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A entrada em vigor do Protocolo de Kyoto conseguirá impedir o aquecimento global?

FSP, Tendências e Debates, p. A3
Autor: MEIRA FILHO, Luiz Gylvan; MOUTINHO, Paulo
19 de Fev de 2005

A entrada em vigor do Protocolo de Kyoto conseguirá impedir o aquecimento global?

NÃO
Um passo entre muitos

Luiz Gylvan Meira Filho

A mudança do clima como resultado do aquecimento global obedece a certas leis físicas. Como conseqüência, medidas de curto prazo, como as do Protocolo de Kyoto, não são suficientes para impedir o aquecimento global. Considero o protocolo um passo inicial importante para evitar que o clima mude muito e considero a sua entrada em vigor uma reiteração importante, feita pela maioria dos países que são parte da convenção das Nações Unidas sobre mudança de clima, do compromisso universal de evitar que a mudança do clima atinja níveis perigosos.
Dito isso, vejamos por que o Protocolo de Kyoto não é suficiente para impedir o aquecimento global. A causa da mudança do clima é a emissão pelo homem de gases de efeito estufa. Vamos considerar somente o gás carbônico, porque é o mais importante e porque, a longo prazo, é o maior problema.
É fácil calcular a relação entre a causa (emissão) e o efeito (a mudança do clima medida, por exemplo, em termos do aumento da temperatura média da superfície do planeta). Embora a mudança do clima inclua variações regionais de temperatura e de precipitação e mudanças na intensidade e na freqüência de fenômenos meteorológicos severos, o aumento da temperatura média é uma boa métrica, já que as mudanças detalhadas tendem a ser proporcionais ao aumento da temperatura média.
A emissão de gás carbônico provoca um aumento gradual da temperatura, porque há que aquecer a água dos oceanos -e esta se mistura muito lentamente- e porque o excesso de gás carbônico na atmosfera diminui, a princípio rapidamente, ao ser fixado temporariamente na biosfera e, depois lentamente, como resultado da retirada pelos oceanos. Cerca de 15% de todo o gás carbônico colocado na atmosfera pelo homem ainda está lá, pois é retirado muito lentamente pelos oceanos, numa escala de tempo de poucos milhares de anos. Uma vez distribuído o calor nos oceanos, o planeta se livra do aquecimento pela radiação do excesso de energia para o espaço.
A combinação desses fatores faz com que o resultado da emissão de gás carbônico em um ano provoque um aumento gradual da temperatura, atingindo o máximo em cerca de 40 ou 50 anos, e depois uma volta muito lenta à temperatura original. A única forma de atingir o objetivo da convenção é um processo, necessariamente lento, de inflexão da curva de crescimento das emissões globais até chegarmos a um nível constante de emissões, de forma que a retirada do gás carbônico da atmosfera pelos oceanos seja igual às emissões. Somente assim a concentração de gás carbônico na atmosfera permanecerá constante, embora em um nível diferente do nível anterior à revolução industrial, de 280 partes por milhão em volume. O novo clima será mais quente, em média. A cada vez que a concentração for dobrada (estamos com 370 partes por milhão em volume), a temperatura será cerca de 3,5 graus Celsius mais quente.
Já em seu primeiro relatório (de 1990), o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima advertia que, a longo prazo, será necessário reduzir as emissões globais em cerca de 60%. Essa conclusão permanece válida.
É evidente que o Protocolo de Kyoto -e vamos supor que venha a ser implementado integralmente, inclusive pelos países que optaram por não ratificá-lo- implica uma pequena inflexão nas emissões globais. Seu efeito na mudança do clima é apenas uma pequena diminuição no aumento da temperatura, dentro de algumas décadas, de uma pequena fração de graus Celsius. Nesse sentido, mais do que a diminuição das emissões até 2008-2012, será importante assegurar que a redução de emissões nos países industrializados seja permanente. O mesmo se aplica aos países em desenvolvimento, como o Brasil. É com satisfação que noto a tendência, inclusive do setor privado, de encarar os ganhos auferidos por meio do mecanismo de desenvolvimento como um aporte necessário para a introdução de novas práticas, que devem, até por inércia, se tornar permanentes.
Dada a natureza física do fenômeno do aquecimento global, é essa continuidade que permitirá infletir lentamente a curva ascendente da mudança do clima e preparar o terreno para os próximos passos no longo caminho para atingir o objetivo da convenção.
Na recente conferência em Exeter, Inglaterra, organizada pelo governo britânico, com o sugestivo título "Evitando a mudança perigosa do clima" (www.stabilisation2005.com), em referência ao objetivo da convenção, concluiu-se que é viável, com um elenco de tecnologias já disponíveis, a um custo suportável. Basta, para isso, que as nações priorizem, cada uma em sua agenda, o bem-estar das gerações futuras.

