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Em Mato Grosso, muito cacique para pouco índio

O Globo, Esportes, p. 4-5
25 de Jun de 2007

Em Mato Grosso, muito cacique para pouco índio
Líderes indígenas brigam pela tocha do Pan-Americano em Campo Novo do Parecis, ameaçam fechar estrada e deixam as autoridades preocupadas para festa de quarta-feira

Pedro Motta Gueiros
Enviado especial

Nas sete tribos de Campo Novo do Parecis, a cidade que vai receber a tocha pan-americana, na quarta-feira, muitos trabalham fora, estudam ou têm planos de sair. As crianças gostam de refrigerantes, de biscoitos e do mundo dos brancos. Quem ainda vê mais razão em ser índio são os líderes, que repartem a arrecadação do pedágio ilegal montado na entrada das reservas. Ao chegar às aldeias, quase sempre despovoadas, tem-se a impressão de que há muito cacique para pouco índio. A briga pelo ponto se evidenciou na última semana. O cacique Raimundo, da aldeia Seringal, ameaça bloquear a estrada caso o acesso seja restrito à solenidade do fogo, que vai acontecer na Quatro Cachoeiras, de Narciso. Líder de um associação que reparte a receita do pedágio entre 20 aldeias de outras cidades, a cacique Miriam foi ultimada a levar R$ 10 mil para uma delas sob pena de ter um protesto em sua porta.

A harmonia, por ora, está apenas na tocha dos Jogos Indígenas do Mato Grosso, desenhada pelo organizador Carlos Terena para representar os quatro elementos. Na base, estão a areia e a água do Rio Sacre. O ar serve para agitar as penas coloridas presas ao queimador onde vai arder o fogo eterno, feito com paus e pedras. Em vez de símbolo da integração, a tocha é vista como um troféu cobiçado pelas aldeias. Os Parecis ameaçam boicotar os Jogos se um Terena for escolhido para acender a pira.

- Ainda vamos escolher, mas certamente vai ser um índio do ramo Aruáki - disse Carlos, referindo-se à língua que sua etnia compartilha com os Parecis, entre outros. - Não estou aqui porque eu quero, mas para fazer uma festa importante. A cacicada tem que entender que os Jogos servem para afirmar a possibilidade de vivermos juntos.

Cerca de 400 índios vão participar dos Jogos
Até terça-feira, já devem estar na cidade os quase 400 índios de 10 etnias que vão disputar provas de cabo de força, arco e flexa, arremesso de lança, corrida e natação em rio. Por não serem praticadas por todos, as modalidades de corrida de tora e cabeça-bol constam apenas do programa de demonstrações. A prefeitura e os organizadores dos Jogos já reforçaram no comércio a proibição federal para a venda de bebidas alcoólicas para indígenas.

- É um problema sério, eles acabam conseguindo comprar e é comum vê-los caindo pelas ruas - disse uma comerciante, de etnia bem distante.

Com a mecanização da agricultura, muitos colonos do Rio Grande do Sul migraram para o Centro-Oeste. A mandioca nativa agora é acompanhada pelo churrasco de costela e as tradições gaúchas. Culturas diferentes só se misturam no prato. Há um preconceito recíproco entre sulistas e indígenas. Até entre os Parecis as fronteiras são marcantes. A escolha da aldeia de Narciso deixou os demais líderes enciumados pelo fato de ser sempre o mesmo cacique o escolhido para representar seu povo. Terena teve seus motivos espirituais para levar a pira e o fogo das vaidades para a beira do Rio Sacre.

- Deus fala através da natureza. Eu estava observando o local de manhã, bateu uma brisa ali, que não é comum ali, e meu rosto ficou molhado.
Senti que a natureza deu um beijo em mim - disse Terena, que recorreu à tecnologia para reforçar o misticismo. - Puxei o celular, eram 9h48m. Então, este vai ser o horário que faremos o fogo.

Já a escolha da data obedeceu às fases da lua que vai estar crescente nos Jogos, assim como as polêmicas na região. Terena acredita que os astros vão encher a cidade de bons fluídos. Depois, a lua vai minguar junto com os ânimos.

- Quando esvazia, a gente vê o que ficou no chão: saudades e coisas positivas. Temos que cuidar mais do espírito do que do dinheiro.

