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Falta de consenso impede a criação do Conselho de Defesa

FSP, Brasil, p. A4, A6
24 de Mai de 2008

Falta de consenso impede a criação do Conselho de Defesa
Presidentes sul-americanos criam a Unasul, nova organização do subcontinente
Colômbia e Venezuela apresentam restrições à proposta para novo órgão de defesa, defendido pelo ministro Nelson Jobim

Claudio Dantas Sequeira
Enviado especial a Brasília
Fernanda Odilla
Gustavo Patu
Da sucursal de Brasília

A falta de consenso sobre o papel que deverá ter o Conselho de Defesa da América do Sul impediu a assinatura de um acordo para a criação do órgão ontem, em Brasília. O impasse levou a presidente chilena, Michelle Bachelet, a sugerir que seja formado um grupo de trabalho no âmbito da Unasul (União das Nações Sul-americanas), criada ontem e que terá o Chile ocupando pela primeira vez a presidência rotativa.
"Num prazo de 90 dias vamos revisar a proposta de Lula, recolher as preocupações dos outros países e apresentar uma proposta definitiva", disse Bachelet. Mas os próximos três meses não deverão ser suficientes para garantir consenso.
O presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, condicionou sua adesão ao órgão de segurança a que todos os países da região reconheçam as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) como grupo terrorista. "Num país que tem sofrido tanto como a Colômbia, o continente deve atrever-se a qualificar como terrorista a todo grupo violento que atenta contra a democracia", disse. Uribe expôs ao presidente Lula o que chamou de "ponto de reflexão ao diálogo".
O adiamento foi um revés para o ministro da Defesa, Nelson Jobim, principal entusiasta do projeto e que esperava a aprovação imediata do acordo.
Segundo a Folha apurou, não foi apenas a negativa da Colômbia de se unir aos demais países que inviabilizou temporariamente o projeto. Enquanto o governo brasileiro prefere dar um status de foro político ao órgão, Venezuela e Bolívia defendem que o conselho tenha um papel operacional e amplo, abrangendo áreas como segurança energética e combate ao narcotráfico.
Para tanto, o presidente Hugo Chávez sugeriu a Lula que o futuro órgão tenha capacidade de ação regional e orçamento próprio. "Não queremos que seja uma Otan do Sul", disse à Folha o ministro da Defesa venezuelano, Gustavo Rangel.
Segundo ele, os países da região deveriam resolver seus problemas internamente, sem precisar recorrer a potências estrangeiras. "Por que teríamos que recorrer a um Plano Colômbia norte-americano, se pudéssemos fazer algo com nossos próprios meios?".
Uribe, Chávez e o presidente equatoriano, Rafael Correa, estão em conflito desde que militares colombianos invadiram o território do Equador, no início do ano, para eliminar o guerrilheiro Raúl Reyes, porta-voz das Farc. A crise piorou depois que o colombiano acusou os dois vizinhos de apoiarem a guerrilha.
O assessor do Planalto para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, considerou o debate um "pequeno passo", uma vez que "outros processos de integração regional até hoje não conseguiram resolver esse problema da defesa comum".
O ministro da Defesa venezuelano falou também do desacordo de Chávez com a atividade do Brasil na missão de paz no Haiti (Minustah). "A fase de garantia da segurança já está superada. É preciso mudar o perfil dessa missão, substituindo as ações de polícia por atividades sociais e desenvolvimento de projetos", afirmou.
Lula, por sua vez, não admite críticas à participação brasileira na operação de paz no Haiti e fez questão de ressaltar isso no discurso de abertura do evento. "Nossas Forças Armadas estão comprometidas com a construção da paz. A presença de muitos de nossos países na Minustah, forças da ONU que garantem a segurança no Haiti, é exemplo dessa determinação."

