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Autor: VOIVODIC, Mauricio
22 de Out de 2024
A encruzilhada planetária
Nas duas COPs, a questão do financiamento é crucial. A equação é simples: sem dinheiro, não há ação
Mauricio Voivodic
Diretor-executivo do WWF-Brasil.
22/10/2024
O ano de 2024 poderá entrar para a história como o início do ponto de inflexão no enfrentamento da crise climática e da acelerada perda de biodiversidade em todo o planeta ou como mais uma oportunidade perdida. Há, entretanto, no campo da política internacional, algumas chances de mudarmos esse cenário a partir de decisões robustas e ambiciosas em importantes eventos que acontecerão nos próximos meses: em outubro, temos a COP16 de Biodiversidade; em novembro, a 29ª Conferência do Clima, ambas relacionadas aos resultados que esperamos alcançar com o G20 brasileiro e diretamente ligadas às expectativas que se pode criar para a COP30, no Brasil em 2025.
Embora conduzidas separadamente, as convenções de clima e biodiversidade são irmãs siamesas que dependem uma da outra para viver. Os efeitos do clima sobre a perda de biodiversidade são conhecidos e já se fazem perceptíveis, por exemplo, no branqueamento dos corais e nas violentas queimadas turbinadas por altas temperaturas e baixa umidade. O reverso é igualmente verdadeiro: a perda de biodiversidade compromete o enfrentamento da emergência climática ao reduzir a resiliência dos ecossistemas com a liberação adicional de carbono na atmosfera pelas queimadas, desmatamento e conversão de habitats naturais, e a consequente diminuição do potencial dos sumidouros de carbono, incluindo os cada vez mais quentes oceanos.
Destravar as negociações em uma conferência contribui para o sucesso da outra, inclusive no ímpeto, na confiança e nas condições para que os negociadores avancem. Destravar as duas negociações, por sua vez, tem o potencial de gerar a vontade política necessária para empurrar o setor privado no caminho da urgente mudança para novos modos produtivos, que respeitem os limites planetários e convivam em harmonia com eles. Não custa lembrar que desde o dia 1o de agosto estamos consumindo recursos naturais que a Terra não conseguirá produzir ou regenerar neste ano. São cinco meses inteiros no cheque especial planetário.
Para sair do vermelho na natureza, o mundo precisa redirecionar seus recursos financeiros. Tanto na COP de Biodiversidade como na de Clima, a questão do financiamento é crucial. A equação é simples: sem dinheiro, não há ação. Porém, da maneira como o sistema financeiro global está estruturado atualmente, o dinheiro dificilmente chegará a quem precisa. E aqui há oportunidade adicional: as atenções estarão voltadas para a América do Sul e tanto Colômbia quanto Brasil devem sincronizar suas intenções e ações. A Colômbia receberá a COP16 de Biodiversidade, e o Brasil presidirá tanto o grupo das 20 maiores economias do mundo, o G20, quanto a COP30.
Como o secretário-geral da ONU, António Guterres, frisou em seu discurso de abertura da Assembleia Geral deste ano, as 20 maiores economias do mundo respondem por 80% das emissões globais. Embora as negociações climáticas e de biodiversidade não estejam na mesa do G20, a estrutura financeira global está: esse grupo tem poder político suficiente para dar início à imprescindível reforma que poderá destravar recursos financeiros na direção que o mundo precisa. Poderá também fazer avançar a taxação dos super-ricos com o redirecionamento dos recursos para a ação climática e de biodiversidade, entre outros. A aprovação, pelo G20 na gestão Brasil, dos princípios de alto nível para bioeconomia - resultado da liderança brasileira - sugerem que é possível avançar.
