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Ex-trabalhadores escravos processam governo federal

FSP, Brasil, p. A18
03 de Set de 2005

Cerca de 90 libertados cobram R$ 52 mil do governo de indenização; custo para os cofres públicos pode chegar a R$ 900 mi
Ex-trabalhadores escravos processam União

Elvira Lobato

Cerca de 90 trabalhadores rurais -que em maio de 2003 foram resgatados pelo Ministério do Trabalho da condição análoga à de escravos em Rondônia- entraram com ação judicial contra a União cobrando indenização de R$ 52 mil para cada um. É a primeira ação dessa natureza, o que pode obrigar o governo a gastar R$ 4,68 milhões, caso a Justiça dê ganho de causa a eles.
Se as 17 mil pessoas que oficialmente foram retiradas de locais onde estavam sendo submetidas à condição análoga de escravos ganhassem a mesma indenização, o governo teria de desembolsar quase R$ 900 milhões.
O advogado que representa os trabalhadores, Marcelo Azevedo Jorge, 33, de Maringá (PR), baseou o pedido na Lei 10.706, de julho de 2003, que autorizou a União a indenizar o lavrador José Pereira Ferreira por ter sido submetido a condição análoga à de escravo e sofrido lesões corporais na Fazenda Espírito Santo, localizada no sul do Pará.
A lei foi proposta pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, depois que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com sede em Washington (EUA), considerou que o Estado brasileiro tinha sido negligente no caso. O lavrador tinha 17 anos, quando, em setembro de 1989, foi baleado e atingido no olho direito, ao tentar escapar da fazenda.
São duas ações de resgatados do trabalho escravo contra a União, ambas com pedidos de indenização. A primeira, iniciada em junho, reúne cerca de 60 trabalhadores que foram retirados da Fazenda São Joaquim -sul de Rondônia-, em maio de 2003.
A segunda ação, iniciada em julho, reúne 31 lavradores resgatados da fazenda Tapyratynga (município de Corumbiara, sul de Rondônia), na mesma ocasião -maio de 2003- em que houve a operação na Fazenda São Joaquim.
Até o momento, o Ministério do Trabalho só tomou conhecimento da existência da segunda ação, que corre na 5ª Vara Federal de Brasília. Quarta-feira, a Advocacia-Geral da União enviou uma cópia da ação à Secretaria de Inspeção do Trabalho e pediu informações sobre o caso do agricultor José Pereira Ferreira, indenizado pela União em 2003, bem como sobre os processos relativos às fazendas Tapyratynga e São Joaquim, para sustentar a defesa da União.
Técnicos do Ministério do Trabalho responsáveis pelo combate ao trabalho escravo desconfiam que os lavradores tenham sido incentivados por fazendeiros a processar a União. Uma eventual condenação, alegam, desestimularia as ações de combate ao trabalho escravo, pois abriria caminho para uma avalanche de ações semelhantes.
Até o momento, pelos dados oficiais, 17 mil pessoas foram resgatadas pela fiscalização do Ministério do Trabalho por se encontrarem em condições análogas à de escravos. A CPT (Comissão Pastoral da Terra) estima que existam 25 mil trabalhadores nessa situação, em todo o país.
O advogado Marcelo Jorge nega que as ações contra a União tenham sido estimuladas por fazendeiros e diz que foi ele quem propôs aos lavradores entrarem com o pedido de indenização. Disse que localizou os trabalhadores a partir dos processos que o Ministério Público moveu contra os fazendeiros e que foi a Mato Grosso e Rondônia para encontrá-los.
Para o advogado, todos os que tenham sido resgatados pelo Ministério do Trabalho de condições análogas à de escravos poderiam pleitear indenização da União com base na lei 10.706/03, que permitiu o pagamento de R$ 52 mil ao lavrador José Pereira Ferreira, do Pará.
""Ao propor a lei, o governo federal admitiu sua culpa e responsabilidade pela ocorrência da escravidão no país, assim como admitiu expressamente que a vítima do delito tinha direito a uma indenização a ser paga pelo próprio governo federal", diz o advogado.
No entendimento dele, a lei não fez ressalva ou diferenciação que justifique o benefício apenas para aquele caso particular.
""O direito à indenização surgiu pelo simples fato de a vítima ter sido escravizada e ter sofrido lesões corporais.(...) Se todos são iguais perante a lei, todas as vítimas do delito de redução à condição análoga à de escravo, em qualquer de suas formas possíveis, têm direito também a indenização, à vista, de R$ 52 mil do governo federal ", deduz.
Como a causa atinge R$ 4,68 milhões, o advogado ficará com 20% do que os trabalhadores receberem se vencerem, fora o percentual de 10% a 20%, a ser estabelecido pelo juiz, que recairia sobre a União.
A ação repete todas as acusações feitas pela fiscalização e pelo Ministério Público do Trabalho que caracterizariam trabalho análogo ao de escravos nas duas fazendas, aliciamento da mão-de-obra por ""gatos", servidão por dívida, impossibilidade de os trabalhadores deixarem as fazendas, inexistência de água potável, alojamento precário etc.
Nos dois casos, os trabalhadores haviam sido contratados para desmatar a selva para formação de pastos para gado.

OUTRO LADO
Para o Ministério do Trabalho, ação é "esdrúxula"
Apanhado de surpresa pelo pedido de indenização dos trabalhadores rurais resgatados da fazenda Tapyratynga, em Rondônia, o coordenador do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho, Marcelo Campos, chamou a ação judicial de "esdrúxula".
No entendimento dele, o advogado Marcelo Jorge, que representa os trabalhadores, faz uma interpretação equivocada da Lei 10.706/03, ao considerar que ela respaldaria o pagamento de indenização, pela União, a todas as pessoas resgatadas pela ação fiscal de repressão ao trabalho escravo.
Segundo Campos, a lei, de julho de 2003, foi específica para o lavrador José Pereira Ferreira. "A lei foi elaborada em razão de um acordo internacional feito pelo Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, quando o governo reconheceu um caso específico de omissão do Estado. Ela não se aplica de modo algum a outros casos", afirmou.
A indenização a Pereira, diz o coordenador, resultou de uma representação que a CPT (Comissão Pastoral da Terra) de Xinguara, no Pará, e o Cejil (Centro pela Justiça e o Direito Internacional) fizeram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. À frente da iniciativa da CPT estava o advogado e frei Henri de Roziers.
Ontem, Marcelo Campos solicitou ao frei Roziers informações sobre o processo de indenização de José Pereira, para construção da defesa da União no processo movido agora pelos trabalhadores rurais.

FSP, 03/09/2005, Brasil, p. A18

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