VOLTAR

"Escola só mostra índios no passado"

A Tarde On Line - http://www.atarde.com.br/vestibular/noticia.jsf?id=1118151
Autor: Vitor Pamplona
06 de Abr de 2009

Coordenador da Anaí [Associação Nacional de Ação Indigenista], ONG pró-direitos indígenas atuante em 10 Estados, o antropólogo José Augusto Sampaio, 52, comenta a relevância do Dia do Índio e chama atenção para os povos indígenas no Nordeste. A região é, ele diz em entrevista ao repórter Vitor Pamplona, o novo foco das lutas por terras indígenas no País, ao lado do Mato Grosso do Sul. "Após a decisão do STF sobre a reserva Raposa Serra do Sol [o Supremo determinou a retirada de fazendeiros da região] não há mais nenhuma grande área pendente de demarcação".

A TARDE - No próximo 19 de abril, comemora-se o Dia do Índio, que parece sem sentido. Os índios percebem a data?

JOSÉ AUGUSTO SAMPAIO - Percebem, até porque a Funai [Fundação Nacional do Índio] sempre faz festinha. Mas é algo sem sentido mesmo, mais folclórico. Nas escolas, às vezes há professores conscientes, que falam sobre a situação dos índios hoje. Mas na maioria é só fantasiar as crianças e fazer uh-uh [risos]. É macaqueação. Índios que moram nas cidades são convidados para esses eventos, tocam maracá, falam das lutas. Há uma espécie de difusão cultural. Ao menos, é um dia em que as escolas se obrigam a lembrar da existência deles. Não é mau que exista, mas precisa ser melhor aproveitado, tirando esse lado folclórico.

AT - Há uma impressão, reiterada pelo senso comum, de que os índios só estão no Norte do País. Por quê?

JAS - É uma percepção equivocada. Mais de 20% dos índios do Brasil estão no Nordeste. Por ordem, os Estados com mais índios são Amazonas, Mato Grosso do Sul, Roraima e Pernambuco, com mais de 50 mil, à frente do Pará. A escola é muito culpada por essa ideia de que não há mais índios perto de nós, porque retrata os índios no passado. Pegue um livro de História do Brasil e vai estar escrito que os índios viviam em tal aldeia, com tais costumes, tudo no passado. A razão da invisibilidade é essa cultura escolar defeituosa que temos.

AT - Na amazônia, a grande questão indígena é a luta pela terra. E no Nordeste?

JAS - É também, até mais. Na amazônia a questão tem mais evidência porque as terras são grandes e mexem com recursos naturais. Mas, após a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a reserva Raposa Serra do Sol [Roraima], isso está praticamente resolvido. Não há mais nenhuma grande área pendente de demarcação. Só umas pequenas no baixo [rio] Madeira e baixo [rio] Tapajós. Os grandes entraves agora estão no Mato Grosso do Sul e no Nordeste. Entre Minas Gerais e o Piauí, existem cerca de 76 povos em pouco mais de cem territórios, a maioria não demarcados. A dívida com a demarcação no Nordeste é muito grande. Não impacta tanto no interesse do agronegócio, madeireiras e garimpo porque são terras pequenas. Mas, localmente, o impacto é grande, sim.

AT - Quais as áreas na Bahia?

JAS - Na Bahia existem duas grandes questões. Uma é a terra caramuru, na cabeceira do Rio Paraguaçu, [sul do Estado]. Foi criada na década de 1920, mas depois arrendada ou invadida. O Estado chegou a dar títulos de propriedade alegando que a reserva não existia mais. Na verdade, foi abandonada, os índios foram expulsos e os arrendatários viraram proprietários. Só na década de 1980 esse processo foi reaberto pela Funai. O STF começou a julgar essa caso ano passado. Esperamos que conclua ainda esse ano. Como o caso Raposa Serra do Sol deve orientar os demais, espera-se que esse também seja favorável aos índios. São 50 mil hectares, entre os municípios de Camacã e Pau Brasil, que hoje estão na mão de dois grandes fazendeiros. Um já foi acusado de ser testa-de-ferro de Antonio Carlos Magalhães e o outro é Angelo Magalhães, irmão de ACM.

