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Entre o Sonho Guarani e a Vida Severina

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Autor: Saulo Feitosa
26 de Jan de 2007

Estamos ao lado da cova de Xuretê, eu, Egon e Valter Kaiowá. Apenas nós três a contemplar o
desolador cenário de morte e dor. O silêncio é interrompido pelo clicar da câmera nas mãos de
Egon.

Fico a pensar quantas vezes esse meu companheiro repetiu tal gesto para registrar
semelhantes cenários. Imediatamente veio-me a lembrança da cova de Dorvalino Kaiowá,
fotografada por ele no Natal de 2005. Procuro fugir das tristes lembranças e silenciosamente
rezo o Pai Nosso. Agora recordava as cenas imortalizadas pelo teatro na adaptação da obra de
João Cabral, Morte e Vida Severina: a cova com palmos medida, o latifúndio, a parte que
coube a Xuretê, a parte que cabe aos Kaiowá, aos Sem Terra, aos Quilombolas, aos que
Lutam, aos que Sonham. Fico a pensar nas tantas Vidas Severinas. Olho em minha volta e lá
estavam Egon e Valter. Um pouco mais adiante encontravam-se três mulheres a conversar,
uma delas em adiantado estado de gestação. Mais uma Vida Severina? Um novo guerreiro
para lutar por seu povo? Que surpresa nos prepara aquele ventre?

Havíamos chegado ao acampamento aonde encontram-se os indígenas expulsos da fazenda
Madama, invasora do tekohá Kurussu Ambá, na manhã do dia 20 de janeiro. Viajamos
juntamente com representantes de várias entidades que fazem parte da Coordenação dos
Movimentos Sociais do Estado do Mato Grosso do Sul, num total de 15 pessoas. No dia
anterior participamos de uma entrevista coletiva à imprensa, em Campo Grande, ocasião em
que 3 representantes da comunidade e uma liderança da Comissão de Terras Guarani tiveram
oportunidade de desmentir as falsas informações veiculadas pela mídia local desde o dia 4 de
janeiro, data da retomada da terra indígena Kurussu Ambá. Nossa chegada ao acampamento
era ansiosamente esperada pelos indígenas. Depois de termos sido recebidos com danças em
duas rodas formadas por anciãos e crianças, muitas pessoas começaram a falar
simultaneamente, pois desejavam ser escutados pelas entidades e conseguir dessas apoio e
testemunho em seu favor. Afirmavam serem vítimas de uma grande armadilha dos
fazendeiros, que resultou em sequestros, tentativa de homicídio e assassinato de pessoas da
comunidade, bem como na prisão de seus líderes, sob a acusação de roubo de um trator, uma
carreta e extorsão qualificada. Sentiam-se abandonados, totalmente desprotegidos, jogados à
beira da rodovia que liga as cidades de Amambai e Coronel Sapucaia/Capitão Bado (lado
paraguaio).

A gravidade dos relatos impactavam a todos: o pequeno Odair de apenas 4 anos ouvia tudo
atentamente. Relataram-nos que ele fora sequestrado por fazendeiros enquanto se deslocava
pela estrada em companhia de dois adultos. Os fazendeiros atiraram contra os dois, que
fugiram deixando a criança para trás. Depois de ficar desaparecido por 6 dias, um fazendeiro
informou à comunidade que o havia deixado na casa do índio, na cidade de Amambai, local em
que foi finalmente localizado. Joana, mãe de Natalino, 16 anos, nos contou que ele encontra-se
desaparecido desde a madrugada do dia 8 de janeiro.

