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Faxina na casa, entrevista com Carlos Lopes

Isto E, Entrevista, p.7-11
04 de Ago de 2004

Entrevista: Carlos Lopes
Faxina na casa
O coordenador do PNUD no Brasil diz que veio para acabar com as irregularidades da agência da ONU, defende novas políticas de emprego e diz que ó País não deve copiar modelos de ação afirmativa
Cláudio Camargo, Gilberto Nascimento, Hélio Campos Mello e Kátia Mello
Em junho de 2003, Carlos Lopes foi designado pelo secretário-geral da ONU, Kofi Anan, para coordenar a sede brasileira do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), conhecido principalmente pela elaboração do índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que mede o grau de desenvolvimento dos países em termos de educação, expectativa de vida e renda per capita. Aos 44 anos, natural de Guiné-Bissau, Lopes diz que entre suas tarefas está a de fazer uma faxina na entidade, acusada de diversas irregularidades. Ele já conseguiu uma vitória: o presidente Lula acaba de assinar um decreto determinando que a União só poderá contratar profissionais da ONU em caso de absoluta necessidade técnica. A idéia é acabar com a farra das contratações e o desperdício de dinheiro público. Ex-diretor do Centro de Informação da ONU, da Unifem e do Programa de Alimentação, Lopes, Ph.D em história pela Universidade Paris-1, lecionou em algumas universidades e instituições, como o Grupo de Pesquisa e Estudos Tecnológicos de Paris (Gret). Com vasta experiência, ele promete novas parcerias para programas de desenvolvimento. Pela primeira vez, o PNUD, junto à organização Internacional de Trabalho (OIT) e à Prefeitura de São Paulo, desenvolve um programa para a geração de empregos. "Hoje o crescimento econômico não gera necessariamente empregos. O emprego é criado quando faz parte da política pública e não como conseqüência dela", afirma Lopes. O coordenador-residente do PNUD também diz que a entidade está realizando um estudo com prisioneiros brasileiros sobre a relação entre racismo e violência. "Pelos primeiros dados, já é possível dizer que há uma co-relação entre racismo e violência", diz.
Isto É - Tem havido divergências em relação ao índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil, calculado pelo PNUD. O último relatório indica que o País caiu do 65o- para a 72n lugar no ranking mundial. O que aconteceu?
Carlos Lopes - Esse índice é calculado com uma metodologia que nos é própria, constituída por estatísticas de saúde, renda e educação universalmente confiáveis. Nós, por exemplo, não utilizamos dados sobre a segurança pública fornecidos, digamos, pela polícia de Serra Leoa. Apenas nos valemos de dados com comparabilidade universal, como os da Unesco, Organização Mundial da Saúde e do Departamento de Estatísticas Demográficas da ONU. Normalmente, o que acontece no Brasil é que existem grandes solavancos nas estatísticas referentes à educação. Como a educação é um dos elementos mais ativos na elaboração do IDH, qualquer alteração nesse item pode fazer subir ou despencar o índice geral. E o que tem ocorrido no Brasil regularmente é que não há uma uniformidade no fornecimento de dados sobre a educação para a construção do IDH. O que aconteceu é que no ano passado foram utilizadas as estatísticas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2001, enquanto neste ano, 2004, foram utilizados dados do Censo de 2000.0 problema com c PNAD é que ele é parcial, porque normalmente exclui uma parte importante do País, do ponto de vista da educação, que É o Norte e o Nordeste. Então, os índice gerais melhoram um pouco. Já o censo tem uma abrangência universal, mas é uma fonte algo estática, porque só ocorre a cada dez anos. O ideal seria uma composição que tome em consideração o PNAD, o censo e as últimas amostragens especificamente relacionadas com a alfabetização e com o acesso à educação primária.
Isto É - O que explica o fato de o Brasil estar atrás de países como a Venezuela, que tem 70% da população abaixo da linha de pobreza?
Lopes - Primeiro, a escala, que faz com que o número de pobres absolutos no Brasil seja muito elevado. Assim, o problema da renda no Brasil fica mais visível do que em países como a Venezuela, onde a renda é relativamente elevada por causa do petróleo e, mesmo estando bastante concentrada, não tem aquela escala porque a demografia não é como no Brasil. Depois, é o problema da desigualdade, que é o fator mais importante. Visto em termos comparativos no mundo, o Brasil está em quinto lugar em termos de desigualdade, mas os quatro países que estão à frente são países muito pequenos, como a Namíbia, que, aliás, é o país mais desigual do mundo: tem um IDH para a elite que fala alemão que é superior à Noruega - número 1 no ranking -, e o resto da população está na 1502 ou 158' posição. Mas o Brasil, por causa da escala, tem uma desigualdade que perturba muito os outros dados, como educação, expectativa de vida e renda. Quando analisamos o Brasil em termos de Estados, verificamos que normalmente há alguma coisa a ver com a raça; isto é, nos Estados onde a composição racial tem menos presença de negros, por exemplo, Santa Catarina, o IDH sobe bastante, porque há menos desigualdade.
Isto É - O sr. diria, então, que o Brasil é um país racista?
Lopes - Eu diria que é um país discriminatório. Há uma diferença entre discriminação e racismo: racista é uma coisa mais ostensiva; discriminação é mais sutil. Pode-se fazer uma discriminação mais sutil, por exemplo, em termos de acesso ao emprego. Uma coisa que os brasileiros ficariam chocados se soubessem é que o número de anos de estudo dos negros desempregados é superior ao número de anos de estudos dos negros empregados. Ou seja: o negro tem mais chance de arranjar emprego se tiver menos escolaridade. O mais interessante é que essa concentração de renda no Brasil, em geral, com algumas exceções, tem aumentado ao longo dos anos, em vez de diminuir. Então, isso tem conseqüências evidentes na segurança pública, nos índices de violência. Estamos, aliás, fazendo este ano um relatório de desenvolvimento humano apenas para o Brasil, sobre a relação racismo e violência.
Isto É - Qual é a sua opinião sobre as políticas de ação afirmativas para os negros?
Lopes - Há algumas vantagens em se dar o que chamamos de "tratamento assimétrico" àqueles que são desigualmente tratados historicamente. Por que utilizamos a expressão "assimétrica" e não a expressão "ação afirmativa"? Porque ação afirmativa já tem uma conotação muito específica que tem a ver com a forma com que foi implantada em muitos países, como os EUA. E, muitas vezes, a forma consistia em classificar as pessoas num determinado padrão racial e identitário. Porque as pessoas têm muitas identidades; então, qualquer política pública, mesmo com a melhor das boas intenções, que empurra o cidadão para uma classificação, traz problemas a longo prazo. Muitas vezes as políticas de ação afirmativa querem aplacar a identidade do indivíduo. Por exemplo, um indivíduo tem que se reivindicar como negro para ter acesso a determinados privilégios dessa política. Isso não é correto. As pessoas têm direito de exprimir suas identidades da forma como a entenderem. Então, é preciso uma forma mais sofisticada de se fazer ação afirmativa. Seria trágico se o Brasil importasse apenas receitas de outros países.

