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Escola de indio, professor indio. Finalmente!

Nova Escola, p.50-55
30 de Abr de 2004

Escola de índio, professor índio. Finalmente!
Depois de séculos nas mãos dos "brancos", a educação indígena agora está sob o comando das aldeias. E a cultura local não se perderá mais na sala de aula
Manhã de fevereiro na aldeia Bodoquena, a 468 quilômetros de Campo Grande (MS). É dia de festa para a comunidade de 1592 índios kadiwéus. Crianças e adultos chegam ao barracão, em frente à escola, com sua melhor roupa: vestidos coloridos, sapatos de salto alto, gravatas com nó caprichado e paletós bem passados. Lá não há luz elétrica, mas o ferro de passar é esquentado nas bocas do fogão à lenha. Em alguns rostos, a marca da identidade do povo, pintura de traços bem finos feita de jenipapo e carvão pelas mãos calejadas das mulheres. O motivo da comemoração é a formatura de 20 alunos — 17 kadiwéus, dois kinikinaus e um não-indígena — no curso de magistério. Agora, a escola da aldeia será tocada pelos próprios índios, que são capacitados em um programa específico para eles. "Sinto muito orgulho por fazer parte dessa fase feliz de nossa história", diz Martina de Almeida, formanda que leciona há dez anos. Para os 315 alunos de Ensino Fundamental, a festa é momento de fazer planos. "Quero ser professora também", diz Débora da Silva, de 9 anos. Para a comunidade, a cerimônia representa a certeza de que a cultura local não se perderá nas salas de aula. E para o país, enfim, a colação de grau é um retrato fiel e reduzido das mudanças que estão ocorrendo no ensino indígena nas últimas décadas. Hoje, a escola garante a manutenção das tradições e serve como ponte para o mundo fora da aldeia.

Currículo incorpora os costumes e saberes da tribo
Há mais de 2 mil professores cursando o magistério indígena, um número nunca antes alcançado. De fato, desde a década de 1970, os índios já lecionavam, mas eram poucos frente aos não-indígenas. Só a partir da Constituição de 1988 e mais fortemente com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, é que eles passaram a ser reconhecidos legalmente em suas diferenças e peculiaridades.
O Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, lançado em 1998 pelo Ministério da Educação (MEC), reafirmou brilhantemente o direito ao ensino bilíngüe e a um currículo que privilegia os conhecimentos, os costumes, a história e as necessidades de cada nação (leia reportagem sobre o trabalho do professor indígena Josimar Tapirapé). Essa nova concepção pedagógica permite que nas aulas de História, por exemplo, sejam valorizados relatos orais, desenhos, imagens e músicas da comunidade como importantes saberes escolares. Os estudantes indígenas são sujeitos da história e podem documentar e divulgar seus feitos. Como poucos livros mencionam a participação dos kadiwéus na Guerra do Paraguai (1864-1870), eles escreveram uma versão nova para esse episódio, o livro Construindo com as Próprias Mãos. A obra foi produzida sob a coordenação de Giovani José da Silva — professor nota 10 na edição de 2001 do Prêmio Victor Civita — que dá aulas na aldeia desde 1998.
Em Educação Física, jogos, danças, brincadeiras, técnicas de caça, pesca e plantio são explorados em atividades de desenvolvimento corporal. O professor Josiney da Silva Rufino já incorporou as mudanças em suas aulas na 2ª série. Para trabalhar a força dos músculos e o espírito de equipe, seus alunos jogam futebol, mas também participam de brincadeiras antigas, como o jogo da mandioca. Várias crianças se agarram a uma árvore — como a raiz desse planta se prende ao chão — enquanto um colega tenta arrancá-las. Vence quem permanecer preso ao tronco.

