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Entraves marcam criação de entidade para unir América do Sul

OESP, Nacional, p. A4, A6
24 de Mai de 2008

Entraves marcam criação de entidade para unir América do Sul
Unasul é formalizada sem que Lula vença resistências a conselho que integraria políticas de defesa de 12 países

Denise Chrispim Marin e Lisandra Paraguassú

A União Sul-Americana de Nações (Unasul) tornou-se efetiva ontem sob a convicção brasileira de que a América do Sul tem estofo suficiente para mudar o "tabuleiro do poder" mundial. Essa aposta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, expressa em seu discurso na abertura da reunião extraordinária de cúpula da Unasul, esfarelou em três vertentes. O lançamento do Conselho Sul-Americano de Defesa, o pilar da Unasul para a segurança regional, foi adiado por novas resistências e cautelas que se somaram às da Colômbia, que exigiu a classificação das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) como grupo terrorista.

O uso do encontro de Brasília para apaziguar definitivamente a crise na vizinhança igualmente fracassou, diante de novos ataques do presidente do Equador, Rafael Correa, à Colômbia. A terceira vertente foi a constatação de que não haverá recursos financeiros para alavancar a integração sul-americana - tema para o qual o próprio Lula chamou a atenção. O petista referiu-se à Unasul como um "pesado fardo" ao citar r a passagem da presidência temporária da Bolívia para o Chile.

"Uma América do Sul unida mexerá com o tabuleiro do poder no mundo. Não em benefício de um ou outro de nossos países, mas em benefício de todos", afirmou o presidente brasileiro, em seu discurso. "Estamos deixando para trás uma longa história de indiferença e isolamento recíproco. Nossa América do Sul não será mais um mero conceito geográfico."

A rigor, a reunião de Brasília cumpriu seu objetivo central - a assinatura do tratado constitutivo da Unasul, que dará as bases jurídicas para a ação desse novo organismo regional. Alan Garcia, presidente do Peru, assinou o texto, falou rapidamente sobre o quão importante lhe pareceu esse ato e voltou a Lima. Não esperou o encontro reservado entre os chefes de Estado presentes nem o almoço no Itamaraty - oportunidades para dissolver nódoas nas relações bilaterais.

Entusiasmado, Lula enumerou as vantagens comparativas da América do Sul. No plano econômico, destacou que a região tornou-se "um dos principais pontos de atração de investimentos no mundo", graças à fase de crescimento com redução da desigualdade social. No plano político, citou o fato de todos os líderes sul-americanos terem sido eleitos em "pleitos democráticos e com ampla participação popular".

"A América do Sul é, hoje, uma região de paz, onde floresce a democracia", resumiu. "Esses progressos nos campos econômico e sócio-político nos conferem crescente projeção no novo mundo multipolar que se está constituindo."

Ciente das oposições da Venezuela, Bolívia e Equador, Lula esquivou-se de defender a ampliação da produção e do uso dos biocombustíveis em seu discurso. Preferiu abordar o tema indiretamente. "Nossa região torna-se um interlocutor cada vez mais indispensável à medida que o mundo se vê diante da necessidade de compatibilizar segurança alimentar, suprimento energético e preservação do meio ambiente", declarou. "Quando a escassez de alimentos ameaça a paz social em muitas partes do mundo, é em nossa região que muitos vêm buscar respostas."

O encontro não chegou a ser plenamente contaminado pelas provas reunidas pelos investigadores da Interpol da colaboração dos governos da Venezuela e do Equador com as Farc. Mas o imbróglio espirrou na resistência pétrea do presidente colombiano, Álvaro Uribe, em somar-se ao Conselho Sul-Americano de Defesa - um projeto caro a Lula, que havia designado o ministro da Defesa, Nelson Jobim, para costurá-lo. Uribe exigiu a qualificação das Farc como grupo terrorista.

"O continente deve atrever-se a qualificar como terrorista todo grupo violento que atente contra a democracia", afirmou, depois de uma conversa reservada com Lula. "Sonho que a América do Sul avance para uma sociedade democrática em que, à semelhança da Europa, não se permita a existência de grupos violentos, como os que temos", completou, para em seguida indicar que sua resistência não se devia à presença da Venezuela de Hugo Chávez no mesmo Conselho.