Em Cali, na COP16, um passo adicional poderá ser dado em relação à Meta 18, que recomenda a redução de incentivos e subsídios que prejudicam a biodiversidade. Se medida semelhante fosse adotada na COP30, observaríamos um forte impacto positivo: dados do Fundo Monetário Internacional mostram que globalmente os subsídios aos combustíveis fósseis foram de US$ 7 trilhões ou 7,1% do PIB global em 2022 - um aumento de US$ 2 trilhões desde 2020.
Fazer a transição para uma economia descarbonizada e positiva para a natureza é urgente pois a ciência já identificou alguns gatilhos que, se acionados, potencializam as crises de clima e de biodiversidade. Um deles estende-se por nove países da América do Sul: a Amazônia, a maior floresta tropical do planeta. Em 2023, a Amazônia brasileira já havia perdido cerca de 19% de sua cobertura florestal original, segundo o MapBiomas. Isso coloca a fatia brasileira do bioma muito próxima da margem estimada pelos cientistas para seu ponto de colapso, estimado entre 20% e 25%. Ainda segundo o MapBiomas, de 5,4% a 9,8% da Amazônia estão degradados. Essa situação tende a se deteriorar com a seca extrema e os recordes de queimadas deste ano.
Um salto que precisa ser potencializado é a preservação das grandes florestas tropicais, tarefa que já começa a exigir a restauração para assegurar os serviços ambientais que esses ecossistemas provêm. Esse é um dos temas que unem Cali a Belém, biodiversidade e clima
Em 2025, a Amazônia será o palco da conferência climática na qual serão avaliados os novos compromissos dos países signatários do Acordo de Paris. São esperadas metas mais robustas e rápidas de redução de emissões de gases de efeito estufa, especialmente por parte dos grandes emissores, já que a janela de oportunidade para mantermos o aquecimento médio do planeta em 1,5o C está se fechando. É preciso avançar rapidamente também em adaptação a um clima que já mudou. Esse é um tema fundamental para as nações em desenvolvimento do Sul global, que estão arcando com alguns dos piores efeitos do aquecimento global sem ter contribuído com suas causas. Além do apoio financeiro, faz-se necessário o suporte tecnológico para que esses países já consigam saltar para modos de produção e consumo de baixo carbono.
Um salto que precisa ser potencializado é a preservação das grandes florestas tropicais da América Latina, África e Sudeste Asiático - tarefa que já começa a exigir a restauração florestal para assegurar os serviços ambientais que esses ecossistemas provêm. Esse é um dos temas que unem Cali a Belém, biodiversidade e clima. E que também tem um enorme potencial de geração de emprego e renda, inserindo as populações desses biomas. Nesse contexto, a proposta do Mecanismo de Financiamento para Florestas Tropicais (TFFF - Tropical Forest Finance Facility, em inglês), feita pelo governo brasileiro, merece atenção e apoio de financiadores e governos.
A ação climática e a reversão da perda de biodiversidade precisam não só de recursos financeiros, técnicos, mas também dos conhecimentos tradicionais - tanto das comunidades, como dos povos originários. Seus saberes precisam ser respeitados, valorizados, protegidos e incorporados aos planos de ação dos governos nacionais e subnacionais, bem como de empresas e outras organizações. Nossa ameaçada Amazônia é talvez um dos melhores exemplos, pois a ciência já demonstrou que ela não se desenvolveu naturalmente apenas, mas contou com a ativa participação dos povos na distribuição das sementes que a tornaram em uma das mais ricas fontes de ativos da bioeconomia.
Temos o privilégio de ser a geração que está vivendo um daqueles raros momentos planetários em que podemos mudar o rumo da história. Ainda é possível alcançar a meta do Acordo de Paris, mesmo que por algum tempo a temperatura média global ultrapasse os 1,5o C. Ainda é possível reverter a curva de perda de biodiversidade. Ainda é possível criar um futuro positivo para a natureza e para nós, humanos, que dependemos dela. Está nas mãos dos grandes tomadores de decisão - governos, empresas, setor financeiro - escrever seus nomes com honra nos livros.
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