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À espera do assassino

Epoca, Especial, p. 95-102
28 de Nov de 2005

À espera do assassino
Como vivem os brasileiros ameaçados de morte na fronteira paraense, onde o futuro da Amazônia é decidido à bala

Eliane Brum e Solange Azevedo (texto)
Maurilo Clareto (fotos)

Os que estão enterrados no cemitério de Castelo de Sonhos acreditaram que o nome do vilarejo era um sinal de boa sorte. Os que ainda estão vivos continuaram no lugar porque não têm como voltar ou porque já foram longe demais. Na beira da BR-163, Castelo de Sonhos é uma empoeirada fotografia 3X4 do Pará, o Estado campeão em conflitos de terra, assassinatos no campo e trabalhadores escravizados. O cemitério resume a geopolítica da região, na divisão desigual entre vítimas e pistoleiros. Não há mandante sepultado. Mortes naturais são uma raridade. Passar dos 50 anos é hora extra. Em Castelo de Sonhos assiste-se em tempo presente à repetição da brutal colonização do Brasil, retrato de um país que vive vários tempos históricos simultâneos. Os brasileiros que acompanham o faroeste como folclore de um mundo distante equivocam-se. É o destino da Amazônia que se decide do modo mais arcaico no Pará. A tiros.
Santa - ou Maria de Fátima da Silva Nunes - pode ser a próxima inquilina de uma das sepulturas abertas pelo coveiro para adiantar o serviço. Ela tornou-se a maior liderança popular de Castelo de Sonhos desde que seu irmão, Brasília - ou Bartolomeu Morais da Silva -, foi executado a tiros por um consórcio de grileiros em 21 de julho de 2002. Brasília é dono do túmulo mais visitado do cemitério. E Santa, a candidata mais habilitada a lhe fazer companhia, porque conseguiu botar um mandante e dois pistoleiros na cadeia por força de sua própria investigação: o fazendeiro Manoel Alexandre Trevisan, o Maneca, e os matadores Márcio Antonio Sartor, o Márcio Cascavel, e Juvenal Oliveira da Rocha, o Parazinho. Foi a primeira vez na história do Pará que um latifundiário foi punido por ter ordenado a morte de um trabalhador. A inversão da lógica deu esperança a quem não tinha nenhuma.
O nome de Santa está ao lado de outros 50 líderes marcados para morrer no relatório "Violação dos Direitos Humanos na Amazônia: conflito e violência na fronteira paraense", preparado pelas ONGs Justiça Global, Terra de Direitos e Comissão Pastoral da Terra. O dossiê será lançado nesta segunda-feira em Brasília e entregue à representante especial da ONU que desembarca no Brasil em dezembro para investigar a situação dos ameaçados. Nele, constam 772 execuções de trabalhadores nos últimos 33 anos - e apenas três julgamentos. O braço curto da Justiça para alcançar os poderosos, porém, revela-se longo no caso dos pobres: nos últimos dez anos foram presos 607 camponeses.
Os números dão a dimensão da façanha de Santa. A História mostra que ela pode pagar a ousadia com a vida, como aconteceu com a freira Dorothy Stang em fevereiro. Aos 48 anos, Santa sabe disso. Pouco vê os dois filhos, protegidos em uma cidade distante, vive na casa de um e de outro conhecido, quando as ameaças aumentam foge da cidade no porta-malas de um carro ou a pé, disfarçada de velha, mendiga ou aleijada. Mais de um amigo foi executado por tela ajudado, como o barqueiro Papamel, que a tirou de um sítio onde pistoleiros planejavam matá-la escondendo-a debaixo da lona preta do barco. Foi morto a tiros dias depois.
Em Castelo de Sonhos, Santa vive acordada, dia após dia, seu pesadelo. O lugarejo é uma vertigem amazônica. A meia dúzia de ruas envoltas em nuvens de poeira pertencem ao município de Altamira. Entre o distrito e a sede há 1.100 quilômetros, distância equivalente à que separa São Paulo de Porto Alegre. Maior município do mundo, Altamira tem o tamanho da Bélgica e da Grécia juntas, seu território é superior ao de 12 Estados brasileiros. Como acontece com toda terra jovem, quem chega a Castelo quer deixar o passado para trás e construir outra identidade. Assim, o lugar tem poucos sobrenomes e muitos apelidos. São esses os mais numerosos no cemitério, sem cruz, sem nome, sem família para cobrar a morte. Conhecido pelo nome completo, apenas quem já cercou seu latifúndio e com ele assegurou lugar fixo no novo mundo.
