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Estratégias pobres para lidar com a pobreza

OESP, Economia, p. B5
Autor: TOFFLER, Alvin; TOFFLER, Heidi
15 de Fev de 2004

Estratégias pobres para lidar com a pobreza

ALVIN e HEIDI TOFFLER

A pobreza é, supostamente, inimiga de todos. Hoje em dia, virtualmente todos os governos do mundo alegam que estão tentando eliminar a pobreza, seja em âmbito doméstico seja ao redor do planeta, ou ambos. E não apenas governos. Milhares de ONGs arrecadam dinheiro para salvar crianças famintas, purificar o suprimento de água em vilarejos, levar assistência médica ao campo, prover microfinanciamentos e ajudar os pobres de todas as maneiras concebíveis. Conscienciosas resoluções contra a pobreza emitidas pela ONU, Banco Mundial, FMI, Organização de Alimentos e Agricultura e outros órgãos são encarregadas, ao menos em parte, de combater a pobreza. E os adjetivos aplicados à pobreza global vão do meramente "de partir o coração" a "infame", "trágica", "vergonhosa", "escandalosa", "estarrecedora", "chocante", "execrável" e "indesculpável".
Entre 1950 e 2000, mais de US$ 1 trilhão fluiu do mundo rico para o pobre na forma de "ajuda" ou "assistência ao desenvolvimento". Milhares de reuniões e conferências foram dedicadas ao problema. No decorrer dessas décadas, dezenas, se não centenas, de milhares de especialistas viajaram para as regiões remotas para proporcionar assistência técnica e uma enorme e multibilionária "indústria da ajuda" cresceu em torno da redução da pobreza global. Mesmo assim, quase 2,7 bilhões de seres humanos - cerca da metade da população humana do planeta - ainda vive com o equivalente a US$ 2,00 ao dia, ou menos.
O que é verdadeiramente surpreendente em relação a isso - fora o fracasso em eliminar a pobreza global, após um século de tentativas - é o incrível sucesso que esses números revelam - uma vez que os olhemos de modo inverso.
Imagine que somos cidadãos do século 17 e nos oferecem uma passagem para uma viagem no tempo, para o século 21. O que poderá nos deixar estarrecidos na chegada não é como a raça humana é pobre, mas como se tornou inacreditavelmente rica - tão materialmente rica, na realidade, que 3,6 bilhões de pessoas vivem acima da linha da pobreza! Isso teria sido inimaginável há 350 anos, no alvorecer da era industrial, quando a população mundial total era 12 vezes menor do que é hoje e quando quase todo mundo era miseravelmente pobre. Segundo o historiador Fermand Braudel, naquela época, na região de Beauvais, na França, anualmente morria um terço das crianças. E cerca de 60% atingiam a idade de 15 anos.
Em 1688, o marquês de Vauban estimou que a população francesa era dividida entre 10% de ricos, 50% de muito pobres e 40% de mendigos ou quase mendigos.
Isso não era apenas na França. Durante 10 mil anos, somente uma pequena fração da população mundial conseguiu viver acima da linha de pobreza.
Se a raça humana conseguiu acabar com a penúria quase universal e fazer isso tão rapidamente - porque três séculos e meio são um mero átimo de tempo comparados com os milênios que se passaram desde que nós engatinhamos dos primórdios - por que não temos conseguido concluir a tarefa de eliminar a pobreza global? Certamente não é por falta de metas e planos, declarações e manifestos. Poderia ser porque realmente não queremos isso? Ou será que um mundo sem pobreza é assustador para os que querem manter o atual equilíbrio de poder global ou regional? Ou para os ambientalistas, que execram o consumismo e se preocupam que o progresso material necessariamente ameace a sustentação ecológica? Ou para grupos religiosos, que execram a pobreza, mas consideram a concentração no materialismo como uma ameaça à fé? Ou para a própria "indústria da redução da pobreza", cujo mercado secaria se houvesse menos pobreza a ser reduzida - um destino não diferente da indústria farmacêutica se não houvesse mais doenças? Para alguns, a pergunta não é por que não vencemos a guerra contra a pobreza, mas sim quem é o culpado? Aqui encontramos a usual lista de supostos vilões: multinacionais, trilateralistas, capitalismo de compadres, todos os capitalistas, banqueiros privados, imperialistas, os homens de Davos, superpopulação, a pensão dos idosos, políticos corruptos e assim por diante.
Nada aqui tem a intenção de minimizar a pobreza absoluta no mundo - o tipo na qual, mesmo hoje, morrem anualmente mais de 10 mil crianças pequenas nos países pobres, na qual famílias inteiras, geração após geração, catam lixo nos aterros sanitários para sobrevivência, na qual a água é perigosamente insalubre e os médicos são indisponíveis. É o tipo sobre a qual pairam a fome e a doença e a morte chega cedo.