Luiz Gylvan Meira Filho, 62, engenheiro eletrônico pelo ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica), PhD em astrogeofísica pela Universidade do Colorado (EUA), é professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP. Foi presidente da Agência Espacial Brasileira (1994-2001).

SIM
Barreiras Rompidas

Paulo Moutinho

A entrada em vigor do Protocolo de Kyoto abre as portas para futuras e significativas reduções da emissão de gases de efeito estufa. Isso porque o protocolo representa a superação de barreiras até hoje por muitos consideradas intransponíveis. Falar em redução de emissões, por exemplo, de gás carbônico, o principal gás de efeito estufa, é falar em mudanças drásticas e de alto custo na matriz energética, no padrão de consumo da população, na produção industrial, nos transportes e nos tipos de serviço prestados. Tal idéia representaria, de início, um tiro nas ambições de crescimento econômico de qualquer país, seja ele desenvolvido ou não. Mas o protocolo conseguiu reunir 141 países ao redor dessa idéia. Um fato, no mínimo, impressionante.
Considerando que, há poucos meses o acordo estava ameaçado pela não-ratificação russa e a sensação era que tudo estava perdido, sua entrada em vigor é um fato muito animador. O mais espantoso é que o protocolo obteve consenso em princípios extremamente importantes para se manter justo. Um deles é o das "responsabilidades comuns, porém diferenciadas", pelo qual a responsabilidade inicial pelas reduções recai sobre os países que historicamente mais fizeram emissões: os industrializados.
As regras acordadas possibilitaram a criação de mecanismos para a construção de um mercado inovador, o mercado de carbono, que tem tudo para remunerar e incentivar atividades ecologicamente mais sustentáveis. Além disso, a sociedade organizada e os cientistas tiveram participação efetiva nas negociações internacionais. A ciência, por meio do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas, que reúne mais de mil cientistas, serviu de parâmetro-chave para a construção de regras e para a tomada de decisões.
A sociedade não ficou atrás. A ação de ONGs e de movimentos sociais não só contribuiu para que as regras fossem mais aceitáveis e socialmente mais justas como também resultou na construção de um eficiente controle social. A esperança de reduções futuras mais significativas está calcada na continuidade desse controle por parte da sociedade. O mais incrível é que tudo isso tenha acontecido sem a participação do principal poluidor mundial, os EUA, que não quiseram pagar para ver.
É claro que, como contribuição para uma redução significativa e imediata dos problemas da mudança climática ou para a estabilização da concentração dos gases de efeito estufa na atmosfera, o protocolo em si é bastante modesto e terá, durante sua vigência, pouco efeito. Suas regras estabelecem reduções médias de emissões na ordem de 5% entre 2008 e 2012, tomando como referência as emissões de 1990. É muito pouco. Os estudos científicos mostram que, para fazer diferença, tal redução deveria ser de, no mínimo, 60%.
No entanto a entrada em vigor tem um significado que vai muito além daquele mais técnico-científico, baseado no volume das reduções. Representa uma oportunidade para reduções no futuro, isto é, além de 2012, já que todos agora estão mais confiantes na possibilidade do estabelecimento de regras globais para enfrentar o problema. Espera-se que os acordos pós-Kyoto façam, sim, diferença do ponto de vista do clima. Para chegar a esse ponto, contudo, não basta repetir as regras e estabelecer metas de reduções mais ambiciosas. Será preciso que outras fontes de emissões, como aquelas oriundas do desmatamento tropical, das queimadas e dos incêndios florestais nos países em desenvolvimento sejam consideradas pelos novos acordos. Será preciso achar mecanismos de compensação que incentivem esses países a crescer sob bases mais sustentáveis e limpas e a manter a integridade de seus estoques de carbono, isto é, suas florestas. Em caso contrário, o processo de redução das emissões globais por meio do Protocolo de Kyoto e de acordos futuros estará estancado e, em pouco tempo, os ganhos esperados terão sido anulados.
O Brasil terá um papel extremamente importante. Por possuir liderança nas negociações internacionais, por deter uma matriz energética relativamente limpa e, ainda, se enfrentar de maneira positiva e no campo internacional o seu principal problema -a exagerada emissão de gases por desmatamento e queimadas de florestas-, o país poderá conseguir compensações e apoio para definitivamente reverter o crescimento de suas emissões por queima de combustíveis fósseis (petróleo, carvão mineral e gás natural) e reduzir sobremaneira as taxas de desmatamento de suas florestas. O Protocolo de Kyoto, se funcionar bem, conseguirá, em longo prazo, resultar em novos entendimentos globais, capazes de bloquear o avanço das mudanças climáticas.

Paulo Moutinho, 42, doutor em ecologia, é coordenador de pesquisa do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), coordenador geral do Observatório do Clima e membro do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas.

FSP, 19/02/2005, Tendências e Debates, p. A3

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