O fundador de Castelo, Leo Reck, é um dos que usam nome e sobrenome. Mas quando alcançou a floresta virgem nos anos 70 era chamado de Onça Branca. Nas terras que cercou, os garimpeiros Gaguinho e Paraibinha descobriram ouro. Batizaram o lugar com o nome da música que não se cansavam de escutar no LP do compositor Walter Basso. "No meu castelo de sonhos você é a rainha..." Foram os primeiros a acreditar que Castelo de Sonhos era sinal de bom augúrio. Desapareceram sem enriquecer nem deixar rastro.
Ouro foi o primeiro ciclo de Castelo de Sonhos. Depois, a madeira e o gado. A soja se avizinha por Mato Grosso, segue a estrada Cuiabá-Santarém, que o presidente Lula prometeu asfaltar. É a seqüência amazônica. Sob a sanha do ouro Castelo viveu seu batismo de sangue: a guerra entre Onça Branca e Márcio Martins da Costa, o Rambo do Pará. Ele conquistou fama e apelido depois de Reck tê-lo arrastado algemado pela via principal do lugarejo, uma rua à qual o fundador deu o nome de Santo Antônio.
Partiu como Márcio, voltou como Rambo. Dominou a região à bala no final dos anos 80, no topo de um império de ouro e drogas com ligações na política paraense. Em 1992 foi morto a tiros pela Polícia Militar. Castelo de Sonhos tinha sido semeada com mais de 300 cadáveres.
Um consórcio de fazendeiros conhecido como "a Máfia de Castelo" assumiu o poder depois da morte de Rambo. Brasília desafiou sua autoridade ao reivindicar ao governo federal um assentamento para os garimpeiros quando o ouro escasseou. Toda terra em Castelo de Sonhos é pública. Faz parte dos 30 milhões de hectares grilados no Pará, uma área equivalente a quase dez Bélgicas.
A média de cada propriedade, conforme o dossiê das organizações de Direitos Humanos, é de 88.000 hectares - o tamanho de Belo Horizonte, Fortaleza e Recife somados. A maioria é mantida - e expandida - por milícias formadas pelos guaxebas, nome dado aos pistoleiros. Eles não ganham por execução, mas por mês, como um funcionário assalariado: em torno de R$ 1.000 para os peões e até R$ 5 mil para o chefe. "Tanto faz matar ou não matar. É um valor fixo por mês. Só ganho por cabeça quando faço particular", conta um deles (leia a entrevista na pág. 102).
Quando o consórcio de grileiros decidiu executar Brasília, enfrentou um problema: ele era popular também entre a pistolagem. O líder tinha carisma, apartava brigas entre marido e mulher,cuidava de doentes. Sua arma era uma caneta acomodada na orelha pronta para ser sacada diante de uma denúncia.
O "serviço" foi encomendado a pelo menos três pistoleiros - e recusado. Quando ele foi assassinado, a população venceu o medo e impediu a polícia local de aproximar-se do corpo até a chegada do legista de Belém. Os fazendeiros criaram o primeiro mártir de Castelo.
Mirar nos líderes para eliminar a resistência gerou um fenômeno novo: o aumento de mulheres na lista dos ameaçados de morte. Elas assumem o lugar de maridos, irmãos e filhos executados. Foi assim com Santa. Viúva, ela sobrevivia fazendo salgados para lanchonetes. O povo de Castelo assistiu à pacata salgadeira anunciar aos grileiros na missa de sétimo dia do irmão que viveria para botá-los atrás das grades. "Às vezes estou arrebentada por dentro, mas rio e falo alto para não pensarem que tenho medo", diz. O último recado foi de que lhe cortariam a língua.
Santa só conseguiu instalar os matadores atrás das grades porque teve uma colaboração insólita: a dos pistoleiros do lugar. "Devia um favor para o seu irmão, então vou lhe ajudar", anunciou Tim Maia, um dos mais temidos. Até ser eliminado, em dezembro de 2003, foi o que fez. Salvou-a várias vezes da morte. Numa delas, Santa foi colocada disfarçada dentro de um ônibus, uma velha doente com sua bengala. Tim Maia avisou que um dos pistoleiros tinha um cavalo na fivela do cinto e o outro um touro. Eles entraram na primeira parada, com a desculpa de procurar uma parente. Passaram por Santa e não a reconheceram. "Senti um gelo dentro do coração", conta ela. Dias antes de ser executado, Tim Maia fez bravata: "Matei 150. Já posso morrer feliz".
Um a um os pistoleiros foram tombando em Castelo de Sonhos. No fim de outubro sumiu mais um. João Moreira, o Carioca, desapareceu com sua moto quando foi verificar uma grota de ouro.
"É, sumiu. Outro mistério", comenta Leo Reck. "Se sumiu, outros vão poder viver." A polícia não tem pistas. Somente neste ano desembarcou o primeiro delegado no distrito. Dias atrás, José Conceição Corrêa já fazia as malas. Sua passagem por lá foi quase um período de férias. Em cinco meses não fez nenhum inquérito. Ele explica: "Castelo de Sonhos é um lugar ordeiro, calmo e tranqüilo".