Lula ainda insistiu, ao discursar, na criação do Conselho ainda ontem e chegou a propor o agendamento de uma reunião para "detalhar os objetivos e o funcionamento" do órgão no segundo semestre deste ano. Mas conseguiu apenas a aprovação da sugestão da presidente do Chile, Michele Bachelet, de criação de um grupo de trabalho para construir um projeto em 90 dias. Além da Colômbia, o Uruguai mostrou-se reticente.

"Fracasso teria sido se os chefes de Estado não tivessem aprovado a criação do grupo de trabalho", acudiu Bachelet, quando Lula foi questionado pela imprensa se teria fracassado nessa aspiração.

Apagão constrange presidente
Denise Chrispim Marin e Lisandra Paraguassú
Três sucessivos apagões constrangeram ontem o presidente Lula diante de seus colegas da América do Sul. A instalação elétrica do Centro de Convenções Ulysses Guimarães não agüentou as demandas da reunião de cúpula da Unasul. Logo na primeira falha, no momento do discurso de Evo Morales (Bolívia), o venezuelano Hugo Chávez assumiu um oportuno tom de brincadeira.

"Isso foi coisa do Bush", afirmou, referindo-se ao presidente dos EUA, George W. Bush, a quem costuma apontar como a causa de todos os males da Venezuela.

Evo Morales, que estava no seu último dia como presidente temporário da Unasul, viu-se diante do corte de luz e do som do seu microfone enquanto ainda falava. A chilena Michele Bachelet, que recebeu ontem essa mesma presidência, por um ano, também discursou pela metade. A imagem da assinatura de Álvaro Uribe (Colômbia) no tratado constituinte foi perdida por outro apagão.

Ao ser divulgado o problema pela imprensa, que teve seu acesso à internet cortado nos momentos de apagão, a Companhia Energética de Brasília apressou-se em dizer que os black-outs não era de sua responsabilidade, mas resultado de problema na rede do Centro de Convenções.

Lula tem encontro 'tenso' com Correa, Evo e Chávez
Antes da assinatura do tratado da Unasul, presidente equatoriano ainda fazia restrições a formato do acordo
Denise Chrispim Marin e Lisandra Paraguassú , Brasília
O primeiro compromisso da agenda do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ontem foi um café da manhã com os presidentes do Equador, Rafael Correa, da Bolívia, Evo Morales, e da Venezuela, Hugo Chávez, para garantir uma assinatura sem surpresas do trato constitutivo da União Sul-Americana de Nações (Unasul). Foi, na descrição de assessores presentes, um encontro "tenso". Nos últimos momentos, às vésperas da assinatura definitiva, Correa ainda apresentou restrições ao formato do tratado.

Na estrutura final da Unasul, a secretaria-geral - que ficará no Equador - terá menos poder que o conselho de delegados e delegadas, sendo apenas a quarta instância de decisão. O presidente equatoriano acredita que os seus delegados não refletem fielmente as posições de seu governo. No entanto, o Equador não havia questionado seriamente a formatação final, porque o principal candidato a secretário-executivo da Unasul era o equatoriano Rodrigo Borja, que renunciou na última quinta-feira, mudando o quadro.

Corrêa foi convencido a abandonar os seus pleitos em nome da harmonia na Unasul e para não criar mais problemas em um acerto já complicado. O governo brasileiro já esperava um revés em relação ao anúncio da criação de um conselho de defesa na Unasul, rejeitado pela Colômbia e visto com reservas por outros países da região, o que dava mostras de um relacionamento ainda muito complicado.

CONSTRANGIMENTO

Em 2005, durante outro encontro em Brasília, Lula teve de passar pelo constrangimento de ver o presidente venezuelano negar-se em público a assinar a declaração final dos presidentes que previa criação da Comunidade Sul-Americana de Nações - o primeiro nome da Unasul -, depois de um dia inteiro de negociações.

Naquela ocasião, Chávez exigia que o debate continuasse até que todos chegassem a um consenso sobre o tratado constitutivo. Diante da imprensa, o venezuelano passou um pito no chanceler brasileiro, Celso Amorim, que tentou convencê-lo a assinar a declaração.

Coube ao presidente Lula a tarefa de apaziguar Chávez e convencê-lo sobre a importância de assinar o documento.