AT - Quantos índios Caramuru-Paraguaçu existem nessa região?

JAS - Mais de 12 mil na área toda, mas tem muita gente se virando em Itabuna, Camacã e região. Estima-se que essa população nas cidades possa chegar a 4 mil índios. É um caso importante na Bahia, cujo processo foi aberto em 1983, há 26 anos. Nesse tempo todo teve violência, morreram índios assassinados em tocaias etc. A outra grande questão do Estado é a dos Pataxó, no Monte Pascoal. Eles não eram reconhecidos como índios até a década de 1970. Estão se reorganizando aos poucos. O processo da reserva foi aberto em 1994 pelo Ministério Público Federal para reconhecer a terra e a própria Funais abriu em 1998. Logo depois, eles começaram a ocupar o parque do Monte Pascoal e formaram aldeias novas. O processo está em curso na Funai, inclui todo o parque nacional, mas a proposta de reserva também é ocupada por fazendas de fruticultura e principalmente plantio de eucalipto, da Veracel. Por enquanto está em instância administrativa.Há um prazo para contestações, que venceu em novembro, e outro para a Funai responder a estas contestações. Como deve negar todas, o pessoal [empresários e fazendeiros envolvidos] deve depois partir para a Justiça. O grande adversário deve ser mesmo a Veracel, que recentemente foi denunciada pelo MP por não ter título de terras onde planta eucalipto na região, não só indígenas, mas terras do Estado também. Outros adversários devem ser empresários portugueses e espanhóis que estão comprando terras no litoral para fazer resorts.

AT - A contribuição indígena para a cultura brasileira não tem sido apagada, comparada com a cultura negra?

JAS - A opinião pública é formada nos grandes centros. Neles há uma presença negra muito grande, mas não há presença indígena. Mas é preciso perceber que tomar banho todo dia é herança indígena - os europeus não tomam. Se você gosta de chocolate e amendoim, lembre que são plantas domesticadas pelos índios. Sem falar na farinha de mandioca, que até aqui na Bahia se come mais do que dendê. E tem a linguagem. Falamos tantas palavras de origem indígena quanto de origem africana. E, no Brasil rural, as habitações ainda são muito derivadas das habitações indígenas, as palhas, piaçava, sisal.

AT- Mas não se liga explicitamente isso ao índio, mas ao homem do interior, o camponês.

JAS - Sim, isso é também um problema de educação, mas igualmente o resultado de um processo histórico deliberado de apagamento de qualquer traço indígena no Brasil. Os negros também passaram por isso, mas tiveram mais força para lutar contra. Fomos educados para pensar que somos um só povo, com uma só cultura, que teve as suas "contribuições". Mas esse papo apaga o fato de que essas coisas estão presentes hoje, de forma muito diferenciada. Isso mudou um pouco depois da redemocratização e da Constituição de 1988, que reconhece a existência dos saberes diferenciados dos índios e seus direitos de manter e praticar seus costumes. A grande contribuição da Constituição foi que, pela primeira vez, foi reconhecido que esta é uma nação plural, com vários povos e culturas, inclusive o direito de modos diferenciados de aprendizado nas escola indígenas. A questão da imputabilidade do índio passa a ser vista dentro de seus usos e costumes. Os índios não são inimputáveis, mas os crimes têm que ser filtrados pelo que diz Constituição. Na comunidade indígena, é em princípio imputável segundo as leis da comunidade. Leis que a Constituição reconhece. A lei prevê a leitura dos contextos.

AT - A cidadania dos índios não foi de, alguma forma, limitada pela Constituição?

JAS - Os índios no Brasil hoje votam. Há mais de 100 vereadores índios na Bahia, eleitos pela comunidade. O acesso á cidadania é pleno, agora é uma cidadania diferenciada. A não ser os índios em situação mais isolada, sem domínio do português, como os Ianomains na Amazônia. Aí o voto é faculdado, mas é cada vez mais raro. Índio hoje precisa ter identidade, CPF, carteira de reservista. Até para ter acesso a projetos do governo. São direitos diferenciados, mas não há mais direito. Não é verdade que o Estado dê muita coisa para índio. Na verdade, costuma até ser negligente.

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.