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Fala do fim do mundo

Público- https://www.publico.pt
Autor: Alexandra Lucas Coelho
03 de Abr de 2016

1. Com o Brasil a abrir brechas, uma multidão de cariocas lotou uma sala de cinema. Aconteceu num sábado de manhã, no pino do Verão. Não se tratava, pois, de fugir a pensar (para isso tinham a praia), nem propriamente de pensar, e sim de experimentar outro pensamento, como diria Eduardo Viveiros de Castro, o antropólogo que apresentou o filme. Um mês depois, e já tendo passado pelos Óscares, O Abraço da Serpente, de Ciro Guerra, estreia em Portugal na próxima quinta-feira. Mas antes de tudo isto foi visto por índios que viajaram durante dias até à maloca onde seria a projecção. Maloca é a casa comunal amazônica, hoje desaparecida em muitos povos indígenas, tal como tantas línguas. O velho xamã do filme, por exemplo, é interpretado por um índio ocaina, língua que só tem 16 falantes. Mais do que um filme sobre a Amazônia, O Abraço da Serpente será um filme em que o fim do mundo fala do que tem visto. A floresta sabe que o apocalipse não é de agora. Os índios estão à nossa frente, não atrás.

2. O rio Vaupés nasce na Colômbia e vem encaracolando por aí abaixo até ao Brasil, onde, durante um bom bocado, recorta a própria fronteira. Mudando então de nome para Uaupés, continua a descer em caprichosas curvas, até desaguar no Rio Negro, pouco acima de São Gabriel da Cachoeira, o município mais indígena do Brasil. Só conheço este lado brasileiro da fronteira, mas creio que do lado de lá são as mesmas águas cheias de rápidos, de exímios canoeiros e múltiplas línguas. Várias etnias têm gente dos dois lados, sofreram a chegada de missionários, seringueiros, garimpeiros, uns querendo as almas, outros os corpos, trabalho forçado até à tortura, abuso de mulheres, tráfico de crianças, o inferno, por ciclos. É neste pedaço de Amazônia que se passa O Abraço da Serpente, sempre do lado colombiano, entre a bacia do Vaupés e as montanhas a noroeste, já perto da Venezuela.

3. Aqui chegou, em 1903, o etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg, cujos relatos de mitologia local foram o ponto de partida, por exemplo, para o lendário Macunaíma, de Mário de Andrade. Em plena II Guerra Mundial, um etnobotânico americano, Richard Evans Schultes, leu os livros de Koch-Grünberg e resolveu seguir-lhe os passos. Schultes também veio a ser influente, mas nos movimentos beat e pop dos anos 1950-60, pelo que revelou sobre plantas com propriedades alucinogénias, usadas pelos índios para fins curativos e religiosos, como o cacto mexicano peyote, o cipó amazônico yagé (mais conhecido do lado brasileiro por caapi ou ayahuasca), ou as folhas que potenciam o efeito do yagé, como a chacrona. Nascido décadas depois dos hippies, o colombiano Ciro Guerra foi ler o diário de viagem deste etnobotânico e achou a história para o filme que queria fazer. "Quando Schultes chega aos índios taurepán [onde Koch-Grünberg tinha estado 30 anos antes], eles não param de lhe falar no mito do surumbuku, o surumbuku isto, o surumbuku aquilo, até que Schultes percebe que o tal surumbuku era Koch-Grünberg", contou o realizador numa entrevista. "Tinham transformado Koch-Grünberg num mito. Não apenas isso, olhavam para Schultes e viam o surumbuku. Para eles, era o mesmo homem que Koch-Grünberg."

4. Uma história contada através de dois homens, como se a mesma alma os habitasse, pensou Ciro Guerra. Construiu então um argumento em que esses dois pesquisadores são conduzidos pelo mesmo xamã com um intervalo de trinta anos através da floresta, rios acima, em busca de uma planta sagrada, a yakruna. Para ficar mais livre, o filme inventa o nome da planta e imagina a sua árvore florida, tal como muda os nomes e factos relativos aos dois brancos, e funde elementos de várias etnias na imaginária etnia do xamã (a forma como ele sopra o pó da planta curativa nas narinas do forasteiro branco, por exemplo, lembra a yakoana, uma resina sagrada para os yanomami, que é inalada exactamente assim). Se quem interpreta esse xamã em velho é o tal índio ocaina (Antonio Bolivar), o xamã em novo também é um não-actor (Nilbio Torres), que não só nunca fizera cinema como jamais assistira a um filme. Índio ribeirinho, pai de vários filhos, rema todos os dias para os levar à escola, além de caçar, lavrar e pescar, e o corpo dele projecta tudo isso no ecrã, tão erecto quanto flexível e furtivo, autêntico totem da floresta, mineral, vegetal, animal.

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