Isto É - Como é esse estudo que o PNUD está fazendo sobre racismo e violência no Brasil?
Lopes - Estamos analisando o perfil dos presos. Normalmente, não há um registro de raça no Brasil. Mas há outras formas, por amostragem, de ver o que acontece. Estamos acompanhando a situação dos condenados e o perfil racial deles. Quando você comete um crime, é condenado e cumpre a pena, o que acontece se você é negro, pardo ou branco? São situações completamente diferentes. É possível, pelos primeiros relatórios, dizer que há uma co-relação entre racismo e certas características de violência. Estamos, como vocês dizem por aqui, descascando esse abacaxi. E existe uma motivação para isso. Quando a segurança pública se degrada, normalmente há um apelo à tolerância zero, à repressão. Então, é preciso entender se essa é a melhor política. Não vale a pena só dizer, demagogicamente, o que está errado. Temos que provar. Se a gente conseguir provar essa percepção que já existe entre violência e racismo, então já teremos provado uma grande questão. E nós costumamos dizer que o que se mede se muda. Sem medição, é muito difícil mudar.
Isto É - O sr. afirmou que o atual governo brasileiro foi o que mais aproximou o Brasil da África. Como o sr. vê as viagens do presidente Lula ao continente africano?
Lopes - A relação do Brasil com a África deve ser pautada por três grandes descobertas. Primeiro, a descoberta do pragmatismo, pois não vale a pena haver uma boa relação com a África, se ela não estiver pragmaticamente ancorada nas relações econômicas. Porque só boa vontade não funciona. Não sejamos populistas. Acredito que essa âncora é a África do Sul, que tem que ser o parceiro privilegiado nesse capítulo. A segunda descoberta é da auto-estima. O Brasil precisa conhecer melhor a África. E há duas medidas importantes para isso: uma é a introdução da África em todos os níveis de ensino. A outra são as próprias viagens presidenciais, porque elas têm um efeito educativo. Elas obrigam todo o País a discutir um pouco o porquê de o presidente Lula viajar aos países africanos. A terceira descoberta é a África contemporânea, moderna. Porque já chega de falarmos da África apenas relacionando-a às catástrofes e à miséria.
Isto É - Hoje, no mundo, temos cerca de 40 conflitos. No entanto, discutimos apenas aqueles em que os Estados Unidos ou outras grandes potências estão envolvidas. O sr. acredita que há um descaso em relação às outras guerras?
Lopes - Acredito que esse fenômeno é provocado pela mídia. Não é verdade que o Conselho de Segurança (CS) se preocupe apenas com o Oriente Médio, o Iraque e o Afeganistão. Basta ver a ata do CS: 60% das reuniões são sobre a África. Ou seja, também não é verdade que as potências não se preocupam com esses conflitos. Muitas vezes, elas não querem se engajar, mas se mostram preocupadas. O descaso é midiático, não necessariamente político. Evidentemente, em termos de recursos, é outra coisa. O que se gastou até hoje no Iraque, US$ 80 bilhões, é superior a toda ajuda internacional ao desenvolvimento que se gasta no mundo em um ano, US$ 55 bilhões. Evidentemente, há uma assimetria de gastos. Fala-se nos objetivos do milênio da ONU, que são baixar a pobreza, eliminar a fome, reduzir a mortalidade infantil e materna, combater a Aids. Segundo as estimativas de Kofi Annan, seriam precisos mais US$ 50 bilhões para sanarmos esses problemas. Então, se houve US$ 80 bilhões para fazer a guerra do Iraque, com um pouco de boa vontade política se resolveriam essas questões.
Isto É - O PNUD está participando de um trabalho na zona leste de São Paulo. Como é isso?
