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A escolha sempre passa pela ótica empresarial

O Globo, Razão Social, p. 4-6
Autor: AFONSO, Rita
17 de Jul de 2012

A escolha sempre passa pela ótica empresarial
Pesquisadora estudou a relação entre comunidades e corporações tendo como base o conceito de responsabilidade social

Entrevista: Rita Afonso

Amelia Gonzales
amelia@oglobo.com.br

Não é de hoje que a relação entre empresas e comunidades se tornou um foco para a pesquisadora Rita Afonso. O estranho fenômeno, já detectado por outros estudiosos, que revela uma estagnação do cenário de pobreza e desigualdade em locais que são alvo de programas e projetos bem sucedidos de corporações, atiçou de vez a curiosidade dela, a ponto de virar sua tese de doutorado, que acabou de defender, na área de Engenharia de Produção na Coppe-UFRJ. Nessa entrevista, Rita Afonso destrincha as várias possibilidades de causas para o que ela chama de "descolamento" entre intenções sinceras das empresas e o resultado na outra ponta. Lucidamente, ela prefere não vilanizar as corporações, mas analisar o processo. Sua tese focou três grandes empresas que, por opção da repórter, não terão seus nomes divulgados para evitar um burocrático e, no caso, desnecessário, "ouvir o outro lado". Afinal, trata-se aqui de uma reflexão, que envolve todos os interessados por uma real mudança do modelo civilizatório e de um comportamento ainda meio novo para as corporações. E não de uma denúncia.

O GLOBO: O que a levou a defender uma tese sobre o tema relações de empresas com comunidades?

RITA AFONSO: Na verdade, depois que eu concluí a tese, percebi que é um tema que me acompanha há muito tempo, desde o mestrado. Só que, quando fiz a tese de mestrado, mostrei a relação de uma cooperativa de costureiras com as empresas. Desta vez meu foco foi a Norma ISSO 26000, que definiu o conceito de responsabilidade social como aquele que já vinha sendo usado pelo Instituto Ethos e pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) , ou seja, a relação ética e transparente entre as empresas e os vários atores de interesse. Um desses atores é a comunidade.

O GLOBO: Qual a conclusão que você tirou após pesquisar essas três empresas, sobre o que rege essa difícil relação?

RITA AFONSO: O que eu percebi é que há uma escolha na hora de definir, de instituir essa relação, e essa escolha obedece à ótica empresarial. É o investimento social privado, o repasse de recursos.

O GLOBO: Quando eu comecei a entender um pouco sobre a responsabilidade social das empresas e tudo o que envolve esse processo, ouvi de um empresário que ter responsabilidade social não era assinar um cheque em branco, como acontece quando as corporações fazem filantropia. Você viu um comportamento diferente disso?

RITA AFONSO: Antes de mais nada, é bom lembrar que eu estudei três empresas. Elas me liberaram o acesso porque sem isso seria difícil, quase impossível, trabalhar. O que eu posso dizer é que esse processo de montar um edital, liberar para o mercado, recolher projetos, investir dinheiro nos projetos e monitorar até chegar aos resultados, nada mais é do que uma assinatura de cheque. Só que agora é uma assinatura de cheque monitorada, sofisticada, porque as empresas têm um processo de gerenciamento e de atuação muito sofisticado hoje.

O GLOBO: O que eu estou entendendo com isso é que as empresas, de fato, não se envolvem com as comunidades que recebem esses projetos...

RITA AFONSO: Estamos vivendo um momento em que se entende que temos muitos instrumentos de TI (Tecnologia de Informação), mas o que está acontecendo, de fato, é que tais instrumentos criaram uma separação muito clara entre o que é a superfície e o que é a dimensão. Na hora em que eu tenho instrumentos para gerenciar informações de toda ordem e em qualquer lugar do mundo, eu também posso criar uma capa, uma nata, e visibilizar isso. Posso projetar resultados e imagens sem que isso esteja colado com as dimensões das quais eles foram tirados. Isso é um dado da época em que a gente vive. Eu usei na tese os relatórios e os balanços feitos pelas empresas e é um pouco isso: vêm dados de vários lugares diferentes para projetar essa imagem mas não se tem contato com o que está por trás disso, fica descolado.

O GLOBO:As hierarquias estão diminuindo por conta das redes?

RITA AFONSO: Acho que não. Se a gente conseguir imaginar uma empresa ou sociedade piramidal, hierárquica, o que se fez foi achatar essa pirâmide e transformar numa rede. Mas no centro da pirâmide, como antes, continua todo o poder e o resto fica circulando ali em torno, mas dependendo absurdamente deste centro para buscar recursos.

O GLOBO: Ou seja: tudo gira em torno do capital, não tem jeito...