Lula tenta conter tensão diplomática na região

Da sucursal de Brasília

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumiu ontem o papel de pacificador para impedir que as tensões diplomáticas entre Colômbia, Venezuela e Equador dificultassem a assinatura do tratado de constituição da Unasul (União de Nações Sul-Americanas). Durante o discurso de abertura do encontro, em Brasília, Lula por três vezes fez referências à crise entre os países. Não citou nomes dos presidentes tampouco das nações, mas pregou a paz.
"Os contenciosos atuais, mesmo que revestidos de dramaticidade, são passageiros. Não devem se sobrepor [à união]", disse Lula. Ele afirmou ainda que "a instabilidade que alguns pretendem ver em nosso continente é sinal de vida, especialmente vida política". Para ele, "não há democracia sem povo nas ruas".
Antes do encontro, Lula tentou apaziguar a crise. Foi ao hotel onde todos os presidentes se hospedaram -exceto Álvaro Uribe (Colômbia). Num café da manhã com os presidentes do Equador, Rafael Correa, e da Venezuela, Hugo Chávez, Lula pediu para que as divergências não fossem a tônica da reunião.
Por unanimidade, os presidentes assinaram o acordo, mas Lula não conseguiu minimizar as divergências. Rafael Correa afirmou que não há perspectivas de retomada das relações diplomáticas com a Colômbia, rompida desde março, quando o Exército colombiano atacou acampamento das Farc em território equatoriano.
"É uma situação muito deplorável. É uma situação crítica, eu diria", disse Correa, que acusa o governo colombiano de fazer uma campanha midiática contra o Equador. Segundo ele, as relações só serão retomadas quando forem suspensas as acusações do país vizinho. Uribe disse estar disposto a dialogar sobre todos os temas.
Mas criticou Correa: "Essas reuniões são importantes para se dizer tudo e não para silenciar e, depois, falar à imprensa". Após o encontro, Lula ainda tentou amenizar as diferenças pregando soberania dos países da América do Sul: "O fato de termos assinado um tratado não vai obrigar nenhum país a abrir mão do estado nacional, de suas decisões específicas, dos acordos bilaterais. Queremos construir política de consenso que permita para fazermos aquilo que sozinhos não temos condições de fazê-lo". (FO)
Colaborou Cláudio Dantas Sequeira , enviado especial a Brasília

Latinas

No escurinho
Por três vezes faltou luz durante o encontro dos chefes de Estado, em Brasília. O primeiro apagão ocorreu no exato momento em que o presidente da Bolívia, Evo Morales, fazia seu discurso. No escurinho, teve gente que se lembrou da maior hidrelétrica do mundo e gritou "Itaipu!", alvo de polêmica entre o Brasil e o Paraguai. Fotógrafos escutaram o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, comentar, que a culpa era do presidente dos EUA. "Isso foi o Bush", disse, em tom jocoso.

Só elogios
Depois de conversar com Lula e avisar que não está disposto, por enquanto, a participar do Conselho de Defesa da América do Sul, o presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, era só elogios: "Lula é um homem reflexivo, que argumenta, dialético e muito inteligente". Lula vai ser o convidado de honra da festa da independência colombiana no dia 20 de julho, em Letícia. O carisma de Lula confunde Uribe: "O problema é que, quando sento com ele e quando acho que o estou convencendo, ele é que me convenceu".

Quem convida...
Para reunir os 11 presidentes da América do Sul, a FAB foi acionada para buscar e devolver os presidentes do Suriname, Runaldo Venetiann, e o do Peru, Alan García. Além dos gastos com as aeronaves e com o combustível, o governo brasileiro bancou as despesas de todos os chanceleres que participaram do encontro. A explicação para tamanha cortesia veio durante o discurso de abertura de Lula: "Mais que solidários, temos que ser generosos".

Galá
O presidente do Equador, Rafael Correa, arrancou suspiros durante o encontro da Unasul. Com 45 anos e porte atlético, Correa foi provocado por um repórter do CQC (programa humorístico da TV Bandeirantes). Questionado se toparia ser galã de novela brasileira, o presidente equatoriano não hesitou. Disse que teria o maior prazer protagonizar uma trama com as atrizes brasileiras.

Unasul deve agilizar integração dos países andinos ao Mercosul
Tratado assinado por 12 países da América do Sul confere personalidade jurídica internacional para o subcontinente
Em entrevista coletiva, Lula disse estar de "alma lavada" com a criação da Unasul; presidentes discutem a crise entre Equador e Colômbia