Marcada para morrer
Maria de Fátima da Silva Nunes, a Santa, de Castelo de Sonhos, Pará, conta como é viver na mira de pistoleiros
"Posso ser assassinada a qualquer momento. Quando eu abro uma porta, já espero receber um tiro. Tem gente que diz que sabe como é viver jurado de morte. Mas não sabe. Estar marcada para morrer é viver sem sonho, é só ter momento. É não ter mais casa nem paradeiro, é não ser mais ninguém. É dizer para quem anda contigo que é para não andar mais porque vai morrer. É marcar os amigos de morte também e depois se sentir culpada. É uma sensação tão ruim. Parece que as luzes vão se apagando, que o mundo vai ficando escuro. Nem sinto mais saudade da vida porque não acho bonito nada".
É bonito, mas eu é que não acho bonito. Tenho pavor da noite desde pequena. E agora, que virei uma fugitiva, tenho de andar no escuro, pelo meio do mato. Quando durmo, só sonho com defunto. Decidi uma coisa. Quando máfia de Castelo de Sonhos me pegar, sei que vão me torturar. Mas eu vou fazer o possível e o impossível para não gritar. E não vou pedir misericórdia. Falam aqui que eu já estou morta, só falta cair. É isso. Ser jurada de morte é começar a ser assassinada ainda na vida'.

