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Falta baía no novo porto do Rio

Marcos Sá Corrêa - http://marcossacorrea.com.br
Autor: Marcos Sá Corrêa
01 de Nov de 2010

Começa em janeiro a reforma das reformas que destruíram o porto do Rio de Janeiro. Serão quatro quilômetros de túneis e viadutos, 650 mil metros de calçadas e, claro, 15 mil árvores, porque cidade nenhuma é feita só de cimento e ferro. A notícia, em si, é boa. Seria melhor se não trouxesse de volta a falta que faz nestas horas o geógrafo Elmo da Silva Amador.

A leucemia calou-o há quatro meses. Ele era de Santa Catarina. Mas foi no Rio de Janeiro que deixou as maiores pegadas de sua presença na terra - como a ação popular que evitou o loteamento da lagoa de Itaipu, em Niterói, ou a campanha que produziu o reconhecimento oficial da Baía de Guanabara, apesar de degradada, ou sobretudo por degradada, como Área de Preservação Permanente e de Relevante Interesse Ecológico.

Amador dedicou-lhe um livro raro, porque editado às custas do autor. Chama-se Baía de Guanabara e Ecossistenas Periféricos: Homem e Natureza. Há muitos anos, quem bota a mão num exemplar com esse título dificilmente o devolve sem antes copiar suas 539 páginas.

É o testamento de um radical, a começar pela dedicatória a "Guevara, Lamarca e Marighela". Não mede argumentos científicos ou históricos para mostrar que baía inaugurou sua desgraça no réveillon de 1502, quando passou por seus pórticos de granito a expedição de Duarte Coelho, abrindo um paraíso terrestre à ganância mercantil dos descoibridores. Desde então, perdeu 91 quilômetros quadrados de superfície para aterros, lançados em suas águas por sucessivos projetos de melhoramento urbano.

Eles conseguiram tomar quase 30% de seu tamanho original e praticamente toda a floresta de seu contorno. Restou uma paisagem desfigurada, onde só um olhar crítico e especializado, como foi o do geógrafo Elmo Amador, consegue levantar o rastro dos 257,9 quilômetros quadrados de manguezais ou 132 quilômetros quadrados de restingas, dos inumeráveis terraços marinhos e dunas, das 39 lagunas costeiras, 188 ilhas, 118 praias, 24 enseadas ou 50 rios e córregos que os europeus avistaram no século XVI.

Aquilo era, sem tirar nem por, "um édem". Mas, de tanto tirar e por, a cidade tornou tecnicamente possível o "desaparecimento físico da Baía de Guanabara", trocando seu berço inigualável pelo "amontoado de masas de concreto, prédios, ruas e avenidas" de uma metrópole como outra qualquer.

Esse bota-abaixo vem de longe. Data do momento em que os portugueses assentaram as primeiras pedras sobre "um morro verdejante repleto de árvores de grande porte", debruçado no mar por encostas a pino, cobertas de bromélias e orquídeas. Era o morro do Castelo, que nem existe mais. Suas pedras demolidas jazem hoje, entre outros aterros, sob os viadutos na zona portuária.

No quesito devastação, nenhuma administração supera o recorde do prefeito Francisco Pereira Passos, o padroeiro da febre de remodelamento que, entre outras façanhas ciclópicas, soterrou mais de 60 praias para retificar esse porto que agora, um século depois, pede revitalização urgente. De suas enseadas, falésias e gamboas sobraram só desenhos e pinturas da inglesa Maria Graham e outros letrados estrangeiros, que deram fama mundial à beleza cenográfica do Rio de Janeiro no século XIX. É muita natureza posta fora para pouco progresso.

E ainda não será dessa vez que os cariocas terão a chance de recuperar, pelo menos, a memória de tanta paisagem perdida. O projeto de reforma inclui dois museus. O Mar, de arte contemporânea. E o do Amanhã, com paineis desenhados pelo arquiteto Santiago Calatrava para abrir e fechar diante da baía como "asas de borboletas". Nada contra. Ou melhor, tudo a favor. Mas não estaria faltando na revitalização um museu para mostrar ao carioca quanto Rio de Janeiro ele perdeu bem ali? Ou o que falta é Elmo Amador?

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