Depois de ter sido algemado por fazendeiros na rodovia MS 289, ele juntamente com sua mãe,
mais cinco adultos e algumas crianças foram levados para a delegacia de Amambai. Lá
permaneceram todos numa cela durante algumas horas. Tarde da noite, mulheres e crianças
foram liberadas, enquanto 4 homens permaneceram presos. No lado de fora havia uma
ambulância onde todos foram jogados para serem transportados à aldeia Taquaperí, mas
Natalino não entrou, pois informaram que o veículo estava cheio. No momento alguns
fazendeiros se aproximaram e disseram que Natalino necessitava ficar para prestar
depoimento. Foi a última vez que ela viu seu filho, na porta da delegacia. Seguiam-se a esses
outros tantos relatos de violência contra pessoas, invasão da terra indígena por fazendeiros
dirigindo caminhonetes com placas do Paraguai, ataques noturnos etc. Cada vez mais
aumentava a nossa indignação. Lembrei que Egon, ao sair de Campo Grande me comunicou
que levaria um notebook por precaução. Surgiu-me a idéia de tomarmos a termo alguns
depoimentos e para tanto contamos com a concordância de Rogério, assessor jurídico do Cimi
no MS, que assumiu a tarefa. Necessitávamos ainda de uma impressora, que nos foi
emprestada pela escola indígena da aldeia Taquaperí. Como não havia papel nem disquete,
Egon, Geraldo, Eugênio kaiowá e eu nos deslocamos ao país vizinho, mas na cidade de Capitão
Bado só encontrávamos ?librerias evangélicas? que não dispunham do que procurávamos.

Uma niña atenciosa nos informou que poderíamos encontrar aqueles produtos em um
supermercado que ficava no lado brasileiro e assim o foi.

A tomada dos depoimentos se estendia ao longo do dia. Tudo era muito demorado, pois
dependia de tradução e para tanto contamos com a ajuda de Adão Benites, professor Kaiowá,
assim os relatos se tornavam cada vez mais claros. Já começava a escurecer quando
decidimos suspender os depoimentos, pois pretendíamos parar em Amambai e visitar os índios
presos. Chegando à Penitenciária apresentamo-nos como representantes da caravana em
apoio aos Kaiowá e manifestamos nosso desejo em visitar os 4 indígenas presos. O agente
penitenciário que nos atendeu solicitou a relação de todas as entidades presentes, o que lhe foi
entregue. Poucos minutos depois retornou com a informação de que, considerando a avançada
hora, quando todos os detentos já estavam recolhidos em suas celas, a visita só poderia
ocorrer com autorização judicial. Refletindo sobre as dificuldades em localizar o juiz, o cansaço
de todos e os mais de 450km de estrada a serem percorridos até Campo Grande ainda naquela
noite, decidimos que um grupo menor retornaria durante a semana para realizar a visita. Egon
e eu já estávamos decididos a pernoitar em Dourados, 130 km distante de Amambai, enquanto
Rogério retornaria de carona para a capital do estado. No percurso até Dourados estivemos em
companhia de Geraldo, da equipe do Cimi em Dourados, Eugênio e Adão, professores Koiowá.

Antes de chegarmos lá paramos em Caarapó para visitar a irmã Anarí, que àquela hora já se
encontrava na cama, mesmo assim levantou-se e nos acolheu preparando um delicioso café
para afastar nosso sono e prosseguirmos viagem. Passava um pouco da meia noite quando
chegamos ao nosso destino.

No dia seguinte, domingo 21, acordei muito cedo. Recorri ao celular para saber a hora,
passavam alguns minutos das quatro. Tento retomar o sono, mas sou impedido pelas imagens
presentes em minha memória. Muitos rostos tristes, dentre eles o de Cacilda, mãe de Odair,
menor sequestrado, esposa de Francisco, preso (juntamente com ela, que fora liberada depois)
dois dias após o sequestro de Odair e filha de Xuretê, assassinada um dia após a prisão de
Francisco. Como entender tanta desgraça em tão pouco tempo? Como aquela mulher é capaz
de suportar tanta dor? Começo a pensar nos quatro que estão presos. O que passa por suas
cabeças ao verem-se trancafiados numa penitenciária, depois de terem caído na armadilha da
pessoa que lhes emprestou o trator para transportar alimentos e em seguida registrou
ocorrência de roubo do mesmo e preparou o flagrante? Nesse caso é impressionante a rapidez
e eficiência da atuação da polícia e do Ministério Público estadual. Em apenas 8 dias o inquérito
foi concluído e o MPE ofereceu denúncia. Não tenho como evitar comparação com outros casos
que acompanhamos, onde as vítimas são indígenas. O exemplo mais próximo é o assassinato
de Xuretê. Onde está o empenho da polícia em identificar os fazendeiros responsáveis? Há pelo
menos uma testemunha que reconheceu o autor dos disparos. Mas há centenas, milhares de
casos onde os inquéritos se arrastam por tempo indeterminado: Dena Truká e seu filho Jorge,
executados por policiais militares de Pernambuco em junho de 2004, o inquérito ainda está
inconcluso, o inquérito do irmão Vicente se arrastou por mais de 10 anos e somam-se a esses
uma lista sem fim de exemplos que envolvem vítimas sem terra, agentes de pastoral, pessoas
comuns etc. Sem levar em consideração todos aqueles em que nem mesmo há apuração e
caem no esquecimento.

