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Elas desafiam a tradição. E viram pajés

OESP, Vida, p. A25
11 de Dez de 2005

Elas desafiam a tradição. E viram pajés
Duas jovens da tribo dos yawanawás tornam-se as primeiras líderes espirituais indígenas do Acre e, provavelmente, do País

João Maurício da Rosa Especial para o Estado RIO BRANCO

Os homens da aldeia mangavam, chacoteavam, buliam, tiravam sarro. Nem assim as jovens desistiram. Kátia Hushahu e Raimunda Putani, ambas de 25 anos, desafiaram o ancestral machismo dos índios yawanawás. Contrariaram todas as apostas. Suportaram até o fim os nove meses de iniciação ao xamanismo. Durante todo esse tempo, elas se recolheram nos confins da floresta, não tomaram água, comeram só pequenos peixes e beberam o uni, ou ayahuasca, o chá do Santo Daime. Agora, elas são as duas únicas pajés, líderes espirituais, entre todos os índios do Acre e, provavelmente, do Brasil.
"Eu só conheço mulheres pajés entre os índios mexicanos", diz Joaquim Tashka Yawanawá, cacique da Aldeia Nova Esperança, às margens do Rio Gregório e a dois dias de barco de Tarauacá.
"Elas foram as únicas que tiveram coragem de fazer juramento ao rare, a planta sagrada do povo yawanawá, uma das provações para a entrada no mundo do xamanismo", explica a antropóloga mexicana Laura Soriano Yawanawá, mulher de Joaquim. O rare é a raiz de uma planta da qual é feito um chá que só pode ser ingerido pelos pajés. Laura lembra que muitos homens tentaram alcançar o feito das jovens, mas recuaram durante o retiro.
Kátia e Raimunda assumiram o compromisso de passar a falar apenas no idioma nativo, do tronco lingüístico pano. "É assim que elas vão orientar as crianças, aconselhar os jovens e mostrar o caminho àqueles que buscam harmonia", ensina Joaquim.
Kátia era tímida e introvertida. "Ela procurou se aconselhar com o velho sábio Tuin Kuru e ele serviu a ela o uni. Logo percebeu-se que ela estava preparada para receber os conhecimentos dos mais velhos", explica Laura.
Raimunda decidiu ser pajé após passar um tempo na cidade. A experiência lhe deu uma sensação de inferioridade e, então, retornou à aldeia. "Ela é muito inteligente, é professora, mas mesmo assim se achava menor. Ela agora resgatou sua auto-estima."
O encerramento do sacrificante período de jejum e de abstinência sexual foi celebrado no fim de novembro. "Agora nossa comunidade está aliviada. Era importante formar novos líderes espirituais. O contato com a civilização tirou muito de nossas tradições e de nossos rituais sagrados", explica Ubiraci Yawanawá, o Bira, um dos líderes da Nova Esperança.
"Nosso povo passa por uma de suas melhores fases. Estamos resgatando nossas tradições e, ao mesmo tempo, sintonizados com o mundo do século 21 e sua tecnologia", festeja Bira, que deu a entrevista ao Estado pela internet (via satélite), num computador movido a energia solar.
REVOLUÇÃO
A sagração espiritual das mulheres tem o efeito de uma revolução na aldeia. "Agora todas as mulheres estão se sentindo em pé de igualdade com os homens e eles pararam de se achar melhores que elas", afirma Joaquim.
Para Laura, as jovens servem de exemplo para todas as mulheres, indígenas ou não. "Os velhos pajés podem morrer em paz. Temos duas mulheres corajosas, inteligentes e jovens para repassar seus conhecimentos."
Kátia e Raimunda foram preparadas para substituir Tata e Yawarani, os dois últimos pajés da tribo, que permaneceram com elas no retiro transmitindo seus conhecimentos. Calcula-se que eles tenham mais de 80 anos.
Desde o início do século 20 os yawanawás, assim como os demais povos indígenas do Acre, eram parcialmente escravizados. Viviam da extração da borracha, que entregavam para um seringueiro em troca de mercadorias que nunca foram necessárias antes do contato com os brancos.
"Eles zombavam de nossos rituais e de nossa língua. Não sobrava tempo para as tradições", lembra Bira. Nos anos 70 chegaram à aldeia missionários evangélicos americanos da organização Novas Tribos. "Eles vieram pregar o Evangelho e nos proibiam de fazer nossos rituais. Diziam que eram coisa do demônio."
Em 1984, os yawanawás passaram a exigir a demarcação de suas terras. Foram se aconselhar com os pastores. "Quando eles não concordaram, percebemos que não eram aliados. Decidimos convidá-los a se retirar", lembra Bira. Atualmente, os yawanawás possuem 92.852 hectares demarcados e querem que a Funai incorpore outros 92 mil.
O "povo da queixada", tradução literal de yawanawá, tem um plano de metas. Bira e Joaquim estudaram nos EUA a convite da Aveda, uma das líderes mundiais em cosméticos. A empresa fez uma parceria com a tribo em 1992 para a compra de toda a produção de urucum, que vira corante de batom. Os 600 índios recebem US$ 100 mil anuais pelo urucum e pelo direito de uso de imagem.
Mas Joaquim quer reduzir a zero essa dependência. "Queremos montar uma usina de beneficiamento de óleos e essências florestais. Não queremos viver de ajuda humanitária", diz ele, que embora cacique, fica mais tempo na cidade. "O Bira é um bom caçador. Eu só caço negócios", brinca.

OESP, 11/12/2005, Vida, p. A25

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