RITA AFONSO: Na verdade, o que eu percebi é que a horizontalização traz uma potência interessante para trocas e para o aprendizado, para mudar o sistema e para ser usado para o desenvolvimento sustentável, aquele que se quer. Mas a lógica do Investimento Social Privado faz o contrário disso: coopta a borda da rede para dentro com dinheiro. As corporações pegam as Organizações Não-Governamentais, os projetos sociais, todos que estão no entorno da companhia, põe um bom recurso e traz para dentro. Mas os projetos ficam submetidos a uma lógica absolutamente capitalista: que objetivos eu tenho que cumprir; que metas eu tenho que cumprir; como eu dou conta do negócio para continuar tendo recursos? Porque se não fizerem tudo como tem que ser feito à lógica da corporação, a comunidade acaba perdendo o patrocínio, até no meio do projeto.

O GLOBO: Qual seria o outro jeito de se fazer isso?

RITA AFONSO: O outro jeito é perceber que aquela comunidade tem alma, tem uma cultura própria. Se a empresa tem uma ótica de fora para dentro, ela acaba subvertendo aquela cultura. Pode até gerar resultados para ela própria, para pôr em seus relatórios. Mas não vai dar resultado nenhum, ou quase nenhum, para a própria comunidade. Porque o projeto acaba caindo de paraquedas.

O GLOBO: Mas o papel das ONGs seria esse, o de fazer um link entre a comunidade e as empresas. Isso não acontece?

RITA AFONSO: Muitas ONGs até articulam com a comunidade, sim, mas não são todas. Há outras, no meio do caminho, que são empresas sociais, o que significa que o fato de ela fazer um projeto não significa que articulou com a comunidade. Então é muito comum mesmo acontecer de as pessoas que são as beneficiadas verem o projeto - já pronto e aprovado - ser implantado na sua comunidade. E o que acontece depois disso é fácil de imaginar: a comunidade, sem dinheiro, cheia de privações, é claro que vai dar licença para aquela ONG entrar porque ela vai trazer benefícios, sim. Ou seja: tudo vai se submetendo a essa mesma lógica mercantil.

O GLOBO: Você acredita que tudo o que tem sido discutido e debatido a respeito do tema vai poder mudar essa realidade? As empresas vão conseguir a tal mudança de paradigma?

RITA AFONSO: Já temos muitas evoluções e acho que está todo mundo trabalhando para isso, para tentar mudar alguma coisa. Veja bem: não estou minimizando os esforços, tem muita gente trabalhando para isso. As coisas estão melhorando, sim, mas como em todo o processo de mudança ainda existem muitas contradições. Quer ver um exemplo de contradição? Na própria ISO26000 está lá escrito: as empresas podem lucrar sim, mas não a qualquer custo, existe um limite. Como é que se vai imaginar que a própria empresa seja precursora do limite do seu próprio lucro? Para mudar o paradigma a gente tem que mudar essa lógica. E como é que muda essa lógica? Eu não sei. Falo isso na conclusão da tese: cheguei a algumas conclusões que me levaram a uma série de perguntas e eu não tenho respostas para elas. A única forma que vejo de fazer um caminho diferente é a politização das pessoas.

O GLOBO: Como seria isso?

RITA AFONSO: Com educação, mas não é para todos, é para quem quer de verdade ver essa tal mudança de paradigma acontecer. Acredito no trabalho de educação como uma forma de preparar os jovens para dialogar muito, para aprender a escutar. Todas as contradições que a gente vê hoje acontecendo na relação das empresas com as comunidades é porque não tem escuta. Em duas das empresas que pesquisei, o processo acontece inteiro dentro da empresa. Depois um gerente, que tem mais tantos outros projetos para gerenciar, vai aos patrocinados para ver se eles cumpriram as metas. Se eles não cumpriram, a próxima cota do patrocínio fica suspensa. O projeto visitado é o que dá errado, isso é uma lógica muito perversa porque acaba que ninguém aprende com ninguém. E isso me leva a acreditar que o mundo é dos técnicos porque quem sabe fazer um relatório melhor, vai se dar bem.

O GLOBO: Você acredita nas redes sociais como forma de as pessoas poderem se manifestar contra esse tipo de situação?

RITA AFONSO: Acredito nas redes sociais como um canal de comunicação como outro qualquer, de duas vias. A maneira como ele vai ser utilizado vai depender das mesmas questões que estamos discutindo aqui, de as pessoas se manifestarem nessa história. O problema hoje é que a gente tem um modelo único, a sociedade não questiona que quem se propaga como uma pessoa exitosa seja somente aquela que tem emprego, carteira assinada, ganhando muito dinheiro. Isso é desequilibrado até mesmo com o que se pensa sobre o desenvolvimento sustentável. Afinal de contas, pensa bem: para quê eu preciso de muito dinheiro se um futuro melhor é aquele que tem que diminuir o consumo da maioria e aumentar o poder de consumo dos excluídos?

O Globo, 17/07/2012, Razão Social, p. 4-6

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