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EX-fazendeiros viram sem-terra

CB, Brasil, p.10
28 de Dez de 2003

Donos de fazendas na área transformada em campo de instrução militar em Formosa (GO) passam dificuldades e afirmam que foram obrigados a deixar local. Muitos sequer receberam indenização
Ex fazendeiros viram sem-terra
Lúcio Vaz
Do Estado de Minas
Os ex-proprietários dos 104 mil hectares desapropriados pela União e transformados em campo de instrução do Exército, em Formosa (GO), estão empobrecidos ou vivem na miséria, na periferia da cidade. Viraram sem-terra. Alguns nem receberam indenização. 0 valor total pago aos 414 fazendeiros foi de Cr$ 16 milhões (dezesseis milhões de cruzeiros) em 1973 –o equivalente a cerca de R$ 29 milhões hoje. 0 valor de mercado do campo, considerando só a terra nua, está em R$ 350 milhões. A maior fazenda, a Bom Sucesso, de 15 mil hectares, desapropriada por pouco mais de Cr$ 1 milhão - cerca de R$ 2 milhões hoje -valeria aproximadamente R$ 50 milhões.
0 Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que fez a desapropriação em 1973, agora pediu ao Exército a concessão de 4 mil hectares do campo de instrução para assentar trabalhadores sem-terra. O Exército negou o pedido, mas arrenda 16 mil hectares para a criação de gado, como revelou reportagem publicada no Correio Braziliense e no Estado de Minas no dia 17 deste mês. 0 arrendamento tem valor simbólico, muito abaixo do preço de mercado.
A reportagem localizou em Formosa alguns dos ex-proprietários do campo do Exército. Um dos donos da fazenda Bom Sucesso, Washington Alvarenga, de 77 anos, dividiu o valor da indenização com a mãe e oito irmãos. Ficou com Cr$ 123 mil (R$ 223 mil hoje). 0 dinheiro foi usado na construção de uma casa que custou Cr$ 345 mil na época. Mas ele relata casos mais dramáticos: `Aquilo não foi vendido, foi tomado do povo. Naquela época, morreu muita gente de desgosto. Alguns não receberam até hoje. Foi uma época difícil. Estávamos sob o regime militar, e você sabe muito bem o que eles faziam naquela época".
Filiado ao MDB, Alvarenga foi vereador por 16 anos e vice-prefeito de Formosa entre 1972 e 1976. Chegou com o pai no município aos 13 anos, vindo de Campo Belo (MG). Viu a fazenda ser formada. Criavam cerca de 600 cabeças de gado e plantavam arroz, feijão, milho. Um engenho de cana produzia açúcar. Além da família, trabalham nas terras cerca de 30 agregados - ou meeiros - que pagavam o arrendamento com parte da sua produção. Da fazenda, restou uma pintura em óleo sobre tela. Fala com emoção da casa grande, dos galpões, do pomar e dos currais que foram destruídos.
"Saí com as botinas"
João Dias Morais, de 65 anos, vive na periferia de Formosa. Vende cavalos velhos para um frigorífico. A renda não passa de R$ 250 por mês. Ele tinha 312 hectares nas margens do rio Preto. Criava porco e plantava culturas de subsistência, além de abacaxi e laranja. Segundo ele, a desocupação foi rápida. "Eles apareciam na fazenda fardados, em carros do Exército, e avisavam: "Tem que desocupar, se não vamos fazer o despejo." Saí sem direito a nada, só com as botinas." Afirma que o dinheiro oferecido, Cr$ 80 mil (R$ 145 mil hoje), daria para comprar apenas um lote na cidade. "Eu disse para eles: "Quando vocês pagarem o que vale, eu recebo". Mas não recebi nada até hoje."
As lembranças da fazenda Água Clara incomodam Alírio Machado de Amorim, de 77 anos, que hoje vive numa pequena casa no bairro Formosinha. Ele criava 300 cabeças de gado, engordava porcos, mantinha vacas de leite e plantava milho, arroz e feijão. "Eu tinha renda boa. Dava para viver tranquilo." Recebeu Cr$ 89 mil (cerca de R$ 160 mil hoje) e comprou outras terras, mas acabou perdendo tudo. A filha Ana Rita, professora, conta que o Exército deu prazo de 30 dias para a família deixar a fazenda.
Caminho inverso
Provas de que as terras são lucrativas não faltam. 0 fazendeiro José Carlos Wagner, de 45 anos, fez o caminho inverso dos ex-donos de terra de Formosa. Ele chegou ao Distrito Federal com a família em 1978, vindo de Ijuí (RS). Hoje, Wagner tem 612 hectares ao lado do campo de instrução. Fatura R$ 1,2 milhão por ano. Só a sua colheitadeira custou R$ 400 mil. Se não tivesse ocorrido a desapropriação, ele seria vizinho do ex-fazendeiro João Dias Morais, que hoje vende cavalos velhos e tem renda mensal de R$ 240.
Em 1988, o advogado Ivan Ornelas reuniu cem proprietários que se consideravam prejudicados pela desapropriação em Formosa. Afirma que foi processado "por ofensas às Forças Armadas". Segundo o seu relato, foi julgado e absolvido pelo Superior Tribunal Militar, mas os proprietários desistiram da ação. "Ficaram com medo." Hoje deputado estadual por Goiás, líder do PT na Assembléia Legislativa, pretende retomar o caso.

"Choro tem fundamento"
0 chefe do Centro de Comunicação Social do Exército (Cecomsex), general de divisão Heleno Ribeiro Pereira, afirmou que o valor das indenizações feitas em 1973 foi baixo porque "o valor da terra era muito pequeno naquela época. Acredito que o choro deles (ex-proprietários) tem fundamento." 0 general defendeu a manutenção integral do campo de instrução e destacou o trabalho de preservação ambiental feito pelo Exército.
Em nota enviada pelo Cecomsex, o Exército procurou esclarecer alguns aspectos da reportagem sobre o Campo de Instrução de Formosa (CIF) publicada no dia 17 deste mês. Segundo a nota, "a afirmativa da reportagem de que o Exército apresentou ao Incra uma informação falsa tangenciou a leviandade. Além de não conhecer o assunto, Vossa Senhoria não levou em conta a assessoria recebida nos inúmeros contatos realizados com este centro e também quando visitou o Campo de Instrução de Formosa, acompanhado por um especialista da Força."
"As áreas de impacto, como o próprio nome define, são locais previstos como alvos dos exercícios de tiro. No entanto, os diferentes projéteis, que descrevem trajetórias tensas ou curvas, conforme o armamento utilizado, exigem posições de tiro adequadas e áreas livres de obstáculos. São indispensáveis, ainda, medidas severas de segurança."
A reportagem sustenta que o Exército apresentou informação falsa do Incra, porque as posições de tiro dos foguetes Astros não estão localizadas na área de 4 mil hectares solicitada para assentamentos. Além disso, a área pedida pelo Incra está separada do restante do campo pela estrada estadual GO-346.
O Cecomsex acrescentou que o CIF atende às unidades do Comando Militar do Planalto, além de tropas oriundas de todo o país, como a Escola de Comando do Estado Maior do Exército, a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, a Academia Militar das Agulhas Negras e a Brigada de Infantaria Para-Quedista. (LV)

CB, 28/12/2003, p. 10

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