No passado, a escola era assunto dos não-indígenas
Há bem pouco tempo, a prática de Josiney seria considerada uma aberração. Um relatório da Fundação Nacional do Índio (Funai) de 1981 ilustra bem isso: "As professoras fazem parte da equipe Indigenista Missionária e parecem gostar do trabalho. Não são bilíngües, mas como são bastante autoritárias e críticas com relação ao comportamento tradicional do grupo, sofrem atritos na aprendizagem".
Os relatos dos antigos alunos revelam as marcas irreparáveis daqueles "atritos". "Fui humilhado por não dominar a língua portuguesa. O que a gente mais temia era apanhar de palmatória", conta Gilberto Pires, presidente da Associação dos Professores do Território Indígena Kadiwéu (Aprotik). Isso em plena década de 1980!
As primeiras escolas indígenas do Brasil foram implantadas por missionários religiosos, como o padre Anchieta, no século 16. Uma delas deu origem à cidade de São Paulo. Diferentemente das professoras mencionadas no relatório da Funai, o padre obtinha grande sucesso na catequização, porque dominava a língua tupi da costa do país. Em geral, exceto algumas experiências oficiais malsucedidas, até o começo do século passado eram os missionários e os técnicos de serviços de proteção aos índios que entravam nas aldeias para lecionar. "Ninguém melhor do que os integrantes da tribo para articular e orientar os conhecimentos ancestrais. Essa descoberta aconteceu nas três últimas décadas", afirma Giovani José da Silva. Para quitar a dívida do passado, é necessário garantir ainda o Ensino Médio e o superior para esses povos.
Assim como os idosos, professores têm prestígio
Entre caciques, pajés e anciãos, os professores que se formaram são as novas figuras de destaque nas comunidades. Eles são reconhecidos como nigaxinaganaga, "aqueles que sabem", e estão garantindo às crianças e aos jovens da aldeia acesso aos direitos de qualquer cidadão. Por isso, na cerimônia de colação de grau, uma meme (vovó, em kadiwéu) cantou para homenagear os formandos. "Que bom poder viver tanto para ver meu povo no caminho certo", comentou dona Durila Bernaldina, de 119 anos! Emocionada, não conseguiu terminar seu cântico de felicidade.
Os conhecimentos adquiridos pelos professores agora se somam aos dos idosos. Nas aulas de Biologia, as memes ajudaram a elaborar um livro com informações para combater as doenças sexualmente transmissíveis. "Há receitas com ervas e cascas de árvores para diversas enfermidades, mas também orientações de especialistas", conta Léia Teixeira Lacerda, professora não-indígena do curso de formação.
Os professores também se destacam nas discussões sobre assuntos de interesse da comunidade. E estão fazendo da escola um elo entre o mundo moderno da tecnologia e o universo indígena. Em breve, a luz elétrica chegará à aldeia e, com ela, a televisão (e os ferros de passar poderão ser utilizados sem os fogões a lenha!). Por sugestão dos alunos do curso de magistério, os possíveis efeitos causados pela TV na dinâmica da tribo estão sendo discutidos pelas lideranças. Aqui, se vê a escola cumprindo plenamente a função de produtora e mantenedora de saberes locais. As decisões são sempre coletivas, as crianças são consideradas cidadãs, os pais participam ativamente do projeto pedagógico escolar e os professores são respeitados pela comunidade. Uma lição e tanto nesse mês em que se comemora o Dia do Índio.

Quer saber mais?
Escola Municipal Indígena Ejiwajegi — Pólo, Aldeia Bodoquena, 79390-000, Bodoquena, MS
Giovani José da Silva, e-mail: giovanijosedasilva@ig.com.br

Quem quer andar de tatayãroo?
Tatayãroo é barco a motor em tapirapé. E foi uma das palavras criadas pelo professor Josimar e sua turma para manter vivo o idioma e a identidade de sua nação indígena
Apesar das guerras com tribos inimigas, das doenças e do contato com a cultura dos não-indígenas, os tapirapés resistiram e hoje compõem um grupo de 620 índios que vivem em cinco aldeias no Mato Grosso. Melhor: a língua, grande patrimônio cultural de uma nação, não se perdeu. Mesmo sofrendo forte influência do português, o idioma está sendo preservado. E um dos grandes responsáveis é Josimar Xawapareymi Tapirapé, professor de Língua Indígena da Escola Indígena Estadual Tapiitawa.
Para lutar pela cultura de seu povo, ele aproveitou o que tinha em mãos: a escola, que se converteu em fonte de resistência do tapirapé por meio de um projeto pedagógico de sucesso. Em sala de aula, Josimar promoveu o uso de palavras esquecidas e criou novas para designar objetos que não existiam na vida dos índios, como bicicleta, boné, trator e avião.
Os pais estão aprendendo com os filhos os novos vocábulos e assim a língua se expande, forte e viva na aldeia Urubu Branco, uma vila com pouco mais de vinte casas de sapé, em meio a fazendas de cana-de-açúcar. "Nós queremos conhecer a língua portuguesa, mas sem deixar de falar o nosso próprio idioma", afirma categórico esse professor sorridente, que leciona para turmas de 2ª série. Josimar está garantindo, assim, a conquista de um importante território para os índios — o lingüístico.