Bem-vindo a Castelo de Sonhos
Como a família Branger descobriu o Brasil da pistolagem Eles não tinham nenhuma idéia sobre como as coisas funcionavam. A chegada da família Branger a Castelo de Sonhos foi um encontro entre dois mundos. "Quando meu marido falou o nome, Castelo de Sonhos, eu me encantei", conta Maria Palmira Branger, a Preta. "Todo mundo tem um sonho. O do meu marido era uma fazenda. Meus filhos precisavam de espaço. Pensamos que era um lugar que estava começando e precisava de gente com estudo." Deixaram Florianópolis em agosto de 2003 seguindo o conselho de um cunhado que vivia em Mato Grosso. Zulmar Branger deixava lotes de terra onde plantava cebola e alho, Preta fechou as portasde uma confecção e os filhos trancaram a universidade. Partiam para a conquista tardia da Amazônia.
Quando o asfalto da Cuiabá-Santarém acabou, na divisa de Mato Grosso com o Pará, Preta começou a chorar. "Era só mato. Eu não queria nem deixar o caminhão de mudanças descarregar", lembra. Mas deixou. Nunca mais esqueceria desse momento-limite. Um ano depois, em 8 de agosto de 2004, encontrou o filho caçula, Cledson, estudante de Arquitetura de 22 anos, dentro de um saco atirado na estrada que os levou a Castelo de Sonhos. O corpo ainda estava quente. Cledson havia sido torturado por 24 horas antes de ser morto. O principal suspeito do crime é Emerson Minosso, filho de um dos maiores grileiros da região, Fiorindo Minosso. Tinham se tornado amigos. Cledson foi atirado dentro de uma mangueira com um touro bravo. Quando tentava sair era devolvido ao suplício. Quase não tinha pele nas costas. Cada centímetro do corpo estava roxo. Os ossos estavam quebrados. Dentro da boca carregava seus genitais. O tiro no ouvido direito foi apenas uma garantia do fim do belo menino de praia que havia se tornado o galã do faroeste.
A mãe pedia ajuda da Polícia Militar desde o dia anterior. "Primeiro o tenente falou que tinha de esperar 24 horas. Depois que precisavam fazer a segurança do rodeio. Na madrugada do domingo, disse que necessitavam dormir, mais tarde que tinham de cuidar da cavalgada. Comecei a gritar. Só depois descobri que ele levou R$ 40 mil para não fazer nada enquanto meu filho era torturado e morto", conta Preta. "A polícia eliminou os vestígios. Tinha carne debaixo das unhas dele, porque lutou. Não sobrou nada para identificar. Encontramos as roupas queimando no lixão."
Emerson Minosso tentou entrar no velório, mas foi escorraçado. Mostrou a arma. Ainda desfilou em Castelo de Sonhos por mais três dias. Quando teve a prisão preventiva decretada, já estava longe. Seu pai, Fiorindo Minosso, diz que é tudo mentira.
Várias versões circulam em Castelo de Sonhos para explicar o crime. Em uma delas, Emerson teve ciúme porque sua ex-namorada se interessou pela vítima. Em outra, a morte seria uma estratégia para que a família vendesse a terra por preço baixo e voltasse para onde veio. Nos dias posteriores os Brangers encontraram pistoleiros patrulhando a divisa entre as fazendas.
"Fui aprender o que significava cada morte aqui", conta Preta. "Me explicaram que quando jogam na estrada é para calar a boca porque estão agindo."
Quando sepultava o filho, um matador sussurrou no ouvido de Zulmar: "Você quer que eu faça o serviço?". Outros dois fizeram a mesma proposta. Ele recusou. Velou o filho no Dia dos Pais. "O corretor falou que era um lugar calmo, seguro. Quando chegamos, nos primeiros 60 dias houve 40 mortes. No Brasil não tem pena de morte, mas aqui tem", conta o pai. "Pensava que só matavam peão rodado e pistoleiro. Achei que não matassem gente de bem", diz a mãe. "Vi gente degolada boiando no rio. Vi um pai ser morto na frente do filho de 4 anos no bar. Vi uma bala atravessar o corpo de uma pessoa e atingir o de outra numa festa. Vi um corpo entupir uma bomba de sucção. Tinha pedras no lugar das vísceras", relata Calebe, o irmão. "O que nunca vi neste lugar foi briga a socos."
O que Cledson viu está sepultado com ele no cemitério de Castelo de Sonhos. A família Branger decidiu ficar. "Consegui uma fazenda", explica o pai. "Ganho muito dinheiro aqui", afirma o irmão. "Nós éramos patinhos. Não entendíamos nada. Agora, aquela coisa boazinha que tinha em mim acabou", diz a mãe. Dias atrás ela viu Fiorindo Minosso na rua. Gritou: "Seu desgraçado. Como tem coragem de olhar para mim?". Castelo de Sonhos é um lugar pequeno. Meia dúzia de ruas desoladas. A família Branger aprendeu que nelas há dois tipos de pessoas: vítimas e assassinos.

Jurados de morte
Relatório denuncia que 51 lideranças estão ameaçadas no Pará. Algumas delas contam como é conviver com a possibilidade de levar um tiro a qualquer momento
Padre José Amaro Lopes de Sousa, 38, Anapu
"O sangue da irmã Dorothy me deu mais energia para lutar. Já recebi diversas ameaças de morte. As pessoas mandam recados, começam a falar alto para eu ouvir ou telefonam para a minha casa. Já fui seguido. Teve gente que veio conversar comigo e acabou indo embora. Para tentar me resguardar, comecei a criar cachorros de raça. À noite, eles ficam soltos no quintal. Abaixo de Deus, são os meus filas que me protegem. Não saio sozinho e nem sem avisar para onde vou e quando volto. Não posso andar a pé pela cidade. Já tive de ficar escondido várias vezes. Foi horrível. Quando chega a notícia de que há pistoleiros rondando, perco o sono. Eu e 18 colonos já fomos expulsos de um assentamento sob ameaça de espingardas. Tenho medo de morrer,mas não posso me calar. As serrarias continuaram trabalhando e os fazendeiros mandando e desmandando em Anapu."

Maria Joel Dias da Costa, 42, Rondon do Pará
"Sou maranhense. Cheguei aqui em 1984, com o meu esposo, Dezinho, e dois filhos pequenos. Assumi a presidência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais em 2002, porque os filiados achavam que eu era a única pessoa capaz de dar continuidade ao trabalho de Dezinho. Ele foi assassinado há cinco anos porque lutava pela reforma agrária. Convivo com ameaças há dez anos. Muitas vezes não consigo dormir. Tenho pesadelos".
Já vi gente rondando a minha casa. Recebo bilhetes, telefonemas. Dizem que meu dia tá chegando, que tô caçando a morte. Mas não posso abandonar essa luta. Os assassinos do Dezinho não foram punidos. Outro dia, jogaram garrafas no telhado da minha casa. Parecia barulho de tiro. Espero que isso acabe e que o poder público faça valer a justiça no Brasil. Não quero morrer."