Lopes - Fomos solicitados pela Prefeitura de São Paulo para ajudar em um programa de geração de empregos na zona leste, a mais pobre da cidade. Para isso, tivemos que fazer um diagnóstico. Assinei com a prefeita Marta Suplicy uma espécie de assistência preparatória para fazer esse diagnóstico. Já estamos trabalhando com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) para um estudo maior sobre o emprego no Brasil. Parece que o emprego é uma conseqüência do crescimento, mas não é bem assim. Hoje em dia, em quase todos os países desenvolvidos, o desemprego é um problema estrutural. Eles crescem, têm desenvolvimento, mas os empregos não são gerados. Então, a geração de empregos é mais do que uma questão de crescimento. Porque agora, com a sociedade de conhecimento, produtividade e a globalização de determinados segmentos do trabalho, há uma crise estrutural do emprego que precisa ser analisada profundamente. Hoje, o emprego é criado quando faz parte da política pública de crescimento, e não como conseqüência dela.
Isto É - Existe alguma experiência nesse sentido que já tenha dado certo?
Lopes - Sim, existe. E vamos trazer especialistas. Inclusive, temos um estudo que chamamos de globalização e desenvolvimento sustentável, uma espécie de equipe conjunta do PNUD e da OIT, que vão participar destas atividades. Não existe uma proposta feita, mas o caminho a gente já sabe. O que cria mais emprego são empresas pequenas, alta intensidade de mão-de-obra. E, nos setores de ponta, fazer uma estrutura em que os criadores trabalhem em rede, em vez de se concentrar em um grande pólo de excelência. Normalmente o que se faz é criar " a cidade do saber", ou o "centro da tecnologia", mas isso não funciona. Temos que trabalhar em rede, como já fazem na Índia.
Isto É - Como o sr. vê a denúncia da revista Carta Capital, em que se acusam os projetos da ONU no Brasil de serem, na sua maioria, realizados com capital brasileiro, embora com a grife da ONU?
Lopes - Muitas daquelas coisas escritas são verdadeiras. Vim ao Brasil há um ano para realizar uma limpeza. Já não acontecem mais contratações de pessoas e abusos de consultores. Mas a utilização da verba do governo federal, isso é verdade. Essa modalidade, ao contrário do que diz Carta Capital, substituiu uma visão assistencialista e é aplicada em cerca de 60 países. É o governo federal que põe o dinheiro e, assim, a União tem muito mais controle do dinheiro das agências. Os governos federais controlam hoje de uma melhor forma os conselhos de administração das Nações Unidas. E deu tão certo essa política que está sendo expandida para outros países. Mas, quanto à limpeza, essa deve continuar. Houve muitas confusões na esfera jurídica. Estamos resolvendo passo a passo, com as limitações feitas por parte do Tribunal de Contas da União. Também resolvemos o problema da regulamentação da Agência Brasileira de Cooperação. Está mais claro que as agências só podem ser utilizadas em casos de alto conteúdo técnico. Na semana passada, o presidente Lula assinou um decreto que determina em que condições devem ser utilizadas as agências da ONU. Mas, para esse mal-estar passar de vez, precisamos acabar com os contratos de pessoa física. Já temos um prazo acordado com o governo, que deve ser até o final deste ano, para acertar essa situação. Para isso, os ministérios vão ter que criar novos postos, fazer concursos e recontratar essas pessoas. Existem três mil pessoas que ainda estão contratadas pelas agências da ONU. Há um ano, esse número era de nove mil. Estamos arrumando a casa.

Isto É, 04/08/2004, p. 7-11

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