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EUA mudarão política de clima, diz Gore

FSP, Ciência, p. A17
Autor: GORE, Al
18 de Out de 2006

EUA mudarão política de clima, diz Gore
Ex-vice americano admite que teria tido problemas para ratificar o acordo de Kyoto se tivesse vencido Bush em 2000
Político, que esteve em SP promovendo livro e filme sobre aquecimento global, diz que substituir petróleo é "prioridade da civilização"

Claudio Angelo
Editor de ciência

Político convertido em ambientalista convertido em estrela de cinema, Albert Gore Jr., 58, ex-vice-presidente (democrata) dos EUA, admitiu ontem em São Paulo que teria tido problemas para ratificar o Protocolo de Kyoto caso tivesse ganho a Casa Branca em 2000.

O acordo internacional contra o efeito estufa vinha sendo mantido em banho-maria pela administração Clinton, com resistência do Senado, e foi rejeitado de vez por George W. Bush em 2001, levantando o planeta contra os Estados Unidos.

"A verdade é que teria sido difícil para mim ou para qualquer presidente", disse Gore. "Mas os EUA estão começando a mudar. Qualquer que seja o partido eleito em 2008, os EUA terão uma nova política."

O americano esteve no Brasil para participar de um evento na Câmara Americana de Comércio e promover o livro "Uma Verdade Inconveniente", cujo filme homônimo, sobre o efeito estufa, está causando furor em seu país. Leia abaixo a entrevista concedida por Gore à Folha.

Folha - O mundo todo se reúne no mês que vem em Nairóbi para debater uma extensão do Protocolo de Kyoto. O sr. acha que nós ainda deveríamos perseguir um tratado global contra o efeito estufa, sendo que Kyoto se mostrou pouco eficaz e as emissões subiram?

Al Gore - Acho que o Protocolo de Kyoto teve, sim, um efeito positivo. Não foi mais positivo porque os EUA não se juntaram ao tratado. Quando se juntarem, vai haver um mercado fechado para emissões de carbono. Há muitos aspectos da solução para a crise climática que só podem ser atacados por um tratado global. As negociações em Nairóbi acontecerão numa época em que os EUA ainda estão recuados. Mas eu tenho boa notícias: os EUA em breve mudarão dramaticamente. Qualquer que seja o partido eleito em 2008, os EUA terão uma nova política. Nosso maior Estado, a Califórnia, já abraçou Kyoto. Trezentas e dezenove cidades americanas já abraçaram Kyoto. Muitos líderes conservadores e religiosos se separaram do presidente Bush nessa questão, e nós agora estamos às vésperas de uma grande mudança na política americana.

Folha - O sr. acha que a inclinação dos republicanos à "esquerda" no tema clima foi uma conseqüência acidental da administração Bush?

Gore - Bem, se aconteceu, certamente foi acidental! (Risos) Em política sempre há um pêndulo balançando da esquerda para a direita, e sempre que as pessoas percebem que o pêndulo foi longe demais para a direita elas o puxam de volta. E eu acho que muitos republicanos estão sentindo esse puxão.

Folha - Em 1998, a administração Clinton-Gore assinou o acordo de Kyoto, mas nunca conseguiu fazer o Senado ratificá-lo. Caso o sr. tivesse ganho a Casa Branca em 2000, os EUA teriam ratificado Kyoto?

Gore - Eu gosto de pensar que, ao eleger o tema a prioridade máxima, eu teria persuadido o Senado a ratificar. Mas a verdade é que teria sido difícil para mim ou para qualquer presidente, numa época em que a imprensa ainda dizia em metade de suas reportagens que o problema poderia nem ser real.

Folha - A ministra Marina Silva apresentou hoje ao sr. a proposta brasileira de um fundo voluntário para combater as emissões do desmatamento tropical. O sr. apóia?

Gore - Acho que a proposta é muito imaginativa e interessante. Prometi a ela que iria estudá-la com cuidado e dar a ela uma resposta sobre se a proposta conseguiria ou não apoio nos países industrializados.

Folha - Por que foi preciso um político para comunicar uma mensagem que os ambientalistas tentam comunicar há mais de duas décadas? O ambientalismo falhou aqui?

Gore - Não. Acho que eles tinham um papel diferente. Não poderia se esperar de nenhum dos ambientalistas comunicar esse assunto num nível global. Mesmo assim, alguns deles o fizeram, e com eficácia.

Folha - O sr. já foi chamado para testemunhar no Senado Americano, como foi o escritor Michael Crichton [cujo romance "Estado de Medo" nega o aquecimento global]?

