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Em Barra do Turvo, escola e comunidade constroem juntas educação quilombola

Jornal USP - https://jornal.usp.br
Autor: Hérika Dias
03 de Ago de 2021

No interior de São Paulo, projeto da USP media diálogo para que as comunidades quilombolas tenham seus conhecimentos apreendidos por professores e alunos

Na divisa entre São Paulo e Paraná está Barra do Turvo. O município paulista com pouco mais de 7.600 habitantes concentra quatro comunidades remanescentes de quilombos: Ribeirão Grande/Terra Seca, Cedro, Reginaldo, Pedra Preta/Paraíso. São famílias com identidade própria - que vai desde formas de organização política e social a elementos linguísticos e religiosos. Como fazer para que a existência dessas comunidades seja reconhecida e compartilhar seus saberes com todos que vivem na cidade foram o desafio de um projeto da USP.

A escolha foi colocar as comunidades em diálogo com as escolas locais. E o projeto como mediador desse diálogo, contribuindo de modo inter e transdisciplinar para a articulação dos diferentes saberes envolvidos: o das comunidades quilombolas, o dos professores da rede municipal e o da universidade. Tudo isso feito de modo horizontal, sem hierarquias, com as comunidades quilombolas passando os seus conhecimentos diretamente aos professores e alunos.

Chamado de Saberes em Diálogo, o projeto começou em 2019. Mas desde 2012 a geógrafa Valéria de Marcos, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em São Paulo, mantém contato com as comunidades. Ela coordenou a disciplina Geografia Agrária 2, na qual os alunos de Geografia da FFLCH realizaram estudo de campo, neste caso, em Barra do Turvo. Após três anos de atividades, uma das lideranças das comunidades sugeriu um trabalho sobre a educação quilombola.

"Juntei alguns estudantes e fizemos uma varredura na temática: estudar como estava a educação quilombola no município, a representação da temática no material didático e a história oral, de como os relatos deles poderiam ser incorporados a um material que poderíamos produzir", conta Valéria.

O resultado das pesquisas trouxe a descoberta de um silenciamento e distanciamento entre as comunidades quilombolas e as escolas do município. "De um lado, existe uma questão que diz respeito a uma autoidentificação, os pais precisam declarar que a criança é quilombola. De outro, há uma rotatividade muito grande de professores, uma dificuldade de conhecer de fato o lugar onde está atuando. Entendemos que não era só preparar material didático e precisávamos de um outro tipo de aproximação", lembra a professora da FFLCH.

Em 2018, ela começou a construir um percurso quilombola, ou seja, definir com as comunidades os eixos que elas gostariam de discutir e como queriam ser vistas. Os temas que as comunidades escolheram foram história, agricultura, artesanato, instrumentos de trabalho, plantas medicinais, moradia, gênero, devoção, musicalidade, infância, culinária e escola quilombola.

Durante esse processo, a USP lançou o programa Aprender na Comunidade, uma ação da Pró-Reitoria de Graduação da USP que apoia iniciativas que promovam interação entre áreas do conhecimento da Universidade e a sociedade para construção de conhecimento.

E assim surgia o Saberes em Diálogo, com a participação de pesquisadores de outras áreas do conhecimento da USP, além da Geografia, como o Departamento de História e o de Letras da FFLCH e o Departamento de Matemática, do Instituto de Matemática e Estatística (IME).

A primeira etapa foi apresentar o projeto para os professores da rede municipal de Barra do Turvo. Outro passo foi levá-los para visitar as comunidades quilombolas. "Após a visita, fizemos uma roda de conversa para avaliar a percepção deles. Ficou claro que havia uma ideia de que quilombo era algo do passado; além de desconhecimento, existia profundo preconceito, o que nos fez ampliar a fase de sensibilização", afirma Valéria, que coordena o Saberes em Diálogo.

O projeto impacta diretamente as comunidades quilombolas de Ribeirão Grande, Terra Seca, Cedro, Pedra Preta e Reginaldo - totalizando 285 famílias, além das quatro escolas municipais de Barra do Turvo, que possuem cerca de 900 alunos entre ensino infantil e fundamental I e cerca de 60 professores.

Oficinas e práticas

O grupo escolheu fazer oficinas nas comunidades quilombolas, baseadas nos temas discutidos previamente com elas. Ao longo de 2019, foram cinco: culinária, infância, agricultura quilombola, artesanato e devoção. A professora da FFLCH destaca que as oficinas não foram precedidas de orientações, sejam para as comunidades, ou para os professores.

A ideia foi deixar os professores livres para identificar e articular o conteúdo das oficinas com as atividades em sala de aula. Ao todo foram 21 oficinas, envolvendo cerca de 600 estudantes (alguns dos quais participaram de mais de uma oficina), 30 professores, 60 auxiliares por parte da Prefeitura Municipal e cerca de 100 integrantes das comunidades.

"As comunidades estão muito acostumadas a receberem projetos, mas, neste caso, não foi assim. Todas as atividades foram organizadas e feitas pelos próprios quilombolas, como ensinar fazer a paçoca, a garapa", destaca Valéria. A animação com as atividades foram sentidas em sala de aula. Na avaliação dos professores e da equipe do projeto, os alunos fizeram as próprias articulações com o que viveram nas oficinas e os conteúdos que surgiam nas aulas.

O objetivo era retornar em 2020 para fazer a formação com os professores mas, devido à pandemia, em um primeiro momento, o trabalho se concentrou na avaliação do material didático utilizado. "Como não é uma escola quilombola, não tem um currículo específico. É uma escola que recebe estudantes de origem quilombola. O que fazemos é adaptar algumas temáticas que podem ser trabalhadas ligando com questões das comunidades", explica a coordenadora do projeto.

A equipe do Saberes em Diálogo elaborou um curso de formação interdisciplinar para os professores a partir da recuperação das oficinas feitas. As primeiras foram sobre a infância e a culinária e foram realizadas on-line.

"As comunidades gravaram áudios sobre como foram feitos os pratos na oficina, dividimos os professores em grupos e repassamos os áudios. Os professores pensaram em como tratar aquela temática, envolvendo todas as áreas do conhecimento", conta Valeria.

Os cursos vão até o final de outubro. Como ação final, os professores precisam entregar um plano de atividades, escolhendo uma oficina. Quando a situação sanitária permitir, a proposta é que o projeto acompanhe os professores em uma nova oficina nas comunidades quilombolas. O acompanhamento incluirá as atividades pré, durante e após a visita. No final do ano, deve ser realizada uma mostra das atividades propostas pelos professores e elaborado um material didático a partir delas.

A professora Valéria acredita que a experiência pode ser replicada em comunidades quilombolas ou outras comunidades tradicionais, para construir uma educação diferenciada e territorialmente referenciada. Principalmente para valorizar as comunidades locais, sua história, modo de vida e cultura, além de combater o racismo e as desigualdades sociais e raciais.

"Foi muito importante não iniciar o projeto já com uma formação para os professores. Fazer os professores entrarem em contato com essa realidade foi fundamental para a participação e envolvimento que temos hoje. O desafio é construir o diálogo e esse projeto é feito a partir da demanda das comunidades quilombolas, com a valorização do conhecimento que elas têm."

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