Do enviado especial a Brasília

A Unasul (União das Nações Sul-americanas) foi instituída formalmente ontem, em Brasília, com a assinatura do Tratado Constitutivo. O documento, assinado por 11 presidentes e um vice-presidente, confere personalidade jurídica internacional ao subcontinente.
Trocando em miúdos, a América do Sul ganha status de organização internacional, reconhecida na ONU (Organização das Nações Unidas) e capaz de negociar com outros países, blocos de países e instâncias multilaterais. Exemplo desse tipo de autoridade supraestatal é a União Européia. Em tese, a Unasul deverá auxiliar na convergência dos outros blocos já existentes no continente, o Mercosul e a Comunidade Andina, mas com estrutura independente e orçamento próprio.
Só que, enquanto o bloco europeu levou 50 anos para se constituir, o sul-americano queimou etapas e o fez em apenas quatro. O texto do tratado foi negociado por 16 meses entre representantes de todos os 12 governos sul-americanos.
O desafio é tirar do papel tantas boas intenções. Além de estabelecer as regras de funcionamento burocrático da Unasul, o tratado define metas para a integração em diferentes áreas: cooperação econômica e comercial; cadeias de produção; pesquisa e inovação; promoção da diversidade cultural; intercâmbio de informação e de experiências em matéria de defesa; e segurança pública.
Em discurso, Lula disse que "o tratado não é um fim em si mesmo". Segundo ele, é preciso avançar em projetos inovadores. "Queremos avançar rapidamente em áreas prioritárias, como integração financeira e energética, ferroviária e rodoviária, além da defesa", disse.

Atraso
Como anfitrião, Lula foi o primeiro a discursar, seguido pelo presidente boliviano, Evo Morales, e pela chilena Michelle Bachelet. Eles ressaltaram o ineditismo de estarem ali um indígena, um sindicalista e uma mulher, todos presidentes.
A cúpula foi realizada no Centro de Convenções Ulisses Guimarães. "Não poderia ser mais propício um lugar batizado com o nome do pai da nossa Constituição democrática", disse Lula. O evento começou com atraso de duas horas, por causa da demora no café da manhã entre Lula e os presidentes Rafael Correa (Equador) e Hugo Chávez (Venezuela). Com o atraso, o presidente peruano, Alán García, abandonou o local logo após assinar o tratado.
A única ausência entre os presidentes foi a do uruguaio Tabaré Vázquez, que enviou o vice Rodolfo Nin Novoa. Segundo a Folha apurou, Vázquez avisou que não iria com três semanas de antecedência, em parte por duvidar dos resultados concretos da reunião.
Após abertura da cúpula, os presidentes se reuniram a portas fechadas para discutir a crise entre Equador e Colômbia. Em entrevista coletiva, Lula disse estar de "alma lavada" com a criação da Unasul e a comparou à União Européia.
(CLAUDIO DANTAS SEQUEIRA)

Congressistas atacam decisão do Itamaraty

Do enviado especial a Brasília
Da sucursal de Brasília

A decisão do Itamaraty de garantir o funcionamento da Unasul sem aprovação legislativa irritou membros do Congresso Nacional. A medida foi considerada por muitos congressistas como um ato de arbitrariedade que pode comprometer o futuro do bloco regional.
"É um absurdo. Significa passar por cima do Congresso Nacional e do Congresso do Mercosul", disse o vice-presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, Eduardo Azeredo (PSDB-MG).
A Folha revelou ontem que o Itamaraty acrescentou no documento final da cúpula da Unasul uma espécie de "medida provisória" da integração.
O artigo permitirá que a Secretaria Geral da nova organização, com sede em Quito, funcione mesmo antes que os Legislativos dos países membros deliberem sobre o tema.
"Parece que a moda de medida provisória está pegando. Isso é uma diminuição do poder legislativo", alertou o presidente do Senado, Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN).
Segundo a Folha apurou, a medida foi uma resposta do chanceler Celso Amorim à demora do Congresso Nacional para aprovar acordos internacionais.
Questionado sobre a polêmica, o presidente Lula preferiu não responder.

O novo bloco

Integrantes
Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela

Órgãos
Conselho de Chefas e Chefes de Estado e de Governo; Conselho de Ministras e Ministros das Relações Exteriores; Conselho de Delegadas e Delegados; Secretaria Geral

Parlamento
Os países designaram uma comissão com o objetivo de elaborar um projeto de protocolo adicional que estabelecerá a composição, as atribuições e o funcionamento do Parlamento Sul-americano

Objetivos:
Fortalecimento do diálogo político entre os Estados para reforçar a integração sul-americana e a participação no cenário internacional

Integração energética para o aproveitamento integral, sustentável e solidário dos recursos da região
Desenvolvimento de uma infra-estrutura para a interconexão da região
Integração financeira mediante a adoção de mecanismos compatíveis com as políticas econômicas e fiscais dos Estados Membros
Consolidação de uma identidade sul-americana
Cooperação econômica e comercial para consolidar um processo inovador, dinâmico, transparente e equilibrado
Integração produtiva, com atenção às pequenas e médias empresas e cooperativas

entrevista

Órgão já nasce burocratizado, afirma Correa

Lucas Ferraz
Da sucursal de Brasília

Para o presidente do Equador, Rafael Correa, 45, a Unasul já nasce "burocratizada". "E temo que o mesmo aconteça com o Mercosul", disse à Folha antes de tomar café da manhã com os presidentes Lula, Hugo Chávez e Evo Morales. A Secretaria Geral da Unasul ficará na capital do Equador, Quito.

