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Especulação ameaça sítio arqueológico no RJ

FSP, Cotidiano, p. C6
07 de Ago de 2005

Especulação ameaça sítio arqueológico no RJ
Empurrados para favelas, pescadores de Niterói vêem seus filhos mergulhando no tráfico de drogas

José Messias Xavier
Da sucursal do Rio

Uma comunidade inteira de pescadores e um sítio arqueológico de pelo menos 8.000 anos estão ameaçados pela especulação imobiliária em Itaipu, em Niterói, a 15 km da cidade do Rio de Janeiro.
A cultura da pesca artesanal está morrendo -os pescadores não fabricam mais suas canoas, muitos mudaram de casa ou então vêem seus filhos trocarem a venda de peixes pela de drogas.
O sítio arqueológico Duna Grande de Itaipu, área da proteção do patrimônio histórico nacional, tem pelo menos dez casas construídas dentro de seu terreno. Entre os novos moradores estão um delegado de polícia e um fiscal de renda da Receita Federal.
Localizado em 1962 por técnicos do IAB (Instituto de Arqueologia Brasileira), o sítio ocupa uma duna situada entre a praça atual de Itaipu e a barra da lagoa do mesmo nome. Foram encontrados nele ossos de peixes e de animais, carapaças de conchas e artefatos de pedra usados, como machados e anzóis, além de restos de esqueletos humanos e variados tipos de adornos. Possui quase 10 mil metros quadrados.
Em 1987, foi escolhido monumento-símbolo da pré-história brasileira. O sítio está instalado nas ruínas do antigo Recolhimento de Santa Teresa (onde a Igreja Católica internava mulheres que perdiam a virgindade antes do casamento), fundado no século 18.
De acordo com Jorge Nunes de Souza, o "Seu Chico", 49, diretor da Associação Livre de Pescadores e Amigos da Praia de Itaipu e da União de Agricultores e Pescadores Artesanais do Estado do Rio, pelo menos 20 jovens, filhos de pescadores de Itaipu, têm processos criminais por envolvimento com o tráfico de drogas e oito morreram nas mãos de narcotraficantes nos últimos dez anos.
"A especulação imobiliária está fazendo com que os pescadores saiam da beira da praia e passem a morar em favelas. Como a pesca está caindo na região, os filhos não querem seguir a profissão dos pais e, por total falta de perspectiva, entram para o tráfico de drogas, como muitos outros jovens pobres", afirma ele.
Até os anos 70, a colônia reunia pescadores de Itaipu e de Camboinhas. Em 1978, as vilas foram separadas por um canal, um respiradouro para a Lagoa de Itaipu. Seus moradores mudaram-se para favelas de Niterói e São Gonçalo. No lugar, foram construídos edifícios e casas de luxo.
"A praia de Camboinhas e a lagoa morreram. Viraram um deserto durante a semana e um inferno de banhistas nos finais de semana", avalia o antropólogo Roberto Kant de Lima, da UFF (Universidade Federal Fluminense) e autor do livro "Pescadores de Itaipu - Meio ambiente, conflito e ritual no litoral do Estado do Rio de Janeiro".
O pescador Nilton Rodrigues, 65, tinha uma casa ao lado do canal de Itaipu, onde hoje está um edifício. Retirado da praia, foi morar em uma pequena favela na avenida Central. Teve sete filhos e nenhum deles virou pescador. O caçula, Alexandre Azeredo, 17, foi assassinado a tiros a 200 metros de sua casa na favela, após envolver-se com narcotraficantes.
"A morte desses jovens é a morte de toda uma relação social. Não conseguimos garantir um espaço para aquele povo", avalia o antropólogo Ronaldo Lobão, da UFF.