Outras imagens fortes vêm-me à mente: a cova de Xuretê em frente à pequena choupana de
sua filha. Dentro dela apenas duas camas sem colchões e nada mais. Seus poucos panos
foram incendiados pelos fazendeiros durante o ataque ao Kurussu Ambá. Apenas poucos
metros depois, a choupana de Xuretê com paredes de taquara e cobertura de uma espécie de
piaçava. Estava totalmente fechada. Do lado de fora um cachorro branco com pintas pretas,
ainda chorando a morte de sua dona. Impressionou-me que ao ver dois estranhos
aproximando-se da casa sobre a qual parecia manter vigilância não esboçou qualquer reação.

Observou-nos com certa indiferença e manteve-se quieto, deitado. Sua atitude possibilitou que
Egon fizesse algumas fotos, enquanto eu admirava a arquitetura daquela habitação deserta.

Pondo-me ao lado da casa, percebi que sua altura máxima não alcançava meus ombros e seu
diâmetro não ultrapassa doze metro quadrados. Pelas frestas, via-se alguns panos no chão,
não mais que isso. Recorro mais uma vez ao relógio do celular, são 5 horas e já escuto os
passos de Egon pela sala. Levanto-me e conto-lhe que não consigo parar de pensar nas
pessoas do acampamento e em seus sofrimentos. Proponho-lhe adiarmos nosso retorno a
Campo Grande para o dia seguinte e voltarmos ao acampamento para tomar novos
depoimentos e levar esposas e filhos para uma visita às lideranças presas. A proposta foi
prontamente aceita e logo cedo nos deslocamos para lá. Agora ia também conosco o pe. Jorge
Dal Ben.

Chegando à comunidade, Egon assumiu a tomada de depoimentos, enquanto Geraldo e Jorge
conversavam com as pessoas. Para min coube a tarefa de levar as pessoas para visitar seus
familiares presos. Saímos em direção à Amambai. Comigo estavam Cacilda, esposa de
Francisco e seu filho Adelson; Ramona, esposa de Osvaldo e Hortência, mãe de Cassemiro.

Rubem, o outro preso, é solteiro e seus pais não estavam no acampamento. Cacilda e Adelson
haviam conversado comigo no dia anterior, mas as outras mulheres não, o que lhes deixava
um tanto desconfiadas. No caminho fui tentando quebrar o gelo e repeti meu nome várias
vezes, orientando-as que se alguém perguntasse quem sou eu e se me conhecem
respondessem meu nome e dissessem que sou da Igreja Católica e trabalho lá na aldeia. Essa
orientação logo foi posta em prática, pois próximo a Amambai fomos parados por uma blitzen
da PM que nos encheu de perguntas.

Chegamos enfim à penitenciária. Aquela seria a primeira visita que fariam a seus parentes
desde o dia que foram detidos. Na porta, muitas pessoas, principalmente mulheres com
sacolas contendo biscoitos e alguma roupa para os seus visitados. Olhei as indígenas e me dei
conta que nada traziam. Perguntei-lhes se não trouxeram nenhuma roupa, pois os quatro
ainda deveriam está com as mesmas com as quais foram presos. Recebi como resposta ?não
temos nada?. Lembrei de minha bolsa de viagem no porta malas e lá ainda havia uma camisa
limpa, duas camisetas e duas calças. As mulheres olharam o que ficaria melhor em quem e já
fizeram uma distribuição prévia, antes de entrarem no presídio. Passamos também num
supermercado e compramos biscoitos. Organizamos quatro sacolas, uma para cada. Tudo
pronto para a visita.