Adesão de vizinhos deve demorar 5 anos
Entidade pretende se expandir para América Central e para o Caribe
Denise Chrispim Marin e Lisandra Paraguassú, Brasília
A União Sul-Americana de Nações (Unasul) terá um período de carência de cinco anos até começar a agregar vizinhos da América Central e do Caribe que venham a se interessar pelo processo de integração. Otimistas, os negociadores do documento previram que os pedidos de adesão vão aparecer.

O texto prevê que só os países que tenham passado quatro anos na condição de Estados Associados poderão se candidatar. A adesão será decidida por consenso pelos presidentes. O documento firmado ontem pelos 12 países não impõe a vigência da democracia plena como condição para a permanência no grupo.

A estrutura de decisão da Unasul repetiu, com alguma flexibilidade, a do Mercosul. No tratado, curiosamente, todas as autoridades são mencionadas nos gêneros feminino e masculino. O comando estará nas mãos do conselho de "chefes e chefas" de Estado. Abaixo, estará o conselho de "ministros e ministras" de Relações Exteriores. Na negociação para valer, estará o conselho de "delegados e delegadas" e, por fim, a secretaria-geral - o órgão executivo com poder minguado, como no Mercosul, que terá sua sede em Quito (Equador). A cada ano, um país presidirá a Unasul. Desde ontem, é a vez do Chile.

A pressão de Bolívia, Venezuela e Equador para criação imediata de um Parlamento Sul-Americano, com sede em Cochabamba, foi diplomaticamente podada. O tratado prevê que a formação dessa Casa será objeto de protocolo adicional. O texto firmado ontem deverá entrar em vigor 30 dias depois de nove países, no mínimo, terem ratificado o tratado nos seus Congressos.

Próximo encontro debaterá crise mundial de alimentos
Nova presidente da Unesul, a chilena Michele Bachelet anunciou que convocará reunião de chefes de Estado para aprovar medidas sobre o tema

Lisandra Paraguassú e Denise Chrispim Marin

Uma das próximas reuniões da União Sul-Americana de Nações (Unasul) tratará especificamente da crise alimentar mundial. A nova presidente da entidade, a presidente do Chile, Michele Bachelet, garantiu que irá chamar um encontro de chefes de Estado nos próximos 90 dias para que o grupo aprove medidas sobre o tema. Mais especificamente, uma posição conjunta dos países sul-americanos sobre o enfrentamento da alta dos preços e a relação com países de fora do bloco regional.

Em meio às últimas informações relatadas pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), de que os preços dos alimentos não serão reduzidos significativamente nos próximos dez anos, a escassez foi uma das temáticas centrais do encontro de ontem. "Uma preocupação que temos é que todos os avanços obtidos contra a pobreza no nosso continente podem sofrer retrocessos se não enfrentarmos unidos o alto preço dos alimentos e das fontes de energia", disse Bachelet.

De acordo com a presidente chilena, são problemas internos de comércio na América do Sul que criam os maiores entraves ao acesso aos alimentos na região. "Não temos escassez de comida. No conjunto, temos uma cesta de alimentos muito positiva. Mas os problemas do comércio local fazem com que os alimentos representem apenas 17% do comércio intra-regional", afirmou. "Precisamos de uma voz comum e uma resposta comum a esse problema."

Em seu discurso na abertura do encontro que oficializou a criação da Unasul, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva também voltou a tocar no tema, ressaltando a importância de uma resposta unida da América do Sul frente à crise alimentar. "Quando a escassez de alimentos ameaça a paz social em muitas partes do mundo, é em nossa região que muitos vêm buscar respostas. Temos consciência das nossas responsabilidades globais, mas não abrimos mão de exercê-las de forma soberana", declarou Lula.

O presidente voltou a reclamar do que considera interesses protecionistas que tentam interferir na região. "Não nos deixamos iludir tampouco pelos argumentos daqueles que, por interesses protecionistas ou motivações geopolíticas, se sentem incomodados com o crescimento de nossa indústria e agricultura, com a realização de nosso potencial energético", afirmou. "Uma América do Sul unida mexerá com o tabuleiro do poder no mundo. Não em benefício de um ou de outro de nossos países, mas em benefício de todos." Na próxima semana, Lula irá ao encontro de cúpula da FAO, em que voltará ao tema.