Terena prepara livro sobre origem do futebol
Organizador dos I Jogos Indígenas do estado afirma que esporte foi inventado nas Américas

Mato Grosso. Em meio à fumaça vermelha da estrada que liga a cidade à reserva, surge uma moto com três passageiros. Na frente, o homem de capa preta de borracha e óculos por baixo do capacete é o cacique da aldeia Seringal. Já de jaleco azul e boné, Raimundo Ezomazokay tem aparência e diploma para serviços gerais, encanamentos e instalações.

Mesmo sendo da etnia Pareci, construiu até uma casa xavante, redonda e diferente da sua, para a novela "A Muralha", nos 34 dias que passou no Rio, em 1999. Diz que "quase não gostou muito, né", porque índio não pode deixar a família.
Prefere usar sua engenhosidade para se ligar às raízes.

Do látex extraído da mangabeira do cerrado, leva uma hora para fazer a bola que atravessa os tempos junto com as brincadeiras que usam a cabeça, a cintura, o joelho e até o pé para golpeá-la. Segundo o organizador dos I Jogos Interculturais Indígenas do Mato Grosso, Carlos Terena, a tradição tão antiga quanto estes povos é mais um elemento para fundamentar sua tese de que o futebol nasceu nas Américas.

- Estou escrevendo um livro para convencer vocês de que o futebol foi inventado aqui. Não é à toa que o continente tem os melhores jogadores. Garrincha era descendente de índios e Maradona, um bugrão - disse Terena, sem esquecer que na aldeia da bola o cacique ainda é Pelé. - O elemento negro aprendeu a jogar aqui. Não sei se eles tinham a bola na cultura deles.
Terena cita registros de jogos entre os incas e mais, que usavam apenas os ombros e a cintura. No Brasil, os relatos vão dos pés à cabeça.

No Seringal, Odenir, o cunhado de Raimundo, chega a discorrer sobre o mito do casal que fez a primeira bola e teve o rosto desenhado na lua como gratidão, mas o cacique dá de ombros na lenda.

Terena conserva longas orelhas e a capacidade de escutar passagens de uma cultura que se transmite oralmente. Já sabia que os Parecis, os Manokis, os Enawene-nawes e os Nambikuaras jogavam o Jikunahati, com a cabeça e a bola de látex.
No Xingu, descobriu modalidade e bola diferentes, com folhas entremeadas à borracha e golpes com o joelho.

Para índios, cabeça é o centro de tudo
Na falta de descobertas arqueológicas para comprovar a tese, resta a versão de Terena. Raimundo sabe fazer a bola mas não conhece os mitos que giram em torno dela. Depois de dar a vida aos índios, um Deus os ensinou a fazer brincadeiras com o corpo.

- Fez a perna para a gente andar, o peito para mamar e a barriga para gerar filhos - disse Terena, antes de chegar ao ponto em que o índio mergulha rente ao chão para golpear a bolinha. - A cabeça é o centro de tudo, mas não serve só para pensar, tem que ser usada na atividade física.

Aos 49 anos, Raimundo tira o jaleco e entra no jogo.
- Nunca perdi para outras aldeias.

A competição, para Terena, começa desde o nascimento, mas a obsessão pela vitória vem dos brancos. Nos Jogos, que começam quarta-feira, a maior vitória é celebrar as afinidades entre etnias e o orgulho de ser índio. Ao menos nestes três dias, eles são os donos da bola.

Em vez de designar uma canoa furada, programa de índio agora significa futebol. (P.M.G)

Cabeça-gol: O dono da bola

O processo de fazer a bola dura uma hora. O cacique Raimundo talha a mangabeira do cerrado (no alto, à esquerda) e derrama o látex até encher o copo na base da árvore. Sobre um fogo fraco, põe-se um frigideira e derrama-se o produto, que vira uma pasta. Ela é dobrada e, com a boca (no alto, à direita), ligam-se as pontas antes de começar a inflar a bexiga (à esquerda)). Minutos antes, o resto do látex já tinha sido derramado sobre uma tábua (à direita). Seco, se transforma numa película que é enrolada em torno da bexiga. Após sucessivas voltas, usando as mãos, surge a bola, um pouco menor e mais dura do que a de futsal. ( P. M. G.)

O Globo, 25/06/2007, Esportes, p. 4-5

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