Plano de aula
Em busca da palavra perdida
Calcula-se que havia mais de 1300 línguas indígenas quando os portugueses chegaram aqui. Hoje, há cerca de 180 em diferentes estágios de manutenção e revitalização. Uma delas é o tapirapé. Josimar foi certeiro ao elaborar um projeto que privilegia o orgulho de fazer parte de um povo minoritário e falar uma língua pouco conhecida em um país que tem o português como idioma oficial e dominante. E seus alunos aprenderam mais que expressões antigas e novas, mas tradições esquecidas. "Nosso tesouro agora está salvo. Esse projeto só reforçou o meu amor pela sala de aula", conta o professor, que recusou o convite para se tornar diretor da escola.
Ouvidos atentos
Certa vez em uma caçada dedicada à divindade "Tataopãwa" — um rito para alegrar os espíritos —, Josimar se deu conta de que algumas expressões usadas pelos mais velhos eram estranhas aos seus ouvidos e aos da maioria da população de sua aldeia. Ficou atento ao linguajar dos alunos e percebeu que palavras portuguesas estavam ocupando espaço demais nas conversas. Passou a anotar as novas descobertas lingüísticas e gravar em fita cassete diálogos que ocorriam na aldeia. "Vi que aquelas informações poderiam render um projeto para melhorar o desempenho da turma em leitura e escrita e manter o português como segunda língua", afirma Josimar.
Na aula de História, o professor falou sobre o passado da língua tapirapé e mostrou a situação de representantes de outras etnias que não sabem mais falar a sua própria língua. Em seguida, apresentou as fitas gravadas, escreveu na lousa as expressões que foram ouvidas e pediu para cada aluno formar novas frases, substituindo as palavras portuguesas.
Durante outra atividade, Josimar distribuiu à classe um texto onde o português e o tapirapé se misturavam. Depois, colocou as crianças em fila e explicou que cada uma representaria uma das palavras do texto, na ordem em que apareciam. Leu pausadamente a história e o aluno que fazia o papel de um vocábulo em português deveria substituí-lo por um correspondente em tapirapé antes de ser eliminado da brincadeira. Quem caía com uma palavra tapirapé ia para o fim da fila e continuava no jogo.
Para finalizar, Josimar transformou os estudantes em pesquisadores. Todos foram visitar a casa dos idosos da aldeia. Lá, ouviram lendas e mitos e anotaram palavras desconhecidas.
Neologismos indígenas
De volta à escola, a garotada procurava o significado de cada uma das palavras descobertas. A estratégia deu tão certo que os alunos continuaram a pesquisa mesmo depois do fim da atividade. O professor passou a criar palavras novas para objetos que não existiam na língua, como tatayãroo, que significa barco a motor. O termo corresponde à junção de tatã, (fogo), yãra (canoa) e towoo (grande). E os pais, apoiando inteiramente o trabalho, passaram a utilizar os vocábulos novos e os antigos em seu dia-a-dia.

Objetivos
 
O projeto de Josimar está totalmente em sintonia com o Referencial Curricular Nacional para Escolas Indígenas ao atribuir prestígio à língua materna de seu povo, contribuindo para que seus alunos valorizem a identidade cultural. Ao pesquisar palavras que caíram em desuso pela comunidade, reforçou a importância do reconhecimento dos saberes dos mais velhos e favoreceu o desenvolvimento oral e escrito da língua indígena em atividades de dramatização, ilustração e investigação de vocábulos antigos e novos.

Quer saber mais?
Escola Indígena Estadual Tapiitawa, Aldeia Indígena Urubu Branco, 78652-000, Confresa, MT

Nova Escola, Abril / 2004. p. 50-55

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