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A estréia fonográfica dos índios dos ticuna

A Crítica, Bem viver, p. BV1
12 de Mar de 2005

A estréia fonográfica dos índios dos ticuna

Loredana Kotinski
Da equipe de A Crítica

Pela primeira vez, índios da etnia ticuna se aventuram no mercado fonográfico. Dentro de um mês será lançado o CD "Cantigas Tikunas - Wotchimaucü", uma produção independente com mil cópias de tiragem e 12 músicas gravadas ao vivo. Todas de autoria dos ticuna, com letras que fazem alusão à preservação da natureza e da cultura indígena. E interpretadas por um grupo de 11 vozes acompanhadas de dois tambores, pau-de-chuva, maracás, havaí e violão.
0 disco, que tem o patrocínio do Banco da Amazônia, foi produzido por Celdo Braga e Eliberto Barroncas e gravado no studio 301, em Manaus, em dezembro de 2004. Entre a preparação do grupo e as gravações foram gastos dez dias. Pouco, diante do tempo que os ticunas levaram acalentando o sonho de gravar suas cantigas. Algumas canções estão escritas há mais de dez anos, como a "Nosso Deus" - "Jo'i" no idioma ticuna" - que foi composta por professores índios.
"Agente sempre teve vontade de gravaras músicas do nosso povo, mas não sabia como. Até que deu certo", revela Domingos Florentino, 36, líder da comunidade ticuna em Manaus. Ele próprio compôs três das canções que estão no CD: "Canto da nossa terra", "Cântico da floresta" e "Despedida". E tem outras 11 guardadas para,. quem sabe, um próximo disco. Apesar de ter apenas o primeiro grau completo e nunca ter estudado música, o índio aprendeu a compor de forma empírica, num conhecimento passado de pai para filho na sua tribo.
Talvez por isso, todas as cantigas incluídas no CD sejam uma exaltação à natureza, aos animais e narrem rituais e coisas do dia-a-dia dos indígenas. Como "0 canto da sorva", de autoria do professor ticuna . Adelmo Fernandes, que fala de uma fruta doce de caroço que se assemelha a uma goma de mascar. "Ela é conhecida como o chiclete do índio, comenta o violonista do grupo, o índio Deniziu.
Entre as mais fortes do disco está a de menor título: "É bom", de Aldenor Félix. A música diz que "É bom ouvir vocês cantarem/ As nossas diferentes músicas rituais/ Memorizando e valorizando/ Assim podem permanecer para sempre na memória". Todas elas seguem o padrão tradicional de não ter refrão, mas serem repetidas por inteiro mais de duas vezes pelos índios. "A gente canta para celebrar, mas sempre contando uma história do nosso povo", salienta Domingos.
0 CD é um registro de muito boa qualidade, e mesmo tendo sido gravados todos os instrumentos juntos, o som dos maracás e do havaí são nítidos. E o canto que ecoa dos índios, meio como um grito de ,alerta, é forte: um misto de lamento e celebração capaz de emocionar.

Grupo afinado e espontâneo
Um dos produtores do disco, o cantor e compositor Celdo Braga, disse que o trabalho com os índios ticuna foi surpreendente. "Nunca gravei um CD inteiro, com 12 músicas, como fiz com o grupo ticuna. Eles são muito afinados e espontâneos e isso facilita", explica. Ele conta que entrou no projeto a convite de Domingos Florentino, no ano passado. Animou-se com a idéia e produziu o disco com o seu irmão, Eliberto Barroncas.
Na opinião dele, o registro da cultura por meio da música é o mais importante desse trabalho. 0 cantor - que também é líder de um grupo regional, o Raízes Caboclas - disse que encontrou um grupo pronto, que já sabia tocaros instrumentos musicais e éra afinadíssimo. A ele coube a organização dos arranjos e a escolha da capa do CD. "Como eles têm um jeito próprio de cantar e tocar, a gravação não .é feita como de costume, instrumento por instrumento. É ao vivo e tudo junto", diz Celdo.
Mas ao que parece, o Raízes Caboclas teve uma participação maior no projeto dos ticuna. As roupas usadas pela maior parte do grupo que faz parte do CD é semelhante as que usam os integrantes do Raízes: de algodão cru, com pinturas étnicas. "Acho que o Raízes Caboclas possa ter influenciado um pouco eles nessa parte estética, mas na música não. Pois eles sabem tradicionalmente como compor e cantar."
0 grupo ticuna de Manaus recebeu aulas sim, mas de outra pessoa: a índia ticuna Rosa Dica Ponciano, 60. Foi ela que passou as cantigas da etnia e relembrou aos índios que vivem na cidade o ritmo das cantigas ticunas. Vestida de tururi - casca de árvore - com penas de arara, mutum, garça maguari e papagaio, ela é a figura central do grupo e recebe o respeito de todos. "Minha avó cantava e todo ticuna sabe cantar porque tem festa na nossa aldeia, a do ritual da Moça Nova, e todo mundo tem que dançar e cantar", conta.
Instrumentos
Os instrumentos do grupo ticuna foram fabricados na aldeia Filadélfia. E foram feitos de cedro, coro de porco e sementes.

LISTA
As músicas do CD
1 - "Nosso Deus" 2 - "Canto da Jaçanã" 3 - "Canto ritual da moça nova" 4 - "0 canto da sorva" 5 - "Somos Tikuna" 6 - "Com que fruta eu posso te pegar" 7 - "Canto da nossa terra" 8 -"Canto da flor desabrochada" 9 - "É bom" 10 - "Pássaro azulão" 11 - "Cântico da floresta" 12 - "Despedida"

COMUNIDADE
A comunidade ticuna no bairro Cidade de Deus, Zona Leste de Manaus, reúne 72 índios distribuídos em 12 famílias. Destes, somente quatro possuem empregos formais, como auxiliar de serviços gerais, vigia e gari. Além deles, oito mulheres trabalham produzindo artesanato com materiais naturais, originários da aldeia Umariaçú, no Município de Bem

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Artemis Cruz Índia Tikuna
"Eu me orgulho muito de ser índia e cantar. Porque eu conheço muita gente civilizada que não sabe fazer nada. E eu não estudo, mas sei fazer colar, rede e bolsa." A índia ticuna, que há 12 anos vive em Manaus, no bairro Cidade de Deus, fez parte do grupo que gravou o CD "Cantigas Tikunas". E fez questão de ressaltara importância do trabalho musical para a auto-estima do seu povo: "Ainda tem gente que fala que nós somos índios e só. Mas não é só, é muito. Porque a gente gosta de ser índio, gosta da nossa cultura."

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O significado do título do CD
"Wotchimaucü" significa havaí, no idioma ticuna e é o nome de uma semente usada como instrumento de percussão. Foi escolhido para o título do CD em homenagem ao fundador da comunidade ticuna em Manaus, o índio Reginaldo Marcolino, 45.

A Crítica, 12/03/2005, p. BV1

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