Mas talvez tenha chegado a hora de deixar de lado tanto o ceticismo como o sentimentalismo - juntamente com pressuposições obsoletas sobre as quais muitas das teorias econômicas se baseiam. Vivemos num mundo novo, mudando mais rapidamente do que nunca, e muitas das normas de "desenvolvimento" da era industrial não mais se aplicam - se elas alguma vez tiraram vidas da miséria material, precisamos entender o impacto que o sistema de criação da riqueza baseado no conhecimento está tendo - e terá - nos pobres remanescentes do mundo.
Isso vai bem além da questão da exclusão digital. Quantas indústrias de baixa tecnologia se transferiram para países pobres, saindo de nações que estão fazendo a transição do industrialismo para economias baseadas no conhecimento? Quantos empregos essa transferência da fabricação proporcionam? Sabemos que, pelos padrões do mundo rico, esses empregos pagam salários mínimos para longos expedientes de trabalho, sob condições assustadoras. Mesmo assim, milhões de camponeses não estariam partindo para as cidades no mundo inteiro, desesperados para obter empregos em fábricas que pagam baixos salários se não pensassem que estarão melhor de vida do que permanecendo no campo. Quantos desses empregos serão perdidos se os ativistas bem-intencionados (e bem-alimentados) do mundo rico conseguirem estabelecer padrões de salário mais altos nas Indonésias e Perus do mundo?
Nas economias de acelerado progresso do mundo rico, a perda de emprego do operário tem sido em grande parte compensada por um rápido aumento nos empregos de colarinho branco e em serviços de alta tecnologia. Mais ainda: a condição dos trabalhadores do mundo rico que ficaram sem emprego nessas mudanças tectônicas não pode ser comparada com as profundidades da pobreza do mundo pobre. Não obstante, mesmo nos Estados Unidos o desemprego - particularmente para aqueles com mais de 45 ou 50 anos - pode ser uma experiência capaz de destruir a alma, demolir a identidade e desestruturar a família.
A transferência de empregos de fábricas para o México e outras nações ajudou o países receptores a se industrializar - isto é, construir seu setor da Segunda Onda, seguindo o tradicional caminho na direção do "desenvolvimento" e "modernização", no momento em que os Estados Unidos disparam à frente na construção de um setor de conhecimento da Terceira Onda mais avançado. Hoje em dia, porém, não são apenas os empregos fabris da Segunda Onda que estão sendo transferidos. Trabalhadores com conhecimento da Terceira Onda - programadores de computação, analistas financeiros, contabilistas - estão começando a ser substituídos por trabalhadores de conhecimento com baixos salários na Índia e em outros países, auxiliando esses países a dar um salto à frente em termos tecnológicos e gerenciais.
As tendências não avançam indefinidamente e, à medida que o custo da mão-de-obra se tornar um componente cada vez menor do custo total das indústrias da Terceira Onda, a terceirização de empregos pode ser desacelerada. Mas a prática já ajudou a dar um impulso no setor de conhecimento em países que ainda não concluíram a industrialização - e talvez nunca mais precisem concluir. Economistas e mentores da política pública de países pobres cada vez mais precisam fazer a diferença entre seu setor industrial e o setor de conhecimento emergente e seus diferentes custos e benefícios.
Uma outra questão estratégica ainda não completamente compreendida é a redefinição de "propriedade". O brilhante trabalho de Hernando DeSoto ressaltou a importância central dos direitos de propriedade na redução da pobreza. Sem eles, invasores de terras e pessoas pobres geralmente continuam fora da economia formal com pouca esperança de começar um pequeno empreendimento e pouco incentivo para melhorar os barracos que construíram para si mesmo em terras devolutas.
Mas, ao mesmo tempo que é necessário formalizar e estender os direitos de propriedade para os pobres, está ficando cada vez mais difícil proteger os direitos de propriedade intelectual que estão no cerne da economia do futuro.
Todas essas mudanças trazem consigo poderosos, embora em grande parte ignorados, efeitos sociais, culturais e ambientais e outros efeitos também.
Essas são apenas umas poucas das novas circunstâncias que exigem um remapeamento radical dos caminhos que levam para longe da pobreza.

OESP, 15/02/2004, Economia, p. B4

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