Folha - O ex-presidente do Equador Rodrigo Borja deixou a Secretaria Geral da Unasul reclamando de divergências. A Unasul nasce esvaziada?

Rafael Correa - Compartilho com a visão de Borja, [a Unasul] será um fórum a mais e podemos não solucionar a expectativa [de integração]. Os estatutos não recorrem às decisões dos presidentes de fazer uma integração rápida e efetiva. Com estrutura insuficiente, não vai funcionar. Ela nasce burocratizada. É preciso uma secretaria forte, com equipe permanente. [Sem isso], não vamos nos inteirar sobre o que se passa.

Folha - Como maior economia da região, o Brasil tem feito o seu papel pela integração?

Correa - O Brasil sempre teve atitude integracionista, mas temo que o Mercosul se burocratize. Talvez o maior inimigo da integração sul-americana seja a burocracia.

Folha - Para o senhor, o Equador é vítima do conflito interno colombiano. O relatório da Interpol [dizendo não ter havido alteração nos arquivos do computador encontrado com um líder das Farc] não invalida esse discurso?
Correa - De nenhuma maneira. O dilema é: acreditamos ou não nas Farc? Se Uribe acredita, temos que acreditar em tudo que dizem sobre ele. Para cada documentinho desse há 20 acusando Uribe. Se não o crê, como foi tão irresponsável por fazer tremendo escândalo e atirar tanta lama no ventilador? Entregamos todos os documentos à OEA, também aos sistemas de controle do Equador e à oposição, para que verifiquem e digam ao mundo se temos algo a ver com as Farc. Nossa única relação é humanitária. O resto é tramóia montada para tentar justificar o injustificável -a agressão a um país.

Folha - O sr. admite a hipótese de algum membro do governo ter usado seu nome para se reunir com as Farc?

Correa - Não posso dizer isso, mas lhe asseguro que durante a campanha, ou em toda minha vida, jamais tive relação com as Farc. Nem sequer conheço alguém das Farc. O governo jamais pretendeu ter relações políticas ou contatos, a não ser nas questões humanitárias, para a liberação de reféns.

Folha - As relações entre Equador e Colômbia estão rompidas desde março. Houve um ensaio de reaproximação no Grupo do Rio e só. Qual a condição para a retomada?

Correa - Um gesto de boa vontade. [A Colômbia] seguiu com uma campanha de desprestígio para desviar os problemas internos que tem, narcopolíticos e parapolíticos. Há uma estratégia deliberada de envolver [países] no conflito.

Folha - É viável a criação de um Conselho de Defesa?

Correa - Enquanto não desenvolvermos uma absoluta confiança mútua e nenhum país atacar mais o outro e desestabilizar a região, é necessário a criação de uma força real, coercitiva, que mantenha a estabilidade. O conselho é muito importante, pertinente e eu diria até urgente.

FSP, 24/05/2008, Brasil, p. A6

Chávez diz que "o império contra-ataca", mas que ele não teme o "tigre de papel"

Da sucursal de Brasília

"O império contra-ataca, como o filme", dizia Hugo Chávez, referindo-se ao episódio da série "Guerra nas Estrelas" em que as forças do mal se reorganizam para lutar contra os rebeldes vitoriosos do filme anterior.
"Hoje saiu derrotado aqui o império", prosseguiu, agora sobre a criação da Unasul e, obviamente, o império que produziu o filme, durante entrevista à TV estatal de seu país e à TV Educativa do Paraná, conduzida por Emir Sader, Fernando Morais e Carlos Alberto de Almeida.
Almeida perguntou se era coincidência a recriação da Quarta Frota dos EUA para atuar na América Latina. O contra-ataque do império, disse Chávez, está espalhado. São os protestos de ruralistas contra Cristina Kirchner, a oposição a Evo Morales, a morte de um líder das Farc, "assassinado enquanto dormia", no Equador. "O objetivo foi frear o processo de integração da Unasul", disse.
Mas o império, na frase de Mao Tsé-tung citada por ele, é um "tigre de papel": "Não te tememos". Ao final, a homenagem: "Soy loco por ti, América. Soy loco por ti, Brasil". "Ele foi brilhante", disse Almeida. (GUSTAVO PATU)

FSP, 24/05/2008, Brasil, p. A4, A6

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