Gore - Não. Michael Crichton... (pausa) O "conselheiro" de Bush. A única coisa que é preciso saber sobre Michael é que ele é um escritor de ficção científica. Seu último livro é sobre conferencistas homicidas. Assunto até agora não-reconhecido como crise (sorri).

Folha - O que é preciso para acelerar a transição para fora dos combustíveis fósseis?

Gore - A Idade da Pedra não acabou por falta de pedras. E a Era do Petróleo não vai acabar por falta de petróleo. Acabará quando nós decidimos mudar para algo melhor, mais eficiente, mais lucrativo, mais limpo e mais sustentável. E isso é conservação de energia, energia solar, eólica e tudo o que está sendo desenvolvido. A escolha não é deles, é nossa. E os EUA deveriam seguir o exemplo do Brasil e desenvolver o etanol.

Folha - Não estamos empurrando rápido demais o andor do etanol? Ele produziu um desastre ambiental na mata atlântica...

Gore - A mata atlântica foi destruída muito antes do programa do álcool. Mas é verdade que houve conseqüências, como é verdade também que novas pesquisas apontam uma promessa do etanol de celulose, que não tem o mesmo impacto. De qualquer modo a crise que devemos administrar é a climática. Substituir os combustíveis fósseis deve ser a prioridade máxima da civilização.

Folha - Como o sr. vê a cena eleitoral de 2008 nos EUA. Quem será o candidato liberal? Schwarzenegger?

Gore - (risos) É cedo para dizer. Alguns americanos gostariam que ele não fosse inelegível [por ser nascido na Áustria].Uma das razões para sua popularidade é que ele, mesmo sendo republicano, está atacando o efeito estufa. Isso me dá esperança de que outros republicanos façam o mesmo.

Folha - O sr. tem conversado com Schwarzenegger sobre o assunto?

Gore - Sim. Arnold viu meu filme em junho, e disse: (imita o sotaque do governador) "Acho que vou me livrar do meu Hummer" [picape]. Depois comentou o impacto que o filme tivera sobre ele.

Folha - E ele vendeu o Hummer?

Gore - Acho que sim!

Filme cumpre, com brilho, sua tarefa inglória

Da redação

No final do documentário "Uma Verdade Inconveniente", que estréia no próximo dia 2, Albert Gore Jr. faz um apelo: "Peça às pessoas que você conhece para verem este filme". Retransmito o recado: veja esse filme.

Não é só pelas imagens espetaculares de geleiras derretendo que o ex-futuro presidente dos EUA conquista o público. É sobretudo pela maneira com que traduz uma pedreira de informação técnica para lá de complexa.
A clareza devastadora talvez seja fruto de sua experiência como político. Talvez fruto de três décadas de conhecimento acumulado. Fato é que "Uma Verdade Inconveniente" é provavelmente a aula mais didática de mudança climática que já chegou à massa.

A missão de Gore parece impossível. No filme ele aparece o tempo todo viajando de cidade em cidade, ou compilando informações em laptop para a apresentação de slides sobre o aquecimento global que já fez "mais de mil vezes" após ter perdido, no tapetão, as eleições presidenciais de 2000 para você-sabe-quem.

Explicar para o público o registro climático obtido nos testemunhos de gelo da Antártida nos últimos 650 mil anos é uma tarefa monstruosa. Gore resolve o problema no melhor estilo "showman": projeta numa tela de mais de cinco metros um gráfico com todas as concentrações de gás carbônico (o maior vilão do efeito estufa) medidas no gelo antártico.
Depois, sobe num elevador para mostrar onde os níveis de CO2 vão bater em 2050 por conta da sede de petróleo da humanidade. "Fora da curva é isso aí", sorri. A platéia vai ao delírio.

É claro que nem tudo no filme são pontos altos. O documentário é claramente eleitoreiro. Há todo aquele apelo emocional de paladino da Verdade combatendo o monstro corporativo (convém lembrar que o neoliberalismo foi inventado na administração Clinton-Gore). E há cenas autobiográficas, recheadas com aquele pianinho irritante. Desconte-se tudo isso pela necessidade de "Uma Verdade Inconveniente" de falar ao coração do americano médio.

Gore provavelmente não vai mudar o mundo, nem zerar as emissões dos EUA, evitar o caos climático ao qual a Terra já está condenada -mesmo se nesta manhã todas as emissões de gases-estufa acabassem, a Terra ainda esquentaria pelo menos mais um grau até 2100. Mas seu filme conseguiu um tento que o movimento ambientalista passou duas décadas tentando obter, em vão. Gore ligou os pontos. Cabe agora a seus espectadores desligar o motor.
(CA)

FSP, 18/10/2006, Ciência, p. A17

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