interessadas em Serra Pelada: Mitsubishi (Japão) e Troy (Austrália), além de duas canadenses, uma sul-africana e outra sul-coreana. A empresa que vencer a concorrência terá, primeiro, que dragar o lago em que se transformou a cava.

- O valor da indenização é o que vai pautar nossa escolha, mas a data de pagamento também é importante. Os garimpeiros não agüentam mais esperar - diz o vice-presidente da Coomigasp, Assis Coelho.

Indenização pode beneficiar 40 mil garimpeiros
Quando for paga, a indenização vai beneficiar garimpeiros espalhados por quase todos os estados do Brasil e até no exterior. O sindicato e a Coomigasp realizaram um amplo recadastramento com pessoas que provaram ter participado do garimpo em Serra Pelada nos anos 80.

O número de associados saltou de oito mil para mais de 40 mil.

O presidente do Singasp, Raimundo Benigno, diz que a Coomigasp voltou a sofrer influências do prefeito Sebastião Curió (PMDB), ex-agente do SNI, interventor do governo militar em Serra Pelada e que nunca perdeu a influência sobre o garimpo. O sindicalista acusa Curió de ter intermediado o contrato com a Phoenix visando a benefícios pessoais e reclama de falta de transparência nas negociações.

Esse contrato prevê a construção de três mil casas para os garimpeiros em Curionópolis, para aumentar o curral eleitoral do Curió diz Benigno, que foi esfaqueado dentro do sindicato em 2000, segundo ele, pelo "grupo de Curió".

O prefeito chama Benigno de mentiroso. Conta que, semana passada, reuniu-se em São Paulo com representantes da Phoenix, a convite do presidente da Coomigasp, Valdemar Falcão. Segundo ele, o contrato será refeito em valores menores porque, na ocasião de sua assinatura, acreditava-se que havia 200 toneladas de ouro na cava principal de Serra Pelada. Curió diz que tem em mãos pesquisa da Vale que fala em 36 toneladas.

- Em quatro a seis meses, a Phoenix vai atualizar a pesquisa da Vale para estipular o valor exato da indenização. Estou ajudando muito mais que o sindicato, que não tem nada que se meter com a administração do garimpo - diz Curió. (F.A.)

O Globo, 29/04/2007, O País, p. 8-10

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