Em nenhum momento do encontro, no entanto, foi citado o possível papel da produção de etanol na questão da escassez e alta do preço dos alimentos. O tema, caro ao anfitrião, foi relevado pelos demais participantes, apesar do presidente venezuelano, Hugo Chávez, já ter feito críticas explícitas à troca de produção de alimentos por combustíveis, o que considerou danoso para a economia .

Para Chávez, Unasul será exército que fará frente ao 'império norte-americano'
Lígia Formenti e Expedito Filho, BRASÍLIA
O presidente venezuelano, Hugo Chávez, comparou a criação da Unasul à formação de um exército que pode fazer frente ao "império norte-americano" e romper com a "terrível dependência dos países" do hemisfério em relação aos Estados Unidos. "É uma mudança histórica", resumiu, durante entrevista concedida no final da tarde de ontem à Rede Sul. Para ele, o fato de não ter havido a formação do Conselho Sul-Americano de Defesa, como pretendia o governo brasileiro, não impediu o sucesso da reunião de ontem. "Foi um dia monumental", destacou.

O dia de Chávez começou com um encontro com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e outros colegas, pela manhã. Ao sair da reunião, Chávez afirmou que o encontro da Unasul ocorria em um momento importante, pois todos os governantes do hemisfério são "de esquerda". Para o presidente da Venezuela, a Unasul é reflexo do "fracasso da Alca".

Chávez procurou mostrar otimismo sobre o rumo das relações com o governo colombiano, que azedaram depois do ataque a um acampamento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) no Equador, em março. Ele argumentou que não há como manter no hemisfério um pensamento único e que, apesar das resistências em formar o Conselho, a Colômbia mostrava boa vontade ao ter comparecido ao encontro de ontem.

Mais uma vez, o presidente venezuelano negou ter financiado a guerrilha - hipótese levantada pela Colômbia com base em informações de um computador apreendido na ação contra as Farc. Chávez questionou, também, a veracidade do relatório da Interpol segundo o qual os dados do computador não haviam sido violados.

Ao sair do estúdio, Chávez seguiu chamando a atenção. Encontrou, na rua, três índios xavantes, incluindo uma criança, Durval, que estava com o braço machucado. Conversou com os índios e prometeu ajuda. "Vamos procurar a embaixada", afirmou, mais tarde, a vice-cacique Rhinina Xavante.

Correa e Uribe trocam acusações pela imprensa
Denise Chrispim Marin e Lisandra Paraguassú, Brasília
Um bate-boca entre os presidentes Rafael Correa, do Equador, e Álvaro Uribe, da Colômbia, por meio da imprensa, deixou claro o clima de tensão que predominou na reunião de cúpula da União Sul-Americana de Nações (Unasul).

Enquanto transcorria conversa reservada entre os chefes de Estado presentes ao encontro, Correa valia-se da imprensa para acusar como "deploráveis" constatações de Bogotá de que seu governo agiria em colaboração com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e para advertir que as relações diplomáticas bilaterais não seriam plenamente reatadas enquanto tais "calúnias" fossem divulgadas.

"Com o governo da Colômbia, pelos motivos que todos conhecem, há uma situação deplorável. Há um ponto morto, uma situação crítica. Todos desejamos que as relações bilaterais sejam reatadas o mais rápido possível. Mas com justiça", afirmou Correa. "Enquanto continuarem os ataques do governo colombiano, as campanhas na mídia, as calúnias de que eu teria ordenado às Forças Armadas não perseguir as Farc, de que o Equador abriga terroristas, é muito difícil reatar as relações."

Também à imprensa, Uribe reagiu, depois de encontrar-se reservadamente com o presidente Lula no Itamaraty. "A Colômbia expressou suas posições esta manhã. Para isso são importantes essas reuniões, para que se diga tudo o que precisa dizer, e não se deixe de falar nas reuniões para dizer à imprensa." A briga estampou o momento delicado em que a Unasul teve seu tratado constitutivo assinado. O encontro tangenciou o conflito, em março, quando a Colômbia bombardeou um acampamento das Farc no Equador.

OESP, 24/05/2008, Nacional, p. A6

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