Idalino Nunes Assis, 59, Porto de Moz
"Vivo no Pará há 25 anos. Sou mineiro, mas cresci no
Espírito Santo. Depois, fui metalúrgico em São Paulo.
Estou no quarto mandato como presidente do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais de Porto de Moz. Sofri muita ameaça. Já teve pistoleiro na minha casa. Ele só não me matou porque queria receber o dinheiro primeiro e o mandante queria pagar depois do serviço. O pistoleiro dormia na minha casa, jogava bola comigo. Aprendi a conviver com ameaças. Mas tenho medo de morrer. Já tive de me esconder em outras cidades. Há mais de dois anos não saio à noite. As pessoas rondam e ligam para o sindicato. Mas peço para nunca dizerem onde estou e quando volto. Outro dia mataram um trabalhador em Marabá. Ser sindicalista no Pará é ter a morte como destino. Não tem lei nesta terra. O Estado brasileiro está muito longe do Pará."

Lei trabalhista
Paraguai insistiu demais para receber o pagamento

O atestado de óbito de Félix Gonçalves é uma ironia que ilustra a lei trabalhista em Castelo de Sonhos - e na Amazônia. Causa mortis: "Acidente de trabalho". Apesar de a árvore que o matou ter conseguido decepar o tampo de sua cabeça com o exato formato de um golpe de facão, não deixa de fazer sentido. É costume na região esse tipo de acidente profissional. Quando o trabalhador insiste para "fazer acerto",ou seja, receber o combinado, costuma morrer por justa causa. Conforme a viúva, Florentina Gonçalves, Paraguai exigiu o pagamento de uma ponte que fez para a subprefeitura de Castelo. "O Leo Reck botou um pistoleiro ao lado do caixão e pressionou tanto para enterrar rápido que não deu tempo de todas as filhas se despedirem do pai", conta.

Retrato de um Fundador
Quem é o homem que construiu uma cidade na Amazônia Aos 70 anos, Leo Reck , o fundador de Castelo de Sonhos, vive hoje a segunda fase da colonização do lugarejo aonde chegou em 1975. A convite, como diz, do governo militar, que o exortou a "integrar para não entregar". Leo Reck precisa limpar a biografia para que no futuro, quando o distrito virar cidade, possa ter um busto na praça e uma história bonita para as crianças recitarem na escola em dias cívicos. A guerra entre Onça Branca, como era conhecido, e Rambo do Pará ficou para trás. "Cansei de recolher os corpos que Rambo deixava para enterrar. Larguei para os urubus", conta. "Eu nunca matei ninguém e posso andar de cabeça erguida." Conversar com ele é como testemunhar a construção de um herói da pátria em tempo real. "Quando chegou o título provisório do Incra, descobri que me deram 180 hectares. Terra desse tamanho eu conseguia no Sul", explica. "Fiquei com tanta raiva que resolvi fazer uma cidade." E assim o velho Leo fez um traçado e vendeu terrenos a R$ 10 mil. Castelo de Sonhos, portanto, é uma cidade planejada. E só não é mais progressista, segundo ele, por causa do presidente Lula e da ministra Marina Silva, "que embargaram a Amazônia". Refere-se à suspensão temporária da licença
para corte de árvores na região da BR-163. "Não é porque morre algum aqui que atrapalha
alguém. É aquele presidente comunista que atrapalha a gente", destempera-se. "Seria bom
demais se o governo não se metesse em Castelo de Sonhos."
Leo Reck sente-se desrespeitado pela Polícia Federal, que passou a circular na Amazônia depois da execução da Irmã Dorothy Stang. Está habituado a outro tipo de lei: "Polícia aqui é o dinheiro. Se compra soldado por R$ 200, tenente um pouco mais. Uma morte aqui custa R$ 500". Não se conforma: "Agora nos chamam de grileiros. Mas eu sou é desbravador. Tenho coragem agora, com a idade que tô, de ir lá para as bandas do Rio Negro, pegar uma motossera e plantar uma roça". Depois de explicar que nos velhos tempos jornalistas viravam comida de urubu ou eram atiradas de aviões com as mãos amarradas, Leo Reck irrita-se com o gravador: "Desliga essa porra!".

Época, 28/11/2005, Especial, p. 95-102

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