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Estrada do abandono

Isto E, Brasil, p.52-55
06 de Out de 2004

Infra-estrutura
Estrada do abandono
Aventura pela Cuiabá–Santarém mostra que ausência do Estado impede desenvolvimento da região pela qual passa a rodovia, entre Mato Grosso e Pará, e ainda joga poeira no agronegócio
Fernando F. Kadaoka – Santarém (PA)
Não há nuvens no céu e o sol a pino faz o termômetro chegar fácil aos 40 graus. A estrada, de terra e repleta de buracos e pedras, ainda guarda as marcas da temporada de chuvas. Grandes caminhões, com mais de 400 cavalos de potência, ignoram as crateras e percorrem a estrada levantando poeira. E põe poeira nisso. Parece uma prova de enduro, mas não é. A estrada de terra em questão é a BR-163, rodovia federal que corta o País, do Rio Grande do Sul ao Pará, numa extensão de 3.995 quilômetros. Em seu trecho mais famoso – Cuiabá–Santarém – a BR-163 tem 1.760 quilômetros e desempenha uma importante ligação entre o Centro-Oeste e o Norte do País. Na realidade, para muitos distritos, é ela o único elo com as principais cidades da região. A BR-163 ganhou importância estratégica nos últimos anos graças ao boom do agronegócio no cerrado mato-grossense. Mesmo em condições precárias, ela é a principal rota de escoamento da indústria de grãos, do gado e da madeira da região. A reportagem de ISTOÉ acompanhou uma caravana do Expresso Araçatuba, empresa de transporte de carga com atuação no Centro-Oeste e no Norte do Brasil, que cruzou a Cuiabá–Santarém de ponta a ponta em um percurso de mais de 50 horas de viagem a uma velocidade média de 33,8 km/h. A bordo de duas caminhonetes Pajero e de dois caminhões Scania, foi possível constatar in loco as precárias condições de rodagem e a ausência do Estado nessas ermas regiões habitadas por cidadãos desassistidos.
A BR-163 fez parte do projeto, do regime militar (1964-1985), de ocupação da Amazônia. Inaugurada oficialmente pelo general-presidente Ernesto Geisel, em 20 de outubro de 1976, a maior parte da Cuiabá–Santarém nunca foi concluída. O Exército fez a terraplanagem e elevou o leito da estrada, sem nunca pavimentá-la totalmente. De Cuiabá até Santarém, cerca de 40% do trajeto está asfaltado, predominantemente em Mato Grosso. Hoje em dia, por falta de manutenção, esse asfalto sofre com os infindáveis e profundos buracos. Já em sua parte de terra a estrada tornou-se uma variação entre lama e poeira, dependendo da época de chuva. O pior trecho são exatamente os 113 quilômetros em que a Cuiabá–Santarém e a Transamazônica (BR-230) se transformam em uma só rodovia.
Justamente neste pedaço, se encontra um certeiro retrato da região: entre trechos estreitos (não mais de três metros) e verdadeiros canyons abertos pelas águas, Rosinalva Souza da Silva, de apenas 14 anos, ganha uns trocados tapando os buracos sem-fim da estrada. Assim que vê um caminhão, ela põe sua enxada em ação. Os motoristas que passam por aqui me dão umas moedas. Ganho uns dois reais por dia”, informa. Indagada pela reportagem se frequentava a escola, encabulada, responde: Vou sim, mas só na parte da manhã. Mas eu não preciso muito de escola. Sou boa nos estudos.” Com os cabelos desgrenhados pela poeira, Rosinalva agradece as guloseimas e, empolgada com a súbita celebridade, aponta para o mato e pede para que sua casa seja visitada. É o retrato de uma população tão desamparada quanto a estrada.
Percorrer a Cuiabá–Santarém é uma aventura. Ela corta tanto o cerrado de Mato Grosso quanto a Amazônia do Pará. Ao longo da rodovia, é possível observar o resultado da destruição da floresta: a fumaça produzida por madeireiras e as queimadas assustam. Uma densa névoa limita o campo de visão nos distritos localizados no arco do desmatamento, na fronteira entre Mato Grosso e Pará. Mesmo nos dias claros, o céu é cinza-fuligem. À noite, estrelas no céu nem pensar. No Pará, o triste espetáculo se completa. Proibidas por lei de ser derrubadas (mesmo queimadas), gigantescas castanheiras carbonizadas permanecem em pé, no campo aberto e devastado pelo fogo.
Perigo – Devido às condições da estrada, a velocidade máxima, mesmo no trecho asfaltado, nunca ultrapassa os 50 km/h. Ter que parar na estrada por causa de estragos provocados pelos gigantescos buracos pode ser um perigo na região. O caminhoneiro Bruno Sutic França, 26 anos, conhecido como Kojak devido à reluzente careca, não guarda boas lembranças da rodovia. Eu estava terminando de trocar o pneu do caminhão, quando senti uma mordida no meu pé, como se fosse uma agulha. Levantei o pé com força e virei o rosto. Ainda deu para ver a cobra fugindo para o mato”, conta ele. A mordida da cobra lhe custou três dias de febre no carente distrito de Novo Progresso.
Nos trechos de terra, a velocidade média é ainda menor. Raramente ultrapassa os 25 km/h. Para vencer 250 quilômetros (que poderiam ser feitos em duas horas e meia em uma boa estrada), gasta-se de dez a 12 horas, quando não há lama. Na época de chuva, levo de 15 a 20 dias para percorrer 400 quilômetros. Essa estrada estressa um pouco a gente, mas tem de se acostumar”, afirma o caminhoneiro Maicon de Freitas, 29 anos, a bordo de sua possante carreta com mais de 35 toneladas de mercadoria. Na boléia do caminhão, junto da mulher, Shirlaine, e dos filhos Alef, três anos, e Hiruam, dez meses, Maicon se dirige a Santarém com a experiência de quem faz esse trecho há cinco anos. Rodando direto há 27 horas, ele não crê na possibilidade de asfaltamento: É tudo cascata, faz anos que escuto essa conversa.”
A expectativa da população, a grande maioria migrante, que vive às margens da rodovia, oscila entre a esperança e a descrença. Com asfalto e manutenção a estrada traria desenvolvimento econômico para a região, mas eles não acreditam que isso possa acontecer, uma vez que são 30 anos de promessas não cumpridas. A história da gaúcha Loreci Bohn, 41 anos, dona de um posto de gasolina às margens da BR-163 (entre Sinop e Guarantã do Norte), se mistura à da região, colonizada por gente do Sul do País, que veio em busca de uma nova vida em uma região desabitada. Migrei para ter terra e mexer no campo, mas a estrada não veio e não deu para levar e trazer as coisas necessárias ao cultivo”, lembra. Quando já havia se mudado para Peixoto – norte de Mato Grosso –, casou-se com o também gaúcho Pedro Bohn. Há cinco meses, compraram o posto em meio a um cenário desolador à Bagdá Café. Tem 21 anos que a gente está aqui e ouve a história de que vão asfaltar a rodovia. Até agora, estamos esperando”, lamenta Loreci.
Enquanto o caminhão aguarda para atravessar uma das muitas pinguelas (toscas pontes de madeira feitas por dois troncos de árvores), aproxima-se um trator vermelho, com ferrugens que denunciam os bons anos de serviços prestados. Ao volante, o agricultor Reginaldo Sandim pergunta esperançoso: Dessa vez o asfalto sai?” Avançando um pouco mais, entre os distritos de Moraes de Almeida e Novo Progresso, na Vila do Riozinho, a BR-163 depara com o rio das Arraias. As pontes não existem mais e a travessia é feita de balsa. Para chegar ao outro lado da margem – menos de três metros –, cada caminhão tem que pagar R$15.
O governo Lula elegeu a pavimentação da BR-163 (junto com a transposição do rio São Francisco) como prioridade para a região Norte/Nordeste. Por isso, em março deste ano, foi criado por decreto presidencial um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), composto por nada menos que 15 ministérios. A principal objeção ao projeto vem dos ambientalistas, que temem que a estrada funcione como porta de entrada para o desmatamento. A estrada passa pelo arco do desmatamento e nós reivindicamos que ela não se torne a flecha desse arco”, adverte José Maria Cardoso, da ONG Conservação Internacional. Nós não somos contra asfaltar a rodovia, que trará um benefício social muito grande para a região. O que nós reivindicamos é que ela seja feita de forma planejada, que compatibilize conservação com desenvolvimento socioeconômico”, defende Cardoso, cuja tese é apoiada por João Paulo Capobianco, secretário de Biodiversidade e Floresta e representante do Ministério do Meio Ambiente no GTI.