Ex-pescador agora é flanelinha
Diante do mar de Itaipu, em Niterói, o pescador Jacy Gomes da Costa, 65, diz que o mundo em que nasceu, cresceu e se fez homem está morrendo lentamente. Morreu um pouco quando deixou sua casa na colônia de pesca para morar em uma favela; um pouco mais depois que passou a trabalhar como guardador de carros; e acelerou seu fim quando seu filho caçula, Édson Rosa de Abreu, entrou para o tráfico de drogas e terminou assassinado a tiros pelos cúmplices ainda criança, aos 12 anos de idade.
Jacy não tem mais a pele queimada a sal e sol, como seus colegas pescadores. Ele, que mora na favela do Cantagalo, também em Niterói, passa pouco tempo no mar, depois que começou a trabalhar como guardador de carros de turistas na mesma praia onde, há 12 anos, pescava.
História rompida
Jacy não é o único que chora com a lembrança do filho morto por traficantes, Ele o queria como herdeiro de uma tradição centenária da praia de Itaipu, a pesca artesanal, praticada pelos índios tumiminós, da nação tupi, a mesma etnia de Araribóia, que colaborou com os portugueses na expulsão dos franceses do Rio de Janeiro no século 16 e ganhou de presente a área em que se localiza hoje o município de Niterói.
Êxodo
Na década de 70, 20 famílias de pescadores viviam no local conhecido como Canto de Itaipu, que fica entre o canal e o morro das Andorinhas. Atualmente, segundo pesquisadores da UFF (Universidade Federal Fluminense), apenas cinco famílias de pescadores tradicionais continuam a morar por lá.
Para o antropólogo Ronaldo Lobão, da UFF, a morte dos filhos dos pescadores é emblemática de um estado de degradação social. "A voz deles não é ouvida. Aquelas pessoas vivem uma invisibilidade social que não é somente física, mas também moral", diz.

Tráfico impede pesca na região
Em janeiro de 2004, a pescaria já estava ruim em Itaipu. Peixes como tainha, sardinha, cavalinha e o olho-de-cão já não eram encontrados com facilidade. Em razão disso, o pescador Athos Moreira, 47, decidiu mudar de mares.
Com seu amigo Walter Rocha de Oliveira, ligou o motor de popa de sua embarcação e passou a pescar entre as ilhas Cagarras e Redonda, no Rio de Janeiro. Uma semana depois de estar no local, uma lancha veloz, com homens armados com fuzis, abordou sua embarcação.
"Segundo o Athos me falou, eles disseram que era para ele sair dali, pois eles iam passar, durante alguns dias, com carregamentos de drogas. Se não saísse, eles iam matá-los e afundar o barco. Ele não deu ouvidos às ameaças", diz a mulher de Athos, Roseli Régis Conceição, 41.
Athos continuou pescando no local e, desde 20 de janeiro de 2004, ele e Walter estão desaparecidos. O barco foi encontrado, no final daquele ano, no fundo do mar da área em que os pescadores foram ameaçados.
Um outro pescador conseguiu içar, com sua rede, apenas o mastro do barco afundado. Roseli e os filhos guardam o pedaço de madeira, que tem uma figa na ponta, como uma relíquia. A polícia ainda não descobriu o que aconteceu com os dois pescadores.
A mulher de Athos terá, por lei, que esperar por cinco anos, desde o desaparecimento do marido, para poder reclamar seus direitos ao seguro de vida feito por ele.
"O Athos vinha pescar aqui, embora fosse da colônia Z-8 de Jurujuba (Niterói), porque tinha muito peixe e ele era bem-recebido. Mas os peixes estão acabando, e ele teve de ir para outro lugar. Até o camarão que havia na lagoa de Itaipu está acabando porque o espelho d'água está sendo reduzido", disse Seu Chico, diretor da Associação Livre de Pescadores e Amigos da Praia de Itaipu e da União de Agricultores e Pescadores Artesanais do Estado do Rio.
Vários fatores estão levando os peixes a deixar Itaipu, de acordo com a estudante de biologia marinha da UFF Érica Gonçalves, que realiza um estudo sobre os pescadores da região.
"Há os grandes barcos pesqueiros de outros países e Estados que vêm aqui pegar iscas para a pesca maior do atum, em alto mar; há a poluição, com o esgoto das casas sendo jogado na lagoa e no mar; e há ainda a luz dos prédios, que se projetam na água à noite e afugentam os peixes", diz.
Filha de "Seu Chico", Érica é uma rara exceção entre os jovens filhos de pescadores. "Estou estudando biologia marinha para aplicar meus conhecimentos na salvação do mar dessa região e também para usar novas técnicas de produção de pescado e salvar o trabalho dos pescadores daqui", diz. (JOSÉ MESSIAS XAVIER)

FSP, 07/08/2005, Cotidiano, p. C6

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