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Entrevista: "Não quero ser um profissional da denúncia", diz diretor de Corumbiara

Amazonia.org.br - http://www.amazonia.org.br/noticias/noticia.cfm?id=325798
Autor: Fabíola Munhoz
31 de Ago de 2009

O documentário "Corumbiara", de Vincent Carelli, impressionou os jurados do 37ª edição do Festival de Gramado e levou o Kikito de melhor filme. O vídeo retrata os vinte anos de massacre dos índios na Gleba Corumbiara, em Rondônia, episódio que apareceu na mídia em 1985 e depois caiu no esquecimento.

Carelli, que também levou o prêmio de melhor diretor pelo documentário, é indigenista há 40 anos, e já viveu na Amazônia, em diversos povoados indígenas, dentre os quais: Kaiapó, Assurini, Parakapegê e Kraô. Seu interesse pela causa indígena vem desde os seus 16 anos, quando foi visitar um amigo missionário dominicano que trabalhava com os índios.

Em entrevista exclusiva ao site Amazonia.org.br, o diretor que, durante a produção de Corumbiara, sofreu ameaças e chegou a ser preso por fazendeiros da região fala sobre as causas da violência contra os índios e a importância de se retratar a existência da cultura desses povos, que vem sendo ignorada e destruída.

Amazonia.org.br- Com quais etnias você se relacionou em Corumbiara?

Carelli- Corumbiara, antes da década de 50, era um complexo cultural, assim como o Xingu que é uma junção de 23 povos, que interagem, trocam mulheres, casam e fazem festa junto. Aquela região era um complexo cultural com muitas etnias. Mas, sobrevivente daquela época a gente só achou duas etnias, a Kanoê e a Akunt'su que estão no filme.

Amazonia.org.br- Durante o tempo que viveu com os índios, você presenciou outras situações de violência como a retratada em Corumbiara?

Carelli- Olha, na Amazônia tem conflito por toda parte. Em toda parte aonde eu fui, onde eu vivi e onde eu trabalhei, tem esse tipo de conflito. E a Amazônia é uma coisa meio barra pesada, né? Lá há principalmente conflitos fundiários, que são os mais violentos.

Amazonia.org.br- Por que você decidiu contar a história dos índios de Corumbiara?

Carelli- Foi circunstancial. Eu estava começando o projeto Vídeo nas Aldeias, e fui chamado. Disseram "aproveita que está aí e vem filmar os vestígios de um acontecido". Então eu fui lá, documentei e acompanhei a história.

Amazonia.org.br- Mas, você não tinha a intenção de denunciar o massacre dos índios com o documentário?

Carelli- Claro. Sem dúvida o registro foi feito para servir de prova. Porque tinha lá instrumentos, plantações, ferramentas, cerâmicas dos índios. Então, registrar essas coisas era importante. Porque já que se negava a existência dos índios e se negava o massacre, para contra-argumentarmos, tínhamos que apresentar alguma coisa, coisas concretas. E os sinais da presença indígena são inequívocos. O cara pode dizer que não viu, mas estão lá. Registrar é fundamental, é uma prova técnica.

Amazonia.org.br- Você chegou a apresentar essas provas da existência dos índios à Justiça?

Carelli- Ao longo desse processo, sempre, a filmagem, antes de virar documentário, passou pela mão da Justiça Federal de Porto Velho (RO), que acompanhou o caso de perto e foi fazendo as intervenções de área, e foi conseguindo os mandatos de busca nas fazendas para poder encontrar os sobreviventes. Enfim, então as imagens serviram de testemunho.

Os próprios índios "do buraco" [etnia desconhecida que perambula pela região oeste de Rondônia, próximo à cidade de Corumbiara], que ninguém contatou ainda, nós temos imagens deles. Ou seja, pelo menos isso prova que eles existem. A primeira polêmica é sempre essa. A conversa é se existe ou não existe, é palavra contra palavra. Os fazendeiros dizem que não existe e como ficamos? Nesse caso, a imagem resolve essa questão.

Isso serviu para a Funai [Fundação Nacional do Índio] acionar a justiça de Porto Velho, que emitiu várias decisões a favor dos índios, preservando a sobrevivência física pelo menos dos sobreviventes.

Amazonia.org.br- Diante dessa sua intenção de denúncia, você esperava um final diferente para o documentário Corumbiara?

Carelli- Eu pensei que a história teria um desenlace, que seria uma investigação, uma incriminação de pessoas. Mas, depois, passaram-se tantos anos que hoje acho que o testemunho é mais importante. É claro que merecia a punição dos culpados, mas pelo menos, o filme não deixa passar em branco e, mais do que isso, provoca uma consciência sobre coisas desse tipo que aconteceram e continuam acontecendo. O filme cumpre sua missão específica na história.

Amazonia.org.br- Que fim tiveram os autores do massacre de Corumbiara?

Carelli- A historia não foi sequer investigada. Não existe nem como inquérito policial. Foi encerrado o caso.

Amazonia.org.br- O sucesso do filme poderia mudar isso?

Carelli- Eu gostaria, mas não tenho muita ilusão.

Amazonia.org.br- Você não temia que a exposição dos índios de Corumbiara pudesse aumentar a violência contra eles?

Carelli- Bom, se a gente for por aí, não faz nada mesmo. A gente tem que acreditar em alguma coisa. Mas, nesse caso específico, eles [índios de Corumbiara] são bem assistidos pela Funai nesse momento. Tem outros povos isolados sofrendo outros tipo de violência na fronteira com o Peru e tal. E isso não é o filme que vai aguçar. São interesses dos madeireiros, são coisas mais pragmáticas.

Amazonia.org.br- Você pretende retratar outra dessas situações de agressão aos índios?

Carelli- Não. Essa história eu levei até as últimas consequências porque ela atravessou o meu caminho, mas não quero de jeito nenhum ser um profissional da denúncia. Tem coisas mais interessantes para fazer. Problema tem muito, mas o foco principal do nosso projeto é formar cineastas indígenas, produzir e divulgar seus trabalhos. Esse é o foco da instituição.

Amazonia.org.br- E como é o trabalho no projeto Vídeo nas Aldeias?

Carelli- A maioria dos filmes que a gente produz e os índios produzem são sobre questões culturais. O projeto abrange entre 20 e 25 aldeias na Amazônia, no Rio Grande do Sul, no Mato Grosso e no Brasil central.

Amazonia.org.br- Os índios se interessam pela produção de materiais em vídeo?

Carelli- Sem dúvida. Para eles, é muito importante para a questão da memória, da identidade, da visibilidade.

Amazonia.org.br- As produções dos índios também permitem mostrar a destruição dos recursos naturais da Amazônia?

Carelli- Sim. Em Corumbiara, você vê carretas de madeira passando ao longo de 20 anos ininterruptamente.

Amazonia.org.br- O que significou para você o prêmio em Gramado?

Carelli- A questão do filme é conseguir tocar as pessoas. O prêmio é importante porque toca um público que não é habitual dessa temática justamente. Então o prêmio amplia a difusão da denúncia, da reflexão. Isso é importante.

Veja o tralier de Corumbiara.

Saiba mais sobre o projeto Vídeo nas Aldeias:

http://www.videonasaldeias.org.br/2009/

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