Aproximamo-nos da porta principal e dirigimo-nos a um agente penitenciário, que mesmo
antes que eu perguntasse alguma coisa, comunicou-me que a visita era só para parentes em
primeiro grau e perguntou-me se eu tinha algum familiar lá dentro. Respondi que estava
apenas acompanhando as mulheres e Adelson e eles tinham pai e esposos prisioneiros. Exigiunos
documentos comprobatórios do grau de parentesco, devendo os mesmos conter fotos ¾.
Esclareci que nem todos eram portadores de documentos, mesmo porque seus pertences
haviam sido encendiados por fazendeiros da região quando invadiram e destruiram suas
habitações. O agente percebeu outro impedimento, Ramona estava de bermuda (abaixo do
joelho) e aquela roupa não era permitida no ambiente. Além do mais deveria cada um trazer
duas fotos para o presídio preparar uma carteirinha de visitas e assim se seguiam outras
exigências ampliadas pela má vontade do atendente. Pacientemente busquei um diálogo mais
conseqüente. Chegamos a um acordo e os quatro puderam entrar, com a advertência que ?por
hoje passa, mas da outra vez devem cumprir as exigências?.

Eu havia combinado com o pessoal que a visita teria uma duração de duas horas, pois às
13:00h deveríamos retornar ao acampamento. Enquanto isso, eu daria umas voltas pelas ruas
da cidade. Nesse ínterim consegui um lugar para comer algo e depois fui até um orelhão de
onde telefonei para Rosane e lhe falei longamente sobre os fatos, as dificuldades. Desligando o
telefone, caiu-me a ficha: por que não retornar ao presídio e tentar falar com o diretor? Era
preciso entrar e ver a situação dos presos. Chegando lá não foi necessário solicitar ao diretor,
pois consegui autorização de entrada com o mesmo agente que nos atendera antes.

Na porta encontro Adelson já de saída e sugiro que me acompanhe. Começo a transitar pelos
estreitos corredores superlotados pelos visitantes e logo alguém deduz tratar-se do presidente
da Funai. Muito rapidamente procuro desfazer o mal entendido e explico que entre o tal
presidente e eu há inúmeras diferenças, não apenas físicas. Solicito de Adelson apertar o passo
até a cela onde estão as lideranças, mas somos interrompidos por algumas pessoas que nos
cumprimentam, muitos rostos indígenas. Chegamos até Francisco, que também já havia
recebido a notícia da presença do presidente da Funai, explico-lhe quem sou, chegam os
outros indígenas e conversamos de maneira rápida, ninguém se queixa de violência física, mas
todos afirmam receber um tratamento desrespeitoso e dizem serem vítimas de uma armação,
insistem que precisam ser retirados de lá com urgência e pedem-me atenção a seus processos.

Começo a retornar e sou interrompido por um agente penitenciário que se demonstra bastante
preocupado com a situação de outros índios que também cumprem pena ali. Pede-me para
conversar com uma jovem indígena detenta e ouvir seu relato. É da aldeia de Amambai, foi
condenada por homicídio, mas jura inocência. Na seqüência outros agentes também me
procuram e relatam o desprezo em que se encontram os índios detentos. Uma agente me
pergunta se a fazenda do conflito está próxima a Ponta Porã, o papo se estende. Chega o
diretor da penitenciária e indago-lhe sobre o total de presos, responde-me que são 145.

Pergunto-lhe se há muitos indígenas, sim 48 entre homens e mulheres. Desejo saber se
alguém da Funai aparece para visitá-los, responde-me que às vezes, mas logo em seguida
complementa, ?para falar a verdade ninguém aparece aqui, esses índios estão abandonados?.

Um outro agente interfere no diálogo e diz que muitos indígenas deveriam ter saído para
passar o Natal em casa, mas o advogado da Funai não aparece por lá, que o advogado que
assiste ao presídio não pode atender aos indígenas porque é atribuição do advogado da Funai,
mas esse por sua vez nada faz...

Voltamos ao acampamento e lá os visitantes informaram à comunidade sobre a situação de
seus líderes. Ao cair da tarde tomamos nosso o caminho de volta. Para nós há essa liberdade
de ir e vir, por isso podemos retornar sempre às nossas casas, nossos ?tekohás?. Para as
pessoas que ficaram no acampamento isso por enquanto ainda é um Sonho, que esperamos
seja concretizado muito em breve.

Saulo Feitosa
Brasília, 23 de janeiro de 2007
URL:: http://www.cimi.org.br

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