Obra pronta em três anos
A BR-163 será responsável pelo escoamento da soja do norte de Mato Grosso, safra de 6,5 milhões de toneladas
O Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), coordenado pela Casa Civil, estima que toda obra de pavimentação da BR-163 fique pronta em um prazo de até três anos. A rodovia deve ser construída por meio do sistema de concessão de exploração à iniciativa privada por 25 anos, nos moldes do que ocorre no Estado de São Paulo em rodovias como a Imigrantes e a Bandeirantes. Estima-se que o investimento do consórcio vencedor gire em torno de R$ 1 bilhão.
Os trâmites burocráticos do processo já estão avançados. O cronograma de trabalho do GTI prevê que até janeiro de 2005 esteja finalizado o processo de regulação ambiental e, em seguida, seja emitida a licença de instalação, uma espécie de autorização para a realização da obra. A expectativa é de que em abril de 2005 o contrato com o consórcio vencedor da licitação seja assinado. Segundo o representante do Ministério dos Transportes no GTI, José Maria Cunha, a iniciativa privada deve ser responsável pela pavimentação do trecho de 1.300 quilômetros, entre Nova Mutum (MT) e Rurópolis (PA). A recuperação e o melhoramento do trecho asfaltado entre Cuiabá e Nova Mutum também devem ficar a cargo do consórcio vencedor. O asfaltamento do trecho restante, com 213 quilômetros, que vai de Rurópolis (PA) e chega até Santarém, fica sob responsabilidade do governo federal.
Depois de pavimentada, a BR-163 será responsável pelo escoamento da produção de soja do norte de Mato Grosso. Para o ano que vem está prevista uma safra de 6,5 milhões de toneladas. Quase 95% da atual produção é escoada pelos portos de Santos (SP) e Paranaguá (PR), a mais de 2.300 quilômetros das áreas de produção. Segundo a entidade não-governamental Comitê BR-163, se as cargas fossem embarcadas pelo porto de Santarém, isso representaria uma diminuição no frete de US$ 12 por tonelada, em comparação com o porto de Santos, e de US$ 18 se comparado a Paranaguá. A rodovia pavimentada também facilitará a chegada das mercadorias produzidas na Zona Franca de Manaus aos principais pólos de distribuição, localizados no Sudeste.
Isto É, 06/10/2004, p